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Por Leopoldo Duarte
Em Os Entendidos
A desigualdade social no Brasil não é novidade pra ninguém. Na realidade o nosso país é tão desigual que, como muitos não-racistas adoram ressaltar, aqui nunca foi necessário institucionalizar inequidades com leis, como o Apartheid sulafricano e a Jim Crow estadunidense. Por aqui não foi necessário implementar limites aos negros pois o nosso modelo de escravidão foi bastante eficaz em doutrinar a todos sobre o lugar de cada um na sociedade. E, no caso do nosso maior cartão postal, o lugar de cada um dentro da cidade.
Nas últimas duas semanas os noticiários do Brasil e do mundo expuseram uma realidade tipicamente carioca: a segregação sócio-racial. Uma prática tão enraizada que é até difícil dizer quando exatamente começou. Muito possivelmente a partir do momento no qual a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro se viu obrigada a acomodar a família real portuguesa. Pois, certamente nessa época, mudanças foram feitas no cotidiano da cidade-porto para que se tornasse um lugar digno do rei exilado, ou seja, com demarcadas limitações entre a realeza e o Resto.
Independente de como ou quando começou, hoje basta por os pés na zona sul do Rio para rapidamente se notar como a especulação imobiliária transformou o antigo balneário na zona mais nobre da província. Podemos não ser mais sede de uma monarquia, mas os cariocas que se imaginam com o rei na barriga tem endereço certo: “do Leme ao Pontal”. Obviamente há favelas em muitos desses bairros, porém as senzalas nem sempre ficavam muito longe da casa grande visto que empregados que moram perto do trabalho evitam gastos com vales-transporte e tem menos desculpas para atrasos.
O problema é que com a chegada do verão um velho dilema ressurge: podem pobres e a classe média frequentarem os mesmos ambientes de lazer? Em outros termos: podem os menores filhos das periferias aproveitarem as férias no mesmo local em que os herdeiros filhos da nata fluminense? Será que devemos expor os gringos e turistas a esses indesejáveis porém necessários jovens?
Diferente dos demais lugares públicos da cidade, a praia não tem bilheteria, nem roleta, logo, o preço não estabelece o velado muro que impede o convívio frequente entre as diferentes camadas sociais. O que torna impossível manter a habitual distância que previne o contato entre os com e os sem mérito$.
Sendo assim, como gradear a areia afetaria o prestigiado valor de mercado dos logradouros a beira-mar, a solução encontrada pelos atuais governantes foi a criação de postos de triagem para separar o joio dos marginalizados. Paradas policiais em ônibus que fazem o translado entre o temido subúrbio e a orla. Um mecanismo muito parecido com o que acontecia na África do Sul que encarcerou Mandela, mas como “NĀO” existe segregação racial por essas bandas, melhor deixarmos essa coincidencia por conta da livre interpretação. Isso e o fato de moradores da região terem formado uma milícia disposta a usar de violência para defender um espaço que, legalmente, é de todos. #KKK
Provavelmente alguém dirá que se tratam de situações diferentes pois esses cidadãos de bem só querem zelar pelo divertimento de todos e coibir a ação de “pivetes”, mas sendo um homem negro e tendo visto essa reportagem sobre arrastões, não tenho como esquecer como todo e qualquer grupo de adolescentes pretos é muito prontamente lido como bando. Principalmente em época de férias escolares e em situações onde esses jovens passam a ocupar locais considerados de elite. Também não devemos nos esquecer de que os países que lesgislaram medidas segregatórias ao longo da história também tinham a melhor das intenções e tentaram assegurar a integridade de suas sociedades.
Apesar de segurança pública ser o principal argumento para essa política de exclusão, em quase duas décadas do fenômeno denominado arrastão, nenhuma estatística policial é apresentada pela mídia nem por políticos para legitimar o radicalismo dessas ações. Provavelmente essa é mais uma da série de inoportunas curiosidades envolvendo o caso, sendo o principal mistério: quais os critérios para a revista desses deliquentes-em-potencial já que não há leis que proíbam a circulação de homens sem camisa e nem que obriguem o porte de documentos de auto-identificação senão arquétipos racistas?
Todo esse ímpeto pedagógico que mobiliza a sociedade toda alta temporada parece ter muito pouco a ver com dados ou com uma questão de segurança pública. Como não dá pra levar a praia pra casa e encerrar a brincadeira dos visitantes, talvez a solução seja assumirmos o caráter segregatório e abrir uma entrada de serviço pela orla. Algo que dificilmente será feito pra preservar o preço do metro quadrado dessa tão acolhedora região — contanto que você seja de claras origens.
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