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Na fila que se forma na frente do prédio da Farmácia do Estado, no Centro do Recife, as queixas das pessoas são as mesmas. Faltam medicamentos. O desabastecimento é recorrente no serviço que deveria garantir o acesso gratuito a 231 tipos de remédios especializados (rol informado no ano passado) à população. São produtos caros e de difícil aquisição, fundamentais para mais de 50 mil pernambucanos portadores de doenças crônicas e raras como insuficiências renais e respiratórias, parkinson, colesterol alto, osteoporose, epilepsia, esclerose múltipla, entre outras. Atualmente metade dos medicamentos está em falta.
O dado sobre o desabastecimento é do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), que investiga a Farmácia do Estado em inquérito há mais de um ano. O órgão avalia que os problemas no serviço ligado à Secretaria de Saúde estadual são crônicos e progressivos. No ano passado, a média de abastecimento foi de 63%. Na comparação com o último mês deste ano, quando o índice de desabastecimento chegou a 50%, a queda é de 13 pontos percentuais. Uma auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE) verificou que 62 dos 231 itens da Farmácia do Estado estiveram em falta durante o ano passado. Entre 2017 e 2018, portadores de doenças como lupus, parkinson, hipertensão pulmonar e outras patologias graves denunciaram repetidas vezes o desprovimento de medicamentos e insumos. Além de remédios para o tratamento de doenças raras, substâncias como insulina, analgésicos e antibióticos também ficaram fora dos estoques.
No ano passado, diz o relatório do TCE, a Farmácia do Estado deixou de lado o atendimento de quase 36% das solicitações de medicamentos/insumos dos usuários. O serviço também deixou de disponibilizar 37% da listagem de medicamentos/insumos e de investir 48,77% dos recursos necessários ao longo do ano. Os maiores prejudicados por essas falhas foram pacientes do interior do estado, que tiveram 10% menos solicitações dos usuários atendidas no Recife, de acordo com o levantamento.
Embora as provas de que há uma crise generalizada na Farmácia do Estado sejam vastas, o poder público insiste em tratar casos isolados. Geralmente, quando o fim do estoque de um determinado medicamento ou insumo começa a prejudicar os usuários, a Secretaria de Saúde (SES) é acionada pela mídia e/ou por vias judiciais. Então, a secretaria age para regularizar a oferta do produto que está em falta. Esse comportamento reativo, contudo, não resolve o problema e ainda gera uma espécie de revesamento de produtos, dizem os usuários do serviço. Ou seja, quando tem um remédio, falta outro.
Acontece que a causa dos constantes lapsos de abastecimento da Farmácia do Estado é o endividamento da Secretaria de Saúde junto aos fornecedores de remédios, apontam o TCE e o MPPE. “O governo sempre coloca a culpa em atrasos dos fornecedores ou pendências nas licitações, mas acontece que, por causa das dívidas, as fabricantes suspendem o fornecimento dos remédios”, explica a promotora de Justiça e Defesa da Saúde do Recife no Ministério Público de Pernambuco (MPPE), Helena Capela. Em 2016, a estimativa do débito da SES era de R$ 23 milhões junto a 13 fornecedores. De lá para cá a conta cresceu. Somente este ano, já ultrapassa os R$ 40 milhões – saldo liquidado (ou seja, reconhecido como débito pelo estado) e ainda não pago, de acordo com dados do Portal da Transparência. “Apenas à fabricante de medicamentos Roche – maior fornecedora da Farmácia do Estado – o débito atual é de R$ 13 milhões”, diz a promotora Helena.
O desequilíbrio nas contas da SES chamou atenção do Tribunal de Contas do Estado (TCE), que instalou uma auditoria especial para avaliar os exercícios financeiros entre 2008 e 2018. O relatório publicado no segundo semestre deste ano aponta que o “montante de restos a pagar processados – ou seja, os empenhos executados e liquidados, mas não pagos até 31 dezembro – passou de R$ 109.249,41 em 2013 para R$ 37.560.322,31 em 2018. Quando comparados à despesa liquidada, os restos a pagar passaram de 0,21% da despesa liquidada em 2013 para 32,06% da despesa liquidada em 2017”. Parte do débito crescente deve-se, na avaliação do TCE, à insuficiência de repasses da União.
Esse foi o argumento usado pelo governador Paulo Câmara (PSB) para justificar as falhas durante a campanha de reeleição, este ano. Em entrevista à Rede Globo, ele disse que a falta de medicamentos da Farmácia do Estado está relacionada ao desequilíbrio entre os repasses e o aumento de usuários do serviço, que passaram de 34 mil em 2014 para 54 mil em 2017. “O volume de recursos não aumentou e nós tivemos que gastar três vezes mais do que nós estávamos gastando antes”, falou. Por essas questões, os auditores do TCE elencaram uma série de recomendações à SES visando o reequilíbrio do serviço. Entre elas está o envio de “esforços junto ao Governo Federal/Ministério da Saúde no sentido de que seja repassada a integralidade dos recursos necessários para o custeio dos medicamentos”.
Apesar de todos os achados da relatoria, os conselheiros do TCE aprovaram com ressalvas as contas da SES. No mês passado, o MPPE enviou um despacho para a SES, a Casa Civil, a Secretaria da Fazenda e a Procuradoria Geral do Estado, pedindo o cronograma de implementação dessa e de outras medidas propostas pelo TCE para sanar os débitos e o desabastecimento, mas até agora o MPPE não recebeu resposta da administração pública. A Secretaria de Saúde de Pernambuco também não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Débito pago com vidas
O fato é que, para grande parte dos usuários da Farmácia do Estado, um dia sem a medicação adequada pode comprometer anos de tratamento e, em algumas situações, custar até a vida do paciente. Enquanto a gestão estadual não encontra soluções definitivas para a crise, pessoas já fragilizadas por doenças enfrentam batalhas diárias pelo acesso aos medicamentos, algo que é um direito garantido por lei. Suhellen Oliveira é presidente da DONEN – Associação dos Familiares e Amigos de Portadores de Doenças Neuro Musculares, que reúne pacientes com atrofia muscular espinhal. São 138 pacientes em Pernambuco, incluindo o filho dela, que tem seis anos. A doença é degenerativa. Sem o tratamento, feito com uma substância chamada Spinraza, que custa mais de R$ 2 milhões por ano, pode haver insuficiência respiratória e morte do paciente.
Atualmente o medicamento é conseguido apenas por via judicial. Larissa Gomes, mãe de Melinda, de oito meses, que nasceu com atrofia muscular, precisou mover ações contra o Governo do Estado e a União para conseguir o tratamento da filha. “Também fizemos uma campanha no Instagram para mobilizar as pessoas”, conta. A contradição é que, ante a uma condição tão grave, que demanda um tratamento tão específico, os pacientes de atrofia muscular como Melinda sofrem atualmente com o desabastecimento de itens básicos, mas essenciais como o leite especial para quem se alimenta por sonda.
“O governo não fornece há mais de seis anos. As famílias são obrigadas a comprar, sendo que a marca mais simples custa mais de R$ 50 a lata e tem paciente que precisa de 14 latas por mês”, reclama Suhellen Oliveira, presidente da DONEN. Além desse item também faltam outros insumos como luvas, soro, seringas. “É sempre a mesma desculpa. Eles dizem que não tem estoque, que não fizeram licitação”, comenta.
Quem precisa da Somatropina também enfrenta dificuldades semelhantes. Desde os seis anos, Maria Nina, hoje uma pré-adolescente de 13 anos, toma a substância diariamente – um hormônio do crescimento oferecido gratuitamente por determinação federal e distribuído pelo governo estadual. Cada dia sem tomar o remédio, que custaria R$ 6 mil por mês à família, caso fosse necessário comprá-lo, traz perdas irreparáveis para o desenvolvimento da menina, que tem uma atrofia na glândula responsável pela produção da substância.
Por falhas no estoque da Farmácia do Estado, o tratamento de Maria Nina foi interrompido várias vezes. “Já chegou a faltar por três meses seguidos. Mantivemos uma época fracionando as doses, o que já prejudicou o desenvolvimento dela. É uma perda incalculável”, conta a mãe, Adriana Santana.
José Cândido da Silva, representante da rede nacional das pessoas que vivem com HIV e AIDS em Pernambuco, denuncia a falta de tratamento para as chamadas doenças oportunistas, aquelas que se aproveitam da debilidade do organismo dos soropositivos. No começo deste ano, a Justiça determinou o bloqueio de R$ 3,6 milhões nas contas estaduais, a pedido do MPPE, para garantir a compra de medicamentos utilizados por pessoas em tratamento contra infecção pelo vírus HIV.
“Mesmo assim continuamos enfrentando os mesmos problemas. Faz tempo que a gente não tem acesso, por exemplo, à Savastatina e ao Ácido Folínico, que tratam o colesterol alto. As pessoas têm que comprar, mas muitas não têm condições financeiras. A situação está cada vez pior, considerando que vários pacientes perderam o Benefício de Prestação Continuada (BPC) este ano, depois dos cortes do Governo Federal”, comentou. No último boletim epidemiológico, em dezembro, a SES informou que Pernambuco tem atualmente 26.657 soropositivos.
Caos geral
A Lei Orçamentária Anual (LOA) do próximo ano, já aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado, traz um pequeno aumento do orçamento direcionado à aquisição de medicamentos e insumos farmacêuticos excepcionais e especiais, objeto que diz respeito à Farmácia do Estado – de R$ 97 milhões para R$ 98 milhões. O que não se sabe é se o reajuste será suficiente para resolver os problemas atuais, diante da dívida de R$ 40 milhões com os fornecedores.
A LOA 2019 também foi aprovada sem a emenda de autoria da deputada Priscila Krause (DEM), que sugeria o incremento de R$ 9 milhões da verba para a compra de medicamentos da Farmácia do Estado. A sugestão dela era que o valor fosse remanejado do orçamento de publicidade da Secretaria de Turismo – que subiu de R$ 10 milhões em 2004 para R$ 27 milhões em 2019. “A crise da Farmácia do Estado está entre os tantos problemas que fazem a saúde de Pernambuco agonizar”, avaliou a deputada. “Isso sem falar dos débitos do Governo do Estado com os profissionais contratados pela SES – há mais de 10 mil profissionais que não recebem salários desde agosto -, além da superlotação e da falta de medicamentos e insumos nos hospitais, que são outros sintomas graves do colapso da saúde em Pernambuco”, denunciou a parlamentar.
Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).