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Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo
O preço das passagens de ônibus na Região Metropolitana do Recife (RMR) pode aumentar a partir desta sexta-feira (25). As empresas de transporte querem 16,18% de acréscimo nas tarifas para atenuar os impactos da progressiva redução de passageiros pagantes em contraposição aos aumentos dos custos do setor. Já o Governo do Estado, por meio do Consórcio Grande Recife, defende um reajuste de 7,07% esperando compensar o congelamento das tarifas no ano passado. Mas será que colocar a conta no bolso dos passageiros é a única solução?
Especialistas do setor de transporte e movimentos sociais dizem que não. Professor da área de Transporte e Gestão de Infraestrutura Urbana da Universidade Federal de Pernambuco, Oswaldo Lima Neto considera possível subsidiar o sistema sem onerar ainda mais o custo das passagens. “Existem várias alternativas, entre elas a criação de um fundo especial de financiamento derivado dos impostos sobre os combustíveis”, argumentou.
A criação desse fundo especial é um assunto debatido nacionalmente. Atualmente, inclusive, tramita na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda Constitucional 159/2007 que altera a distribuição dos recursos da Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico), tributo sobre os combustíveis, cujo recolhimento é destinado em maior parte à União (70%). O restante é dividido entre estados (29%) e parte da parcela estadual vai para os municípios (25%).
A municipalização da Cide poderia financiar o transporte público. Um estudo feito pela Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano (NTU) junto com a Fundação Getúlio Vargas mostrou que a atual taxação da Cide de R$ 0,10 sobre o litro da gasolina permitiria uma redução de até 30% nas tarifas do transporte público, caso fosse repassada aos municípios. Isso representa uma economia de aproximadamente R$ 1 por passagem.
Mas os proprietário de carros pagariam a conta do transporte público? Neste ponto vale uma reflexão sobre a importância dos ônibus para as condições de mobilidade das cidades. De acordo com a NTU, os carros ocupam 75% das vias enquanto transportam somente 20% das pessoas. Por outro lado, os ônibus ocupam 20% do espaço urbano para transportar 70% da população. Ou seja, os coletivos beneficiam mais gente e, sem eles, o trânsito das cidades se tornaria inviável.
A articulação Recife Pelo Transporte, que agrupa movimentos sociais na defesa pela redução do preço das passagens na RMR, diz que o transporte público é um direito social definido pela Constituição. Algo tão importante quanto a saúde ou a educação, que deve ser custeado pela coletividade. “Não são apenas os passageiros os beneficiados. As empresas em geral se beneficiam do fluxo de clientes e empregados. Isso vale para as indústrias, o comércio e, até mesmo de forma indireta, para as pessoas que usam carro,na medida que elas ocupam um espaço muito maior nas vias em relação à quantidade de passageiros do transporte público”, argumentou Thiago Scavuzzi, advogado do Centro Popular de Direitos Humanos, que integra a Articulação.
A divisão do custo da operação do sistema de transporte público entre os beneficiários diretos e indiretos está prevista na Política Nacional de Mobilidade Urbana, uma lei federal. Mas, o que acontece na prática é que o serviço é bancado pelas tarifas pagas pelos usuários, ou seja, pelos mais pobres. Por outro lado, o poder público subsidia os carros particulares no Brasil, na avaliação da professora da área de Transportes da Universidade Federal de Alagoas, Jessica Lima. “O governo gasta bilhões com o alargamento das vias (foram R$ 260 bilhões até 2011) para que as pessoas possam estacionar seus carros. Todos os anos a manutenção dessas vias alargadas custa R$ 5,2 bilhões à política de transporte no Brasil”, comentou.
Os custos de ampliação e manutenção das vias para os automóveis poderiam ser amenizados com a criação de um pedágio urbano, como propõe a Política Nacional de Mobilidade Urbana. A receita desse pedágio, segundo a Lei, deveria ser aplicada exclusivamente no subsídio das tarifas e nas infraestruturas dos modos não motorizados e do transporte público coletivo. Esse modelo já é utilizado em algumas cidades do mundo, como Londres, na Inglaterra, e Buenos Aires, na Argentina.
Quem paga a conta é o passageiro
Os periódicos aumentos das passagens na RMR vão de encontro à Política Nacional de Mobilidade Urbana, que destaca a garantia da modicidade das tarifas para os usuários, ou seja, um valor baixo, acessível à população. Em dez anos (2008 a 2018), no entanto, o preço das passagens subiu 100% no Recife, de acordo com o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (IPDT). “Na década de 70, o custo do transporte era 5,8% dos gastos de uma família brasileiro. Hoje já está em 15%”, apontou a professora da área de Transportes Jéssica Lima.
Em 2015, os gastos com transporte público já chegavam a comprometer 25% da renda de uma trabalhadora doméstica no Recife, de acordo com a plataforma Mobilidados do IPDT. De 2014 a 2017, o comprometimento do salário mínimo com esse tipo de gasto aumentou, passando de 14,85% para 17% na capital pernambucana.
Fonte: Plataforma Mobilidados
O aumento das tarifas em 7,07% este ano, como quer o Governo do Estado, faria o Anel A, usado por 70% dos passageiros, subir dos atuais R$ 3,20 para R$ 3,45 (no provável arredondamento). Considerando o salário mínimo atual e uma média de 44 viagens ao mês, as passagens consumiriam mais de 15% da renda mensalmente.
“O passageiro é quem paga tudo, mas ele é a parte mais fraca dessa questão. As pesquisa de origem e destino mostra que a maioria das pessoas acessa o transporte público para ir ao trabalho ou para procurarem emprego, mas, sobretudo nos bairros mais pobres, é comum ouvir relatos de pessoas que não têm como arcar com o alto custo das passagens. É importante lembrar também que 40% da população brasileira sobrevive de atividade informal”, argumentou a professora Jessica Lima.
Novo modelo de remuneração
É preciso criar um novo modelo remuneratório para o transporte público de passageiros, diz advogado e militante da Frente de Luta Pelo Transporte, Pedro Josephi. Ele explicou que a remuneração das concessões de transporte público leva em consideração o fluxo de passageiros pagantes, quando deveriam ser baseadas nas horas de serviço e na quantidade de viagens realizadas pelas empresas. Disse também que o estado direciona subsídios com base em contas mensais de quilometragem e passageiros pagantes. “O governo garante antecipadamente o subsídio no diesel para o mês seguinte, mas não se tem um controle ideal sobre essas contas das empresas. Então é uma zona cinzenta”, argumentou.
O estudo tarifário divulgado pelo Consórcio Grande Recife mostra que os subsídios e isenções concedidos pelo governo estadual se aproximam dos R$ 240 milhões ao ano. Em nota, o Consórcio Grande Recife informou que para “manter a modicidade tarifária, o Governo do Estado isentou o ICMS do óleo diesel e da aquisição de veículos novos e tomou a decisão de arcar com os custos da gestão do Grande Recife Consórcio de Transporte, que antes estava inserida na tarifa”.
O texto informa que “outra decisão do governo foi arcar com os custos de manutenção e operação (conservação, limpeza, vigilância, porteiro, facilitador de acesso, energia e água) dos Terminais Integrados e estações de BRT, que conforme o regulamento do Sistema, deveriam estar incluso nos custos da tarifa.” Caso o Governo do Estado não aportasse esses subsídios, a necessidade de reajuste tarifário seria superior aos praticados nas últimas recomposições, diz a nota.
Os movimentos sociais contestam essa lógica apontando para distorções, como o fato das gratuidades de idoso e de deficientes impactarem na tarifa do usuário pagante ou os créditos do VEM (Vale Eletrônico Metropolitano), que são repassados diretamente para a conta do sistema, quando poderiam ser melhor direcionados pelo Estado.
A Frente Nacional de Luta pelo Transporte, que realiza ato contra o aumento das passagens nesta quinta-feira (24), no Centro do Recife, também defende a criação de um fundo com aportes do Estado e da União para subsidiar o transporte público. Em concordância com essa proposta, a professor Transportes Jéssica Lima diz que parte das multas de trânsito poderiam ser direcionadas para fundos dessa natureza, assim como a receita com vendas de espaço publicitário pelas empresas de transportes, que ainda pode ser melhor aproveitada. Thiago Scavuzzi, da Articulação Recife Pelo Transporte, disse que é importante criar de grupos focais no estado para debater alternativas de financiamento. “Há soluções, mas falta a decisão governamental de priorizar o transporte público”.
Caixa preta
O discurso de desequilíbrio das contas das empresas não pode ser argumento de aumento de passagens. Isso porque as variações e a frustração de demanda de passageiros são um riscos da operação, que são assumidos pelas concessionárias na licitação, segundo a Articulação Recife Pelo Transporte. Além disso, a relação entre receitas e despesas de transporte público na RMR não é totalmente conhecida. As contas das empresas são mantidas em sigilo, embora os movimentos sociais cobrem mais transparência.
No ano passado, a Frente de Luta pelo Transporte Público de Pernambuco entrou com um pedido de informação dos dados operacionais das empresas junto à secretaria das Cidades do estado, que preside o Conselho Superior de Transporte Metropolitano (CSTM), responsável por definir os reajustes.“Até agora as informações não foram disponibilizadas. Na última segunda-feira foi apresentada uma planilha de custos das empresas, mas sem a possibilidade de fiscalizar os dados, que não são auditados. Não há, por exemplo, como medir se as informações sobre depreciação dos veículos são reais”, comentou o advogado Pedro Josephi.
A falta de transparência que faz o passageiro bancar o desequilíbrio do sistema geram um contrassenso. Enquanto não procuram alternativas de receita, as empresas oferecem serviços cada vez mais caros e menos atrativos para os 60% da população da Região Metropolitana do Recife que utilizam os ônibus como transporte. “Toda empresa que perde clientes busca recuperá-los oferecendo um serviço melhor e reduzindo seus preços, menos as empresas de ônibus. Pelo contrário, os serviços são cada vez piores e mais caros, mas ninguém mexe nas concessões públicas desses grupos. Então é cômodo para as empresas e o governo colocar a conta no colo dos passageiros”, argumentou o professor da área de Transportes Oswaldo de Lima Neto.
Na visão de Lima Neto o modelo de gestão do sistema gera um ciclo vicioso. A cada aumento da passagem, mais pessoas deixam de andar de ônibus e a receita das empresas cai. Então, as empresas e o governo fazem novos reajustes tarifários para cobrir o rombo, alimentando o ciclo. “Muita gente prefere comprar uma moto ou até andar de Uber por ser mais viável financeiramente. Já a faixa mais pobre da população é obrigada, muitas vezes, a andar a pé por falta de opção”.
Aumento ZERO
No ano passado, os movimentos sociais conseguiram barrar o aumento das passagens na RMR. Este ano, as empresas reacenderam a disputa pedindo um reajuste retroativo. O governador Paulo Câmara disse que a proposta da Urbana-PE, de 16,18% de aumento, que faria o Anel A saltar para R$ 3,70 é “descabida”. Ele quer reunir as tarifas nos anéis A e B, o que deve ser discutido na reunião do Conselho Superior de Transporte Metropolitano marcada para esta sexta-feira (25).
Antes que o Conselho se reúna para decidir o novo preço das passagens, os movimentos sociais fazem pressão para, não somente barrar os reajustes, como também pedir a redução das tarifas. A Articulação Recife pelo Transporte enviou um Pedido de Liminar à 4ª Vara da Fazenda da Comarca da Capital solicitando cancelamento da reunião do Conselho ou suspensão dos efeitos da recomposição tarifária.
Em dezembro passado, o movimento ajuizou uma Ação Popular apontando irregularidades do funcionamento do referido Conselho e da eleição de seus conselheiros que ainda não tomaram posse. O movimento considera impossível que, na mesma reunião de posse, os conselheiros votem um tema tão complexo quanto o aumento das passagens e sugerem 45 dias entre a posse, a entrega dos documentos subsidiários das propostas e votação da tarifa.
Atualização
Nesta quinta-feira (24), o juiz da 4º da Vara da Fazenda Pública da Capital, Teodomiro Noronha, determinou que o CSTM se abstenha de discutir sobre o equilibro econômico-financeiro do STTP/RMR e de definir qualquer tipo de reajuste das tarifas de ônibus no Grande Recife na reunião convocada para a sexta-feira (25). A decisão acolhe o mandado de segurança impetrado pelos conselheiros do CSTM Pedro Josephi e Márcio Morais. O descumprimento da decisão pode gerar multa diária de R$ 500.
Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).