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Crédito: Daniel Pereira
Vinte e um anos após o assassinato do cacique Xikão, a 19ª Assembleia Xukuru do Ororubá mostra toda a potência da mobilização dos povos originários para que nenhuma gota de sangue a mais seja derramada. Lideranças e indígenas de todo o Brasil reuniram-se para pedir forças aos encantados, discutir os recentes retrocessos e traçar ações de enfrentamento ao desmonte da política indigenista do governo Jair Bolsonaro.
Com o tema “Limolaigo toype: em defesa da vida, eu sou Xikão”, o evento reuniu mais de 2 mil pessoas entre os dias 17 e 20 na Aldeia Pedra D’água, em Pesqueira, no Agreste, numa demonstração de memória, coragem e resistência da luta mais antiga do Brasil.
Em meio a rituais de pajelança e torés, as mesas de discussão no chão de terra batida do Espaço Mandaru (nome encantado de Xikão, cujo nome de batismo era Francisco de Assis Araújo), uma construção de palha e madeira, ecoou, a todo tempo, a união dos povos indígenas na defesa de seus territórios. Porque, como repetiu o atual cacique Marcos Xukuru, filho do maior líder do povo Xucuru e de Dona Zenilda, “defender o território é defender a vida”. Na Serra do Ororubá, estão distribuídas cerca de 20 aldeias, onde vivem quase 8.000 indígenas.
A luta tornou-se ainda mais necessária depois da eleição de Bolsonaro em 2018. Desde a campanha, o atual presidente já anunciava o não reconhecimento dos povos originários. Durante o processo eleitoral, ele chegou a declarar: “Se eu assumir, índio não terá mais 1 cm de terra”. Logo em seguida da vitória do autoritarismo nas urnas, teve início a política de desmonte.
Já no dia 1º de janeiro, foi assinada a Medida Provisória 870, da ampla reforma ministerial, para transferir a competência de identificar, delimitar e demarcar as terras da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura. A MP também transfere a Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves.
A Comissão Mista da Medida Provisória 870/19 aprovou, no último dia 9, uma emenda de autoria do deputado federal Túlio Gadêlha (PDT-PE) para reverter esses dois pontos, ou seja, para devolver à Funai as duas competências e para manter a fundação no Ministério da Justiça. A emendas aprovada pela comissão passa a integrar o texto base que vai a votação em plenário nesta quarta (22).
Segundo a Constituição de 1988, o prazo seria de cinco anos após a promulgação para conduzir o processo de demarcação de terras indígenas. Mais de 30 anos se passaram e, das 1.306 terras, 64% ainda têm pendências de demarcação, sendo que, em quase 500 delas, o processo sequer teve início. Os números mostram o tamanho da dívida do Estado brasileiro.
A atual política de morte do governo passa também pela asfixia da Funai. Em fevereiro, foi assinado um decreto que cortou 90% do orçamento da fundação. Como disse Dona Zenilda no domingo de assembleia, “a Funai virou a funerária do índio”. Nas últimas décadas, o órgão já havia perdido cerca de metade de seus 2,2 mil funcionários.
Em apenas cinco meses, o autoritarismo do presidente fechou ainda mais o diálogo pondo fim aos conselhos sociais e outros órgãos colegiados, o que inclui a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) e a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (Cneei). A CNPI foi uma grande conquista por ser responsável pela elaboração, pelo acompanhamento e pela implementação de políticas públicas.
Bolsonaro também ameaça o subsistema de saúde indígena e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) pretendendo transferir da União para os municípios a responsabilidade por esse direito.
“O governo atual não entende como funciona a saúde indígena. Uma coisa é atuar em locais de fácil acesso. Outra é trabalhar 60 dias em áreas inundadas sem energia elétrica. Como os municípios com estrutura precária vão fazer a saúde acontecer tendo que passar 14 dias subindo e descendo rio? O preço da saúde indígena é outro”, argumenta Carmem Pankararu, representante dos trabalhadores indígenas no Conselho Nacional de Saúde.
A pauta atualmente está suspensa dentro do Ministério da Saúde, graças ao movimento indígena e às cobranças de vários atores sociais. Está para ser criado um grupo de trabalho para discutir o aprimoramento do modelo do subsistema.
Dentro da saúde indígena, há ainda um grande desafio que é cuidar das mulheres. “É um público que tem suas próprias concepções. Trazendo para a mulher, é muito maior esse entendimento. A mulher indígena tem uma relação da saúde com a natureza, com os encantados, que passa muito pela cura espiritual, pelo uso das ervas medicinais”, detalha Carmem.
Diversos povos, incluindo os xukuru e os pankararu (do Sertão, entre os municípios de Tacaratu, Jatobá e Petrolândia), têm sentido necessidade de resgatar o parto humanizado, envolvendo atores mais jovens e os distritos sanitários. O filme Deus te dê boa sorte, da pesquisadora em relações étnico-raciais e mestre em educação em saúde, Jacqueline Farias, exibido durante a assembleia, fala sobre isso. O documentário conta a emocionante história das parteiras pankararu, com foco em Dôra, pelas mãos de quem vários bebês vieram ao mundo.
A criminalização de lideranças e a ampliação do porte rural de armas também se colocam como motores do genocídio indígena. Até 2013, cerca de 50 indígenas eram assassinados por ano no Brasil. A partir de 2014, esse número chegou a saltar para 138, e a média atual é de 110 homicídios.
“Mas a estratégia deles não supera a nossa. A nossa vem lá de cima. Então, a cada momento a gente vai construindo algo novo” – Marcos Xukuru
A demarcação do território xukuru é prova da resistência indígena na luta por direitos. O processo de regularização fundiária foi iniciado pela Funai em 1989. Em 1992, foi declarada a posse permanente. Em 1995, foi realizada a demarcação física. E finalmente, em 2001, foi publicado o decreto de homologação.
Os xukuru também mostraram sua força na participação na campanha da Constituinte pressionando pela garantia de direitos. O cacique Xikão foi ator essencial nesse processo.
A estrutura montada anualmente para abrir o território durante a Assembleia e receber quem é de fora marca a continuidade do poder de organização do povo xukuru, que tem grupo de teatro, de juventude e de audiovisual, a Ororubá Filmes. O empoderamento passa pela independência de registrar a própria história – o audiovisual é igualmente instrumento de resistência.
É com destino ao lugar em que Xikão foi brutalmente assassinado, no município de Pesqueira, que anualmente, todo dia 20 de maio, há 19 anos, lideranças e povos indígenas e não indígenas caminham, por cerca de 4 km, partindo da Aldeia Pedra D’água.
O ritmo do toré não para, assim como a energia que atravessa cada passada firme. Nas celebrações durante a assembleia e também no último dia do evento, as orações cristãs misturam-se à força das tradições dos povos indígenas na evocação aos encantados e à natureza sagrada. O sincretismo é parte da cultura e é dele também que o território e o povo se alimenta. “Eu sou Xikão” (tema da assembleia deste ano) foi o grito final puxado pelo cacique Marcos – e “diga ao povo que avance”.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com