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Refletir sobre o fazer jornalístico em tempos sombrios como os que vivemos parece uma tarefa fácil, mas não é. A enxurrada de informações e a fragmentação dos acontecimentos podem confundir os desavisados, especialmente quando cobertas pelo verniz de uma suposta imparcialidade. Para uma análise honesta e profunda são importantes a contextualização histórica, o conhecimento dos valores éticos e procedimentos técnicos da profissão, mas, acima de tudo, o compromisso com os princípios democráticos que regem – ou deveriam reger – o sistema politico brasileiro.
É neste contexto que vozes como a da professora de jornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de vários livros sobre o cotidiano do fazer jornalístico, Sylvia Moretzsohn, precisam ser ouvidas. Sylvia não usa meias-palavras para definir a atuação da grande mídia na cobertura da política nacional: “As grandes redações há muito tempo substituíram o jornalismo pela propaganda”.
Colaboradora do ObJETHOS, Observatório de Ética Jornalística, projeto do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Santa Catarina, Sylvia analisa nesta entrevista, entre outros temas, a atuação dos jornalistas que “vestem a camisa” das empresas e trabalham contra o interesse publico: “Sempre há e haverá jornalistas que honram a profissão, mas não são a maioria, muito menos hoje, nesse quadro de redução sistemática dos postos de trabalho, que favorece a tendência ao que antigamente chamávamos de adesismo: vestir a camisa da empresa, incorporar seus ideais, falar a voz do dono, sem perceber que, quando chegar o momento de cortar custos, essa subserviência será insuficiente para garantir o emprego”.
Como avalia o comportamento da grande mídia (jornalões do eixo Rio-SP, TVs abertas e rádios com penetração nacional) na cobertura política recente: Governo do PT (Lula e Dilma), Operação Lava-Jato e processo de impeachment da presidenta Dilma?
Eu não vou dizer nada diferente de tantos críticos, e não posso me estender porque seriam inúmeros os detalhes. Recordo apenas a declaração da então presidente da ANJ (Associação Nacional de Jornais), Judith Brito, sobre a necessidade de a imprensa fazer o papel que a oposição não estava conseguindo fazer. Isto foi em 2010 e explica muito do comportamento das grandes empresas jornalísticas. Um artigo da Maria Inês Nassif publicado dia 13 de maio (http://goo.gl/G2eVIu) puxa bem o fio da meada que liga Judiciário e mídia em todo esse processo: há um bombardeio constante desde o mensalão até o golpe recém-desfechado. Ela mostra, inclusive, como funciona esse sistema em que o MP ou o juiz usa a mídia para divulgar informações que vão criar o clima propício para alimentar a investigação que lhes interessa. Mas não foi o juiz do Paraná que disse que era preciso usar a mídia? Nenhuma surpresa nisso, a não ser pelo fato de que as instituições supostamente republicanas são coniventes com esses desvios de função, às vezes criminosos.
Em que pontos a cobertura atual da grande mídia se assemelha àquela de 1954 na crise que culminou com o suicídio de Vargas e à cobertura de 1964 quando ocorreu o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart?
A rigor é o mesmo processo, com algumas diferenças: primeiro, antes havia um importante jornal que servia de anteparo ao rolo compressor do restante da imprensa, embora tenha sucumbido em 64, pela força das armas. O historiador e cientista político Aloysio Castelo de Carvalho, da UFF, escreveu artigo no Observatório da Imprensa, em 2014 (http://goo.gl/G1KQdX),em que demonstra a solidariedade de interesses entre as grandes empresas jornalísticas na desestabilização de governos democráticos com tendências à esquerda. Em 54, houve uma articulação informal, com a Tribuna da Imprensa, O Globo e O Jornal no cerco à Ultima Hora e a Getúlio. Depois, foi uma articulação formal, de Globo, JB e O Jornal, na Rede da Democracia (aliás, título do livro que o Aloysio publicou sobre essa história). Agora, de novo informalmente, mas sem uma contrapartida à altura da UH, contra os governos do PT.
Mas temos outra diferença que é a internet e a informação à contracorrente que circula independentemente do controle da grande imprensa. Isso tem problemas, porque sempre é preciso checar a veracidade dessas informações, mas é um alento para furar o rolo compressor da grande imprensa. E vêm surgindo grupos de jornalistas e comunicadores comprometidos com a apuração rigorosa, que oferecem o “outro lado” silenciado por essa imprensa.
Até que ponto o clima de intolerância e de divisão política que tomou as ruas do Brasil e o dia a dia das pessoas foi provocado ou amplificado pela atuação da imprensa?
Acho que se pode acusar as três revistas semanais, principalmente a Veja, e alguns colunistas e blogueiros de direita, por fomentar esse discurso de ódio. Mas não creio que se possa generalizar. Tanto em telejornais como nos jornais e no noticiário de referência do rádio, sempre houve contestações e condenações a manifestações racistas e preconceituosas, como aquelas contra nordestinos. A intolerância e o preconceito estão na raiz de um país herdeiro do convívio sempre tenso e aparentemente cordial entre casa grande e senzala. Mas a mídia, sim, fez uma bela carga para reforçar essa divisão quando noticiou a conquista de direitos das empregadas domésticas. Se quisermos falar de modo abrangente, podemos dizer que a mídia acena com o respeito à diversidade e aos direitos, mas, na prática, acaba contribuindo para reforçar a necessidade de que cada macaco fique no seu galho. E isso, indiretamente, alimenta o preconceito que vimos espalhar-se nas manifestações pelo impeachment.
Podemos falar que existe uma aliança entreoposição–capital (empresariado/financistas)–grande mídia- eestamento burocrático(Polícia Federal, Ministério Público Federal-Poder Judiciário) para derrubar um governo legitimamente eleito? Como você vê a participação da mídia nesta aliança?
Com certeza, mas acho que já respondi a isso na primeira pergunta.
Até que ponto o jornalismo independente na Internet e a sociedade civil organizada podem fazer um contraponto informativo à grande mídia?
Contraponto propriamente ainda não, porque não há termos de comparação com o poder das grandes corporações. Produzir informação de qualidade exige investimento e qualificação, é preciso apurar com rigor, ter uma rede confiável de informantes, ir à rua, e isso não se consegue de uma hora para a outra. Mas alguns grupos ou coletivos têm desempenhado um papel muito importante, dando informações que não estão na grande imprensa. E a existência das redes também permite a crítica do que essa imprensa produz, o que é muito positivo.
Como avalia a leitura da crise política e do processo de impeachment feito pela mídia internacional? O que eles veem que nossa mídia nacional não vê ou não quer ver?
A mídia estrangeira, em vários exemplos que foram intensamente compartilhados por aqui, agiu com o profissionalismo que falta à nossa. Por isso, talvez, a surpresa. Ficamos mais bem informados lendo El País ou o New York Times ou o Guardian do que os grandes jornais brasileiros. E isso me parece um belo exemplo de degradação da nossa mídia hegemônica. Os jornais estrangeiros não veem nada que não possa ser visto daqui: apenas não estão comprometidos com o golpe, como os nossos claramente estão, e por isso deixaram (há muito tempo) de fazer jornalismo e passaram a fazer propaganda. Mas ressalto que temos ainda excelentes colunistas, capazes inclusive de criticar o próprio jornal e a imprensa de modo geral em seu espaço, como é o caso do Janio de Freitas, que oferece informações e argumentos fundamentais para entendermos o que se passa.
O jornalismo sai ferido desse processo? Por que as redações aceitam sem maiores questionamentos a postura enviesada dos seus patrões, com raras exceções? Podemos dizer que as redações estão domesticadas? Por que os jornalistas que tudo questionam não questionam o seu próprio trabalho?
As grandes redações há muito tempo substituíram o jornalismo pela propaganda, o que não impede que vejamos eventualmente boas reportagens nem que se mantenham colunistas de respeito, como eu disse. Existe uma mística em torno do jornalismo, mas, se formos ver de verdade, as redações nunca foram muito rebeldes, por mais que alguns jornalistas fossem. Lembro que, quando publicamos nosso livrinho sobre ética, pelo Sindicato dos Jornalistas do Rio, em 1989, um dos colaboradores, Licínio Rios Neto, falava em “jornalismo amestrado”, que “preferia uísque nas pedras às perguntas incômodas”. Sempre há e haverá jornalistas que honram a profissão, mas não são a maioria, muito menos hoje, nesse quadro de redução sistemática dos postos de trabalho, que favorece a tendência ao que antigamente chamávamos de adesismo: vestir a camisa da empresa, incorporar seus ideais, falar a voz do dono, sem perceber que, quando chegar o momento de cortar custos, essa subserviência será insuficiente para garantir o emprego. O que me espanta é ver jornalistas recém-demitidos produzirem odes de amor à empresa que acabou de dispensá-los, e outros a rejeitarem criticá-las sob o argumento de que não vão cuspir no prato em que comeram, sem entenderem que sempre o alimentaram.
Faz sentido falarmos numa crise de credibilidade do jornalismo brasileiro? Ou da mídia brasileira?
Da grande imprensa, sim, exatamente porque segue uma orientação editorial que abandonou o jornalismo pela propaganda política. Mas o jornalismo não é monopólio das grandes empresas, é bem maior que isso e sobrevive, como precisa mesmo sobreviver.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República