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Após revés na Alepe, Comunidades Terapêuticas querem entrar na rede estadual de política de drogas

Raíssa Ebrahim / 16/08/2019

O debate em torno da regulamentação das Comunidades Terapêuticas (CTs) tem pautado a Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) nesta primeira quinzena da volta do recesso parlamentar. O assunto, até então restrito às comissões, nesta semana passou a ocupar o plenário da casa. O Projeto de Lei desarquivado (1940/18) é de autoria do deputado Pastor Cleiton Collins (PP), fundador da rede de CTs Saravida, juntamente com a esposa, a vereadora Missionária Michele Collins (PP). Depois que o governo Bolsonaro mudou a Política Nacional de Drogas, incluindo as Comunidades Terapêuticas no Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas, a briga, na prática, agora é por financiamento.

A novidade mais recente é que a bancada evangélica sofreu um revés na Comissão de Cidadania, Direitos Humanos e Participação Popular. Por 3 a 2, foi aprovado o substitutivo apresentado pelo mandato coletivo das Juntas e por isso o novo texto será reanalisado na próxima terça-feira (20) na Comissão de Constituição, Legislação e Justiça. Além das Juntas, os votos a favor foram de João Paulo (PCdoB), que pediu vistas, e de Isaltino Nascimento (PSB), líder do governo na Alepe. Afora o próprio Collins, votou contra o substitutivo a deputada Clarissa Tércio (PSC), cuja família também está à frente de Comunidade Terapêutica. Um audiência pública está marcada para acontecer, mas ainda sem data.

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Reunião da Comissão de Direitos Humanos da Alepe (crédito: Juntas/divulgação)

Os argumentos do substitutivo se baseiam em questões de ilegalidade e inconstitucionalidade. Segundo o texto, as CTs não devem integrar a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), do SUS, por não serem serviço de saúde, e, sim, de apoio. O substitutivo também cita que o PL viola e ultrapassa a competência do Legislativo, adentrando em questões exclusivas do Executivo. Somente depois da nova avaliação o projeto poderá ser votado em plenário.

Diante da votação e da pressão dos movimentos de luta antimanicomial, que são contrários à inserção das CTs na Raps, e ocuparam as galerias da Alepe na última quarta-feira (20), a Federação Pernambucana de Comunidades Terapêuticas, presidida por Rawilsean Calado, que também é presidente da Saravida, passou a mirar os recursos da Rede Estadual de Políticas de Drogas, em vez da Raps. Collins apresentará um ofício da federação na CCLJ em que sugere essa mudança, mais precisamente no artigo 10 do projeto de lei original.

O detalhe é que, em Pernambuco, a política de drogas está vinculada à Secretaria de Políticas de Prevenção à Violência e às Drogas, criada na reforma administrativa de Paulo Câmara (PSB) no início do ano e comandada pelo mineiro Cloves Benevides, filiado ao mesmo partido de Collins.

Conheça o Projeto de Lei:

Os movimentos em defesa da Raps, da luta antimanicomial e da redução de danos veem o recuo como uma manobra para que, em vez de receber verba do SUS, as CTs passem a captar verba direta do Governo do Estado por meio da política de drogas. Na avaliação de Rita Acioli, enfermeira, professora da UFPE e integrante do Núcleo Luta Antimanicomial Libertando Subjetividades, a mudança proposta pela federação – e consequentemente pelos Collins – abre portas para que as CTs recebam recursos do governo estadual, podendo posteriormente, por exemplo, ser criados fundos ou outros meios de financiamento.

“É um passo de recuo em relação ao SUS, mas não deixa de ser preocupante. As Comunidades Terapêuticas são um espaço de acolhimento de pessoas, mas sem garantia do atendimento prestado”, diz. Um dos principais pontos de embate, entre os vários, é que os movimentos defendem que a CTs não devem receber verba do SUS por não serem equipamentos de saúde. Não contam, por exemplo, com médicos.

Especialistas e trabalhadores da Raps acreditam que o financiamento público de Comunidades Terapêuticas pode acontecer em desfavor das políticas públicas de saúde mental abertas e de base comunitária e, num contexto de desmonte e de congelamento dos investimentos em saúde e educação, pode comprometer a ampliação da rede, que atua a partir da redução de danos, do acesso e da promoção de direitos das pessoas, baseados na convivência em sociedade e nos preceitos legais da desospitalização e da construção da autonomia do indivíduo.

58 entidades protestam contra as Comunidades Terapêuticas na Alepe (crédito: Juntas/divulgação)

58 entidades protestam contra as Comunidades Terapêuticas na Alepe (crédito: Juntas/divulgação)

Rita sustenta que, mesmo fora do SUS, as CTs passariam a disputar recursos para, por exemplo, consultas, medicamentos e exames, uma vez que, sem esses serviços, teriam amparo para procurar a assistência pública. O problema é que, segundo ela, as pessoas acolhidas nas Comunidades Terapêuticas são pacientes muitas vezes sem protocolo do próprio SUS, criando-se assim um fluxo fora da rede. O risco, portanto, é o estado passar a funcionar como um cabide, um anexo, das CTs.

Elas são instituições sem fins lucrativos que existem há mais de 50 anos no Brasil focadas no tratamento de usuários de álcool e drogas. O problema é que muitas vezes violam os direitos humanos e têm no isolamento, na prática religiosa e no trabalho forçado seu caminho de atuação. Quem aponta isso é o Ministério Público Federal em relatório de inspeção nacional publicado em 2018, com dados de 2017, em que mostra situações do cotidiano e práticas adotadas em Comunidades Terapêuticas nas cinco regiões do Brasil. Em todas as 28 instituições inspecionadas, foram identificadas práticas que configuram violações de direitos humanos.

LEIA TAMBÉM: O jogo político-partidário por trás das comunidades terapêuticas em Pernambuco

Família Collins também faz pressão na Câmara de Vereadores

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Vereadora Michele Collins discursa a favor das Comunidades Terapêuticas (crédito: site Câmara de Vereadores do Recife)

No mesmo dia em que o assunto chegou ao plenário da Alepe, na Câmara de Vereadores do Recife a Missionária Michele Collins (PP) cobrou o Governo do Estado a respeito do decreto do governador Paulo Câmara (PSB) que, há um ano, criou o Programa de Apoio às Comunidades Terapêuticas de Pernambuco. A iniciativa, destinada a “qualificar e fortalecer as parcerias com a sociedade civil e o Governo do Estado” nunca avançou. Estariam habilitadas a participar do programa somente Comunidades Terapêuticas aprovadas por meio de seleção pública. Mas o edital ainda não foi divulgado e nenhum recurso liberado.

“Isso nos deixa muito tristes e preocupados. Nós que militamos na área e também trabalhamos com Comunidades Terapêuticas enfrentamos muitas dificuldades”, disse Michele em seu discurso na tribuna. E complementou: “Isso (o programa) é muito importante porque há clínicas e instituições que não fazem um trabalho sério e são confundidas com comunidades terapêuticas. Esses locais prestam um desserviço”.

A vereadora anunciou que esteve, também na quarta (14), no Ministério Público para protocolar um documento com o CNPJ das duas instituições denunciadas por irregularidades na inspeção do MPF para mostrar que não são CTs. “Precisamos fazer, cada vez mais, a divisão entre o joio e o trigo. Diferenciar instituições sérias das que não têm compromisso com a vida e com a família, como nós temos”. A Marco Zero Conteúdo já conversou com o gerente de uma delas, que se colocou contra os direitos humanos. Clique aqui e saiba mais.

Os argumentos de Cleiton Collins

Casal Collins em oração na inauguração da sede da Saravida, no Recife, em 2015 (crédito: site Saravida)

Casal Collins em oração na inauguração da sede da Saravida, no Recife, em 2015 (crédito: site Saravida)

Na quarta (14), enquanto os movimentos a favor da Raps ocupavam a Alepe com faixas e gritos como “nenhum passo atrás, manicômio nunca mais”, o deputado Pastor Cleiton Collins (PP), que assegura que as CTs não trabalham com acolhimento involuntário, andava impaciente de um lado para o outro do plenário. Ao final da sessão, a reportagem conversou com o parlamentar. Foi quando ele adiantou sobre o ofício da Federação Pernambucana de Comunidades Terapêuticas e aproveitou para enfatizar que não é dono de Comunidade Terapêutica, e, sim, “voluntário” e “incentivador”, para usar suas palavras.

“Existem lugares onde o estado nunca chegou, mas que entidades como igrejas estão ali e fazem um trabalho social (…) É uma bandeira importante que precisa ser levantada (…) A gente quer respeito e reconhecimento”, defende ele, que é ex-usuário e contou com ajuda da Igreja Congregacional no processo de recuperação. “Quem me viu defender manicômio aqui alguma vez?! Eu sou a favor do tratamento voluntário, quando o ser humano diz ‘eu não quero morrer, eu quero viver’. Eu sou uma desses que tive oportunidade.”

“Quem reconheceu as CTs na Raps foi o próprio governo federal, então o projeto não é inconstitucional, como estão dizendo. Hoje ele está no padrão da regulamentação da lei nacional”, afirma Collins, que defende que o PL não gera qualquer custo para o Executivo, uma vez que não legisla sobre finanças. “E o governo dando o reconhecimento não quer dizer que ele tem obrigação de contratar as Comunidades Terapêuticas”, complementa o parlamentar .

“A gente precisa regular essas comunidades. Há uma confusão muito grande entre Comunidades Terapêuticas e Residências Terapêuticas”, enfatiza. Porém, os dois equipamentos são bastante distintos, com públicos e serviços diferentes. As Residências Terapêuticas, integradas à Rede de Atenção Psicossocial do SUS, são casas onde residem, em média, 10 pessoas e voltadas para pacientes que saíram de hospitais psiquiátricos de longa permanência e que perderam vínculos familiares ou parentes e por isso não têm para onde ir. Essas residências não tem a ver com dependência de álcool e drogas. São serviços de desinstitucionalização com uma equipe pequena de cuidadores e funcionam, todas em centros urbanos, como lugar de morada, e não de atividades de recuperação.

Um serviço que se aproxima das CTs é o das Unidades de Acolhimento (UAs). São casas bancadas pelo SUS onde residem no máximo 10 adolescentes ou 15 adultos usuários, sempre na zona urbana, com tempo de permanência de seis meses. Diferentemente das CTs, as pessoas não ficam isoladas. Elas têm liberdade para passar o dia fora trabalhando e estudando e voltar à noite. Recife conta com apenas três UAs. Mas existe uma pactuação para implantar mais de 20 em todo o estado, expansão que ficou impedida por conta da Emenda Constitucional que congelou os gastos com saúde e educação.

Entres os principais argumentos legais de Collins na defesa da regulamentação, estão duas portarias do Ministério da Saúde, a nº 3088/2011 e a nº 1482/2016. A primeira delas, do governo Dilma Rousseff (PT), inclui as CTs como pontos da Raps na atenção residencial de caráter transitório. Na avaliação de Rita Acioli, a portaria é uma grande contradição existente na política de saúde mental do Brasil e não foi digerida pela militância da luta antimanicomial e também por parte da academia.

Ela inclui as CTs na Raps, assim como Samu, hospital geral, Unidades de Acolhimento (UAs), Programa Saúde da Família (PSF), entre outros equipamentos. Mas diz também que a implantação será feita de acordo com a necessidade de cada localidade. “Em Pernambuco, passamos os últimos oito anos seguindo esse passo a passo. Fizemos levantamentos nas 12 regionais do estado e, em vez de colocar as Comunidades Terapêuticas na rede, a pactuação, finalizada no ano passado, optou pelas Unidades de Acolhimento, junto com o Programa Atitude”, explica.

O Atitute, reconhecido internacionalmente, foi criado no governo de Eduardo Campos (PSB) e é baseado na prevenção, na atenção e no acolhimento a usuários de drogas e seus familiares nos territórios. Equipes multidisciplinares fazem atendimentos nas ruas com um trabalho de sensibilização e encaminhamento à rede pública. O programa conta ainda com espaços de acolhimento 24h e oficinas de arte, cultura, reciclagem e cidadania. Possui quatro núcleos: Recife, Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho e Caruaru. Com um orçamento de R$ 17 milhões, atende em média 3 mil pessoas ao ano.

A outra portaria, do início do governo de Michel Temer (MDB), incluiu, após pressão da bancada evangélica, as Comunidades Terapêuticas no do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. “Foi uma ordem do Governo Federal, está vigente. Mas, um mês depois da publicação da portaria, um levantamento em todo o Brasil mostrou que todas as Fazendas Esperança (Comunidades Terapêuticas da Igreja Católica) já estavam aptas a receberem recursos. Para isso é preciso aprovação da Vigilância Sanitária. Como deu tempo de habilitar todas elas (são 86 no Brasil)?”, questiona Rita.

AUTOR
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Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com