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Foto: Gabriel Albuquerque
Recife, manhã de domingo. Enquanto boa parte da cidade, consumida pela ressaca da noite anterior, dorme em berço esplêndido, os times Sem Estresse e Acabadinho já estão de pé no Campo do Onze, próximo ao Shopping Tacaruna, em Santo Amaro, para mais uma partida da Copa dos Cinquentões.
Os primeiros jogadores começam a aparecer por volta das 8h. São moradores do bairro, que chegam andando ou de bicicleta e vão arrumando o material do jogo, trazem água, se aquecem, conversam com os amigos, tanto os colegas de time quanto os que vieram para assistir ao jogo, que é truncado, duro e até feio. Isso porque, o campo tem dimensões desproporcionais (longe de ser retangular) e o terreno desnivelado.
Certamente esta não é uma grande final de campeonato e nem mesmo uma das competições mais disputadas e aguardadas da própria comunidade de Santo Amaro (status que pertence aos torneios juvenil e adulto, que vai “dos 18 anos até onde o cara aguentar”). Porém, apenas a partir dela, já é possível perceber como o futebol atua como um elemento agregador entre aquelas pessoas.
Mesmo em um dia de jogo morno, dezenas de pessoas estão ali reunidas, bebendo, comendo, confraternizando ou observando, nem que seja por puro e simples tédio. Mas estão ali. Enquanto a mídia e o Governo incutem uma cultura de medo e vigilância, elas estão ali. Enquanto a avassaladora especulação imobiliária do Recife toma áreas de convivência, construções históricas e áreas de patrimônio público, elas estão ali. Enquanto a Secretaria de Turismo, Esportes e Lazer da cidade destaca atividades num programa higienizado e higienizador no Bairro do Recife e ignora a manutenção dos campos de Várzea, elas continuam ali. Os campos e o futebol praticado nessas comunidades são posturas de resistência intrínseca. “O Governo é a gente mesmo”, resume em seco Marconi Gadelha, organizador do torneio e do União Futebol Clube, do qual também é técnico.
O futebol se desvela um catalisador dos encontros. Está além de seu tão propagado potencial para a inclusão social: tem a ver com perceber a si mesmo enquanto ser coletivo-comunidade marginalizada e uma forma de empoderamento e ação. As conversas vão da política ao futebol, sempre entrecortados por inúmeras saudações aos conhecidos que passam por ali.
Em meio a tantos debates e teses sobre a “crise de representatividade” política e social, um simples jogo de bola instiga identificações, afetos e desencontros. Não é à toa que Marconi organiza as partidas há quase 30 anos. O quadro branco na pequena e modesta sede do União F.C., junto aos troféus, aponta os mandamentos do clube: humildade, compromisso, responsabilidade, comprometimento, profissionalismo, pontualidade.
Entre esses compromissos está também a vontade de manter aquele local vivo, pulsante, através do futebol. É aquele pedaço de Santo Amaro que a comunidade usa para seu lazer, nos fins de semana principalmente. E praticamente sem nenhuma outra alternativa, o bairro transformou o Campo do Onze num espaço quase sagrado. Por isso, o campo acaba resistindo em meio à feroz busca de espaços para a construção civil, principalmente para a iniciativa privada.
Marconi recorda quando, em 2003, a comunidade recebeu uma notificação da Prefeitura do Recife informando que o campo daria lugar a um conjunto residencial. A “intimação” não foi aceita pelos habitantes do local, que se reuniram e conseguiram manter o espaço sob seu domínio.
Rogério, que foi campeão brasileiro em 1987 pelo Sport, e hoje é comentarista esportivo, é uma das “crias” do Onze, e ainda joga todos os domingos por lá. “Eu comecei aqui na comunidade de Santo Amaro jogando pelo Ramezoni, time de várzea. Depois, o treinador Nereu Pinheiro me chamou para a Seleção Pernambucana, de onde eu acabei saindo para o Náutico e fui seguir minha vida”, disse ele.
Assim como o ex-jogador, outros destaques também deram seus primeiros piques atrás da bola no Campo do Onze. É o caso do meio-campo Kássio, que jogou pelo União. O atleta teve passagem pelo Sport, e foi campeão da Copa do Brasil de 2008 com o rubro-negro da Ilha do Retiro.
E é justamente por isso que o local se faz tão importante. Mesmo sem um luxo de um gramado perfeito ou o glamour de uma Arena da Copa, o “terrão” é acessível para os jovens. Sem portas ou cadeados, é uma tentação para quem quiser jogar. A sedução do campo é uma saída para evitar que os jovens não participem de tráfico de drogas nem cometam crimes. Os valores ensinados no União, por exemplo, além da ocupação do tempo de lazer, soam como um mapa para afastar os mais jovens do caminho da droga e do crime.
“Eu acho muito importante essa união que se faz aqui de alguns treinadores. Tira muitas crianças das coisas erradas, porque aqui é muito fácil delas saírem para o ‘outro’ lado, e mostra que aqui em Santo Amaro tem coisas boas também, não só as ruins”, disse Rogério, ao ser perguntado sobre a importância da sua ‘cancha’ predileta.
Bola para todos
Jovens, velhos, altos, baixos, gordos e magros. Todos podem ter acesso a um campo de várzea, e mesmo não sendo um craque, cada toque na bola e cada chute dado são momentos únicos na vida de uma pessoa, seja uma criança ou cinquentão grisalho. São essas emoções que fazem com que um torneio disputado em uma comunidade adquira ares de final de Copa do Mundo. Emoções renovadas toda vez que uma criança se sinta como um profissional e sonhe. Ou toda vez que alguém encontre um amigo para se divertir.
É por isso que os “terrões” devem ser valorizados. Porque não são espaços desperdiçados, ou vazios, são a alma de uma região, de uma comunidade. E o futebol é uma força que pulsa em todos que dependem de um campinho de barro.
* Mário é estudante de Jornalismo na UFPE, fã de esportes, apaixonado por futebol, rúgbi e futebol americano. É colaborador no site Torcedores.com e repórter esportivo na Folha de Pernambuco. Já trabalhou também no Cabanga Iate Clube de Pernambuco.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.