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Sem “carreatas da morte”, bolsonarismo recorre à explosão de fake news

Maria Carolina Santos / 30/03/2020

Crédito: Agência Pará

Em Florianópolis, houve vaias e registros de arremesso de esterco. Em João Pessoa, alguns carros foram alvos de ovos. No Recife, a chamada “carreata da morte”, em que apoiadores do presidente Bolsonaro pedem a volta à “normalidade” em meio à pandemia do coronavírus, simplesmente não aconteceu.

No domingo, 29, cerca de dez carros com bandeiras do Brasil foram vistos buzinando pela avenida Boa Viagem. Mas a carreata para valer estava prevista para a manhã desta segunda-feira (30) e iria fazer o trajeto do Palácio do Campo das Princesas até a Prefeitura do Recife. No entanto, apenas quatro pessoas, com bandeiras do Brasil, foram até o Marco Zero em um irrelevante protesto. Pelo menos duas eram idosas.

Isso porque, desde sexta-feira, o Ministério Público de Pernambuco recomendou que a Secretaria de Defesa Social agisse para impedir quaisquer tipos de manifestações contra o isolamento social. Em nota, a Secretaria de Defesa Social afirmou que quem descumprisse os decretos estaduais sobre a quarentena estaria sujeito a penas de um mês a um ano de reclusão.

Os carros usados na carreata poderiam ser apreendidos e até confiscados pelo Estado. Para fiscalizar o cumprimento dos decretos, policiais militares e agentes do Detran estiveram hoje no Marco Zero.

Ao contrário do que aconteceu na manifestação pró-Bolsonaro do dia 15 de março, não houve desobediência por parte dos apoiadores do presidente. Os grupos de extrema direita se limitaram às postagens em que chamam o governador Paulo Câmara (PSB) de ditador, por impedir a carreata que pede pela volta da normalidade em plena pandemia — o que, segundo cálculos do instituto Imperial College, de Londres, poderia custar a vida de mais de 1 milhão de brasileiros.

Coronavírus isola Bolsonaro

O consenso mundial de que o isolamento é a única arma atual contra a covid-19 — uma doença para a qual não existe ainda tratamento eficaz ou vacina — acabou movendo finalmente as instituições contra os atos irresponsáveis de Bolsonaro, único chefe de uma nação a ser contra o isolamento, o que coloca em risco milhões de vidas no Brasil.

Indo contra as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do próprio Ministério da Saúde, nos últimos dias Bolsonaro enfileirou frases de efeito na medida para reverberar em suas redes: chamou de covarde quem fica em casa, repetiu o bordão de que o Brasil não pode parar, disse que todo mundo vai morrer um dia.

Em atos concretos pelo fim do isolamento, teve suas ações cortadas pela Justiça. A autorização para que igrejas neopentecostais continuassem com cultos em São Paulo foi suspensa. A renda mínima de R$ 200 foi elevada pela Câmara dos Deputados para até R$ 1,2 mil. Até posts da conta oficial dele, em que se mostrava entre populares em uma caminhada pelas ruas de Brasília, foram apagados pelo Twitter. As esquerdas também se uniram, com Ciro Gomes (PDT), Fernando Haddad (PT), Flávio Dino (PCdoB) e Guilherme Boulos (Psol) pedindo hoje em uma carta a renúncia de Bolsonaro.

“Existe o consenso mundial na forma de combater o coronavírus, que é o consenso da quarentena. Mídia, Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal, justiças estaduais, Ministério Público. Esse consenso isolou o presidente Bolsonaro. O que isso significa? Que as instituições estão funcionando adequadamente? Vejo que sim. As instituições em relação ao presidente Bolsonaro têm se comportado de maneira muito eficaz. Não está dando brecha ou apoiando nenhum tipo de discurso que venha fugir a esse consenso”, afirma o cientista política Adriano Oliveira, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

O cientista político também vê que o governo Bolsonaro se mostra inerte ao lidar com a crise econômica. “O presidente Bolsonaro tem um discurso tipicamente econômico, mas não traz propostas objetivas para enfrentar toda a crise econômica que a pandemia do coronavírus irá trazer. Quem está agindo são outras instituições. Como o Judiciário que diz `não tem que respeitar o equilíbrio fiscal, esse é o momento de crise, portanto precisamos gastar`”, acredita o professor. “A quarentena é o meio de combate ao coronavírus e precisa ser cumprida. Só o presidente fala isoladamente em outros métodos. Por isso que ele está sozinho”.

Fake news em polvorosa

Isolado politicamente, sim. Mas Bolsonaro ainda conta com um exército de apoiadores nas redes sociais – humanos e robôs. Nos últimos dias, houve uma explosão de notícias e áudios falsos fabricados para negar a pandemia de coronavírus.

Um estudo publicado ontem (29), fruto de uma parceria entre os projetos Eleições Sem Fake, do Departamento de Ciência da Computação, da UFMG, e Monitor do Debate Político no Meio Digital, da Universidade de São Paulo (USP), analisou 2.108 áudios que circularam entre os dias 24 e 28 de março, abrangendo 522 grupos públicos de Whatsapp, com a participação de mais de 18 mil usuários ativos.

O estudo concluiu que entre os 20 áudios com maior circulação, cinco negam a gravidade do Covid-19. Esses cinco áudios representam 35% dos compartilhamentos totais do estudo. Quatro desses áudios estão entre os 10 mais compartilhados nos grupos analisados.

Nos áudios, há falsos depoimentos de médicos e testemunhas. Descrevem um cenário de hospitais e funerárias vazios e “denunciam” que mortos por acidente estão sendo contabilizados como mortos pelo vírus — ainda que o Brasil viva um cenário de falta de exames até para pacientes em estado grave.

O sexto áudio mais compartilhado, inclusive, tem o Recife como seu falso cenário. E provavelmente você ouviu falar dele: é o caso de um borracheiro/motorista de caminhão que se acidentou e foi levado ao hospital Maria Lucinda, no bairro de Parnamirim.

A historinha contada no áudio é de que um motorista de caminhão morreu em um acidente e que seu atestado de óbito foi como Covid-19. No áudio, a pessoa se dirige a um interlocutor chamado Elias para quem teria sido enviado um arquivo com o atestado de óbito. O narrador diz que “esse amigo meu” teria morrido porque o “pneu do caminhão estourou quando ele fazia o serviço dele”.

A vítima teria sido então levada ao Hospital Maria Lucinda, hospital privado que também atende pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), que teria emitido um atestado de óbito como sendo por coronavírus. “A conspiração triste pra derrubar o Governo Bolsonaro, ou seja (sic), a maioria das pessoas que estão morrendo no Estado, eles tão colocando que é coronavírus”. “(…) eu passei lá e vi, foi um acidente que matou ele”, diz o áudio com a falsa informação.

Em nota, a Secretaria de Saúde do Estado afirmou que não houve nenhum óbito por covid-19 no Hospital Maria Lucinda. Ainda mais de uma pessoa que sofreu um acidente.

Mas, como toda boa mentira, usa elementos reais: no último dia 23 de março, o Hospital Maria Lucinda realmente registrou a morte de um homem de 57 anos que estava internado há dois dias.

A declaração de óbito, assinada pela médica que acompanhou o paciente na unidade de saúde, colocou três possibilidades: síndrome respiratória aguda, Covid-19 e pneumonia comunitária não-especificada. Informações que foram repetidas no atestado de óbito.

A vigilância epidemiológica testou as amostras do paciente e o resultado foi negativo para Covid-19 e positivo para Influenza A. “A Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE) notificou o hospital sobre a incorreção no preenchimento da declaração de óbito e encaminhou cópia do exame que identificou a testagem positiva para Influenza A e negativa para Covid-19, do referido paciente”, informou o governo estadual.

A secretaria esclareceu ainda que o óbito nunca constou nas estatísticas de mortes por Covid-19. “Os óbitos pelo novo Coronavírus não são contabilizados a partir de atestados, mas sim por testagem realizada pela Vigilância Epidemiológica do Estado”, diz a nota da secretaria.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org