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Crédito: Diocese de Jequié
Na véspera do início oficial da campanha eleitoral e em um estilo desprovido de sutileza, o bispo católico de Caruaru, dom José Ruy Gonçalves Lopes, publicou uma nota orientando os fiéis a votarem contra o comunismo. A publicação agradou aos grupos e candidatos de extrema-direita, que logo postaram o documento em seus blogs e redes sociais, e provocou reações indignadas entre grupos de católicos progressistas.
A maior parte da nota da diocese de Caruaru é insípida, com recomendações genéricas para o período eleitoral. Mas, logo no segundo parágrafo, o bispo recorre ao jargão bolsonarista para demarcar sua posição: “A Igreja Católica possui grande simpatia pela Democracia e grande aversão ao comunismo, diz a sua doutrina (DSI, 160). Por isso o voto consciente é a melhor forma não apenas de reivindicar, mas de determinar o futuro da sociedade”.
O assessor de imprensa da diocese, padre Jefferson Adelino, confirmou a veracidade da nota, mas garante que seu conteúdo não significa um posicionamento partidário. “A Diocese não se posiciona em favor ou contra qualquer partido. Portanto, não se refere a nenhum partido, mas um ao sistema político comunista, explicou o padre-assessor”.
Questionado se o texto do parágrafo mencionado não poderia ser confundido com o discurso dos grupos de extrema-direita que acusam o próprio papa Francisco de ser comunista, o padre Jefferson rechaçou essa possibilidade: “O papa Francisco ensina o que a Doutrina a Igreja ensina. A nota está de acordo com a Doutrina Social da Igreja, e desse modo, de acordo com o Papa Francisco. Quem fala que o Papa é comunista certamente não vai a fundo do seu pensamento ou da Doutrina Social da Igreja”.
Dom José Ruy tem 53 anos e assumiu a diocese em setembro do ano passado. Logo ao chegar em Caruaru, deixou claro na homilia durante a solenidade de sua posse (ou consagração, no jargão católico) que as causas sociais não seriam a prioridade de seu episcopado, totalmente voltado aos trabalhos “espirituais”.
Em 2014, quando era bispo de Jequié, na Bahia, já havia emitido outra nota, daquela vez contrária à chamada “ideologia de gênero” com uma menção explícita ao PT, dizendo “se manifestar peremptoriamente contrária a esta ideologia do partido que governa a nação que deseja ‘impor’ pela maioria de sua base aliada um projeto que quer eliminar a ideia de que os seres humanos se dividem em dois sexos”.
O item 160 da Doutrina Social da Igreja não inclui nenhuma menção ao comunismo, socialismo ou a qualquer simpatia ideológica do Vaticano. De acordo com o site oficial da Cúria Romana, eis o que diz o trecho usado como referência por dom José Ruy:
Os princípios permanentes da doutrina social da Igreja constituem os verdadeiros e próprios gonzos do ensinamento social católico: trata-se do princípio da dignidade da pessoa humana ― já tratado no capítulo anterior ― no qual todos os demais princípios ou conteúdos da doutrina social da Igreja têm fundamento, do bem comum, da subsidiariedade e da solidariedade. Estes princípios, expressões da verdade inteira sobre o homem conhecida através da razão e da fé, promanam «do encontro da mensagem evangélica e de suas exigências, resumidas no mandamento supremo do amor com os problemas que emanam da vida da sociedade». A Igreja, no curso da história e à luz do Espírito, refletindo sapientemente no seio da própria tradição de fé, pôde dar-lhes fundamentação e configuração cada vez mais acuradas, individualizando-os progressivamente no esforço de responder com coerência às exigências dos tempos e aos contínuos progressos da vida social.
Se a direção do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) preferiu não comentar o documento da diocese, o presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Leonardo Bulhões, criticou a tomada de posição do bispo da cidade. “Penso que a gente está num momento em que a dicotomia não é entre comunistas e não comunistas, mas sim em quem defende a vida e quem se nega a realizar políticas em defesa dela”, comentou.
Bulhões recordou também à visita do ex-presidente Lula ao papa Francisco “pra falar sobre a defesa dos mais pobres, do combate à fome e pela vida. As pessoas cristãs sabem quem está defendendo a vida e quem não está. E isso passa longe de quem é comunista ou não”.
Entre os católicos progressistas, a nota provocou reações mais enérgicas do que entre os políticos de esquerda. A convite do grupo Encontro da Partilha, a Marco Zero Conteúdo acompanhou uma celebração online na tarde deste domingo, 27. O assunto foi lembrado por vários participantes.
Para o monge beneditino e teólogo Marcelo Barros, a nota merece ser criticada “tanto pelo conteúdo quanto pelo método. É inadmissível que um bispo transforme sua opinião pessoal em posição da igreja. O papa vem pedindo para que os bispos não façam isso. A nota é ridícula”. Mencionando o trecho do Evangelho de São Mateus em que Jesus Cristo enfrenta o sumo sacerdote judeu, Barros diz que oferecer a própria posição como sendo a da igreja é “fruto da soberba”.
Barros, especialista em estudos bíblicos e autor de oito livros de teologia, lembrou que a única referência explicitamente anticomunista da igreja data do direito canônico de 1918, em reação ao fato da Revolução Russa ter considerado o ateísmo como um dogma.
Após a celebração online, os integrantes do grupo que, antes da pandemia, costumava realizar os encontros na igreja das Fronteiras, comentaram a nota da diocese. Uma das coordenadoras do grupo, Rejane Menezes, afirma que problema vai além do bispo de Caruaru: “O rei Luiz XIV, na França do século XVIII, dizia ‘O Estado sou eu’. Hoje os bispos continuam a dizer ‘A Igreja sou eu’. Não, a Igreja é povo. O povo de Deus é maior que a instituição. Só a hierarquia da Igreja Católica ainda não percebeu isso”.
Um dos organizadores do Grito dos Excluídos, Alexandre Fragoso acredita que dom José Ruy precisa ler mais o Novo Testamento. “Karl Marx, por exemplo, leu e foi buscar no capítulo 2 dos Atos dos Apóstolos a inspiração para sua famosa frase ‘De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades’.” O trecho da bíblia citado por Teles diz que “Todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum / E vendiam suas propriedades e bens, e repartiam com todos, segundo cada um havia de mister.”
Leia a nota da diocese de Caruaru na íntegra:
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.