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Além de não serem priorizadas na vacinação, Maria Adriana e a filha Jenifer, do povo xucuru, se queixam de que tiverem negado o direito de se identificar como indígenas no posto de saúde do Ibura, quando a mãe apresentou sintomas da covid. Crédito: Adalice Cordeiro de Melo
Texto atualizado às 15h desta quinta-feira (6)
Pernambuco abriga uma população de mais de 6 mil indígenas vivendo em áreas urbanas, segundo mapeamento do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mas eles seguem sendo ignorados pelo Governo do Estado. Por duas vezes, o Ministério da Saúde notificou o governador Paulo Câmara (PSB) para que informasse o quantitativo detalhado por município, a última em 7 de abril, mas até o momento não obteve a resposta.
Os dados solicitados pelo ministro Marcelo Queiroga são para subsidiar a resposta ao Supremo Tribunal Federal (STF) em atendimento à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709. A ação, conduzida pelo ministro Luís Roberto Barroso, determina a priorização, no Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19, de toda a população indígena em contexto urbano “com barreira de acesso ao SUS”, que, por sua vez, deve ser seguida por estados e municípios. A determinação do magistrado foi proferida em 16 de março, portanto, quase 50 dias depois, a gestão socialista não se mexeu para cumprir a decisão judicial.
“Enviamos ofício para a Secretaria Estadual de Saúde e para o Conselho Estadual de Saúde [presidido pelo secretário André Longo], estamos tentando construir o diálogo, mas não tivemos nenhum retorno. Enquanto isso, temos muitos parentes contraindo a covid-19 e alguns morrendo”, diz o presidente da Associação Indígena em Contexto Urbano Karaxuwanassu (Assicuka), Ziel Karapotó.
Em março, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou procedimento preparatório para apurar a ausência de inclusão da população indígena que vive em contexto urbano, no estado de Pernambuco, em grupo prioritário da vacinação contra a covid-19. O órgão expediu ofício para a Secretaria Estadual de Saúde, para que informe se e como será operacionalizada a inclusão dos povos originários localizados em contexto urbano sem acesso ao SUS ou em terras não homologadas no Plano de Prioridades de Imunização da Covid-19 do Governo do Estado de Pernambuco.
Ainda buscando que o estado cumpra a decisão cautelar proferida pelo ministro Luís Roberto Barroso, o MPF também pediu “a previsão de vacinação da população indígena em contexto urbano no estado, considerando a situação de maior vulnerabilidade dessa população”. O prazo para as repostas foi esticado até o fim de maio.
Em nota, o Ministério da Saúde alega que está trabalhando para atender a decisão do STF, por isso, “a recomendação da pasta é para que os gestores locais do SUS sigam a prioridade determinada pelo Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra Covid-19 (PNO)”, que já contempla as especificidades da ADPF 709. Assim o órgão federal pode garantir as doses necessárias do imunizante para os povos tradicionais.
Quatro horas após a publicação desta reportagem, a Secretaria Estadual de Saúde disse, por meio de nota, que respondeu ao Ministério da Saúde no dia 23 de abril. Segundo a pasta, em Pernambuco há 25.780 pessoas indígenas vivendo em áreas urbanas, conforme dados coletados no Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A informação que o órgão estadual diz que enviou não responde às demandas do ministério, que pediu o “número de indígenas em contexto urbano por município de abrangência do estado” e o “número de indígenas em contexto urbano com barreira de acesso ao SUS por município de abrangência do estado”. A própria equipe do ministro Marcelo Queiroga também poderia acessar a base de informações do IBGE.
A secretaria não quis responder por que o governador Paulo Câmara ignorou o primeiro ofício. Na parte final da nota, a pasta afirma que não há “nenhuma sinalização do Governo Federal sobre a vacinação prioritária dos indígenas em contexto urbano, tampouco foram enviadas doses para esta finalidade”.
A alegação da secretaria comandada por André Longo é contraditória, pois nos ofícios enviados está claro o movimento da União para atender a decisão do STF. Além disso, cidades como Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, já começaram a imunização dos indígenas que moram em espaços urbanos.
Recife é a capital nordestina com mais indígenas. Conforme dados da Assicuka, estima-se que na cidade vivam, atualmente, 3.645 membros de povos originários, a maioria deles concentrada nos bairros de Joana Bezerra e do Coque. Dados do censo IBGE, de 2010, contabilizam, entretanto, a presença de famílias indígenas em todas as regiões da capital.
Seguindo a estratégia do Governo de Pernambuco, a Prefeitura do Recife também vem se esquivando da priorização da imunização dos indígenas em contexto urbano diante das cobranças das instituições ligadas ao sistema de Justiça. O defensor regional de direitos humanos da Defensoria Pública da União (DPU), André Carneiro Leão, solicitou informações sobre a vacinação dos indígenas que residem no Recife, mas, segundo ele, a resposta da secretária de saúde, Luciana Albuquerque, “foi evasiva”.
Sem um retorno satisfatório da pasta municipal de saúde, o órgão então expediu uma recomendação ao Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) – unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) –, em Pernambuco, mas, segundo Carneiro Leão, “a resposta foi no sentido de que o órgão não teria responsabilidade sobre o tema”.
“Diante dessas omissões, estamos estudando a viabilidade de uma ação civil pública contra os três entes da Federação que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) e, portanto, têm responsabilidade solidária”, afirma o defensor.
Como se não bastasse o cenário preocupante diante da falta de perspectiva em relação à vacinação, pessoas indígenas que moram na capital pernambucana estão tendo o direito de reconhecer sua etnia violado em unidades de saúde. Pelo menos dois episódios foram registrados na Policlínica e Maternidade Professor Arnaldo Marques, no Ibura, periferia da zona sul do Recife.
No último dia 26 de abril, Maria Adriana Cordeiro de Melo, 39 anos, e a filha, Jenifer Adalice Cordeiro de Melo Silva, 16 anos, deram entrada na unidade de saúde municipal com sintomas de dores de garganta e de cabeça, febre e sem olfato – características comuns de covid-19. No momento do cadastro, as duas foram classificadas como de raça amarela.
“A menina lá disse que não tinha necessidade [de informar que era indígena], mas eu insisti que era um direito meu informar minha raça e que ela trocasse”, conta Maria Adriana, que chegou a ser repreendida por outro servidor que disse com ironia que ela “estava com dificuldade de respirar, mas a boquinha reclamando”. “Eles não trocaram. Como eu estava muito cansada e com muita falta de ar preferi ser socorrida e não arengar”, lembra a índigena, que é pertence ao povo xukuru.
Maria Adriana teve o mesmo problema no centro de testagem montado no Geraldão, bairro da Imbiribeira. “Eu estava melhor e questionei que não aceitava aquilo [ser registrada como amarela], que era um direito meu, aí eles ajeitaram na hora [e colocaram como indígena]”, diz.
O presidente da Assicuka, Ziel Karapotó, lamenta que unidades de saúde pública estejam negando aos indígenas seu direito de se reconhecer e se apresentar como indígenas. “Além de tudo, quando a gente chega doente nesses locais os servidores nos colocam como amarelos ou pardos, ou seja, temos a nossa identidade negada”, reclama.
No último boletim epidemiológico do Recife, até esta terça-feira (4), dos 106.560 casos confirmados de infecção por coronavírus, tanto entre os casos graves como leves, o percentual de indígenas é de 0,1%.
Procurada, a Secretaria Saúde do Recife não quis comentar sobre a denúncia de violação dos direitos das indígenas na policlínica do Ibura, nem se haverá algum tipo de apuração em relação ao episódio. A pasta também não respondeu qual é a orientação repassada aos profissionais das unidades de saúde em relação ao cadastro de pacientes e ao respeito à autodeclaração.
Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo Representativo, com o apoio do Google News Initiative”.
Jornalista formado pela Unicap e mestrando em jornalismo pela UFPB. Atuou como repórter no Diario de Pernambuco e Folha de Pernambuco. Foi trainee e correspondente da Folha de S.Paulo, correspondente do Estadão, colaborador do UOL e da Veja, além de assessor de imprensa. Vamos contar novas histórias? Manda a tua para klebernunes.marcozero@gmail.com