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Crédito: Adriana Amâncio/MZ Conteúdo
por Adriana Amâncio
A dura realidade do cotidiano mantém vivos os sentimentos de “revolta e indignação” vividos por Marlene Aparecida da Silva Januário, quando, há dois anos e sete meses, foi retirada do apartamento 1217 do edifício Holiday. Ela era proprietária do imóvel, comprado com todas as economias que tinha. Ícone da arquitetura modernista, o edifício era um marco na paisagem do bairro de Boa Viagem desde sua conclusão em 1957. Encravado na região que possui o metro quadrado mais caro da cidade, o Holiday está vazio desde a interdição, em março de 2019, e Marlene está morando numa favela nas proximidades. “Eu vivo na favela Entra Apulso, morando com ratos, pagando R$ 300. Não tenho trabalho, sou doente e ganho por mês, sabe quanto? R$ 350”, desabafa, segurando a escritura original do imóvel quitado.
Marlene diz não ter esperanças com um “Estado que não respeita a Constituição Federal” e que a “jogou no meio da rua”, queixa-se. Portadora de transtornos mentais, teve o seu quadro de saúde agravado após a remoção e passou a ser acompanhada pelo Centro de Atenção Psicossocial (Caps). “Eu peço que eles tomem uma providência para mostrar a esse Governo que nós não estamos sozinhos no mundo. Somos menos favorecidos, sim, mas temos cérebro”, diz indignada. Para Marlene, o termo “eles” na sua frase é a Organização das Nações Unidas, que, para ela, é a única entidade que pode dar jeito na sua situação e na das quase três mil pessoas que moravam no Holiday.
Vizinho de Marlene, Rosiel Gomes da Silva, de 49 anos, é artesão e trabalha próximo ao edifício, onde, por 30 anos, morou em apartamento próprio e manteve um quitinete de aluguel. Quase três anos após a remoção, ele afirma nunca ter se adaptado em nenhum lugar. Isso porque já passou por três diferentes endereços nos bairros de Brasília Teimosa, Entra Apulso e, agora, Cajueiro Seco, em Jaboatão dos Guararapes. “Não é fácil passar 30 anos morando em um lugar e sair assim. Eu não me adaptei ainda. Minha vida era toda aqui no Holiday”, lamenta. A adaptação não é o único problema enfrentado por Rosiel, que passou a pagar aluguel e ainda perdeu a renda de um quitinete próprio, que mantinha alugado no edifício. “Eu perdi a renda e, agora, estou pagando aluguel de R$ 500. Tá bem difícil”, desabafa.
A remoção das famílias do Holiday, em março de 2019, por parte da prefeitura do Recife foi autorizada pelo juiz da 7ª Vara da Fazenda da Capital, Luiz Rocha. O motivo alegado foram os problemas estruturais, acumulados durante décadas, e na rede elétrica. Desde então, não só os reparos não foram feitos, como também, o que restou da estrutura foi saqueado.
“Fecharam [o prédio], deixaram levar porta, não tem nada dentro do apartamento”, denuncia José Ferreira. Ele é aposentado e comprou um apartamento no Holiday, financiado em 20 anos, dos quais pagou 16 e, mesmo tendo sido removido do imóvel, segue pagando. Além disso, José tem que arcar com um aluguel de R$ 800 da nova casa e outros R$ 70 da despesa do condomínio.
A questão da habitação, embora seja relegada ao campo comercial, na verdade, trata-se de um direito social, previsto no Artigo 6º da Constituição Federal Brasileira. Por essa razão, a questão das famílias do Holiday transcende o simples impasse sobre ter ou não dinheiro para recuperar o prédio. A diretora da Habitat Brasil no Recife, Socorro Leite, explica que o Holiday foi construído para famílias de classe média, que com o passar do tempo, foram empobrecendo ou repassaram o imóvel para outras famílias de baixa renda. Essa mudança foi acompanhada pela degradação do prédio por falta de manutenção.
Para Socorro, é visível a ausência do poder público no caso Holiday , já que as famílias residentes alí são de baixa renda e precisam da intervenção estatal. “Famílias de baixa renda, que demandam alguma atuação do Estado para a garantia do direito à moradia. Tirar as famílias do Holiday simplesmente significa aumentar o déficit habitacional do Recife, que já é alto, cerca de 70 mil pessoas precisam de uma moradia,” critica ela. Por ser bem localizado, pois fica próximo a beira mar, o Holiday garantia às famílias possibilidades de geração de renda. A saída do imóvel levou muitas delas a buscarem moradias próximas ao bairro para assegurar as relações econômicas. Essas moradias, quase sempre são precárias, pois as casas com melhor estrutura possuem um valor mais alto.
Na avaliação de Rud Rafael, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a simples remoção das famílias do Holiday faz parte de um processo de higienização da cidade. “É a continuidade de uma política sistemática de higienização da cidade do Recife, de retirar os pobres das áreas mais valorizadas da cidade”, afirma. Ele relaciona a ação à especulação imobiliária do Recife, que segundo dados do Índice FipeZap (indicador de acompanhamento da evolução dos preços do mercado imobiliário) divulgados em setembro deste ano, possui o segundo aluguel mais caro do Brasil. As mais de 400 famílias impactadas moravam em uma área privilegiada, mantinham uma relação econômica com o local, que foi “quebrada pela prefeitura sem nenhuma contrapartida, esse caso do Holiday é simbólico de como a gente constrói uma cidade cada vez menos pro povo e cada vez mais para o lucro”, arremata Rafael.
O coordenador global da Aliança Internacional de Habitantes (IAI, sigla em inglês), uma organização formada por diversas instituições populares que atuam em todos os continentes, Cesare Ottolini, presta sua solidariedade às famílias do Holiday. Ele diz que a ONU condena essas remoções. “Toda remoção ou despejo de famílias fere o Artigo 11 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, informa. A ONU reconhece o direito das pessoas a um nível de vida adequado para si e para a sua família, incluindo alimentação, vestuário e habitação adequados.
A Aliança Internacional de Habitantes atua, por meio da Campanha Despejo Zero, em diversos conflitos envolvendo a ameaça do direito à moradia no mundo. Antes de intervir nos casos, a organização realiza um Tribunal Internacional de Despejos, que é um fórum popular que escuta os relatos de ameaças ao direito à moradia, enfrentados pelas famílias. A organização documenta as denúncias e busca ajuda internacional para garantir os direitos das famílias ameaçadas.
Em Nairobi, no Quênia, por exemplo, a Campanha conseguiu evitar o despejo de milhares de famílias que moravam em habitações precárias em regiões de periferia. A ação conseguiu um acordo bilateral entre Quênia e Itália no valor de 40 bilhões de euros, para recuperar as casas dessas famílias.
Com base em sua experiência internacional, Cesare afirma que, nos casos em que é necessário remover as famílias, é preciso seguir um protocolo que envolve, por exemplo, a garantia por parte do poder público da realocação das famílias em casas próximas à região da habitação original para evitar ruptura com os seu laços econômicos, educacionais e culturais.
Por fim, Cesare defende que as famílias permaneçam unidas e busquem um espaço de diálogo com o poder público em busca da solução do problema. Ele recomenda buscar apoios junto à solidariedade internacional, a exemplo dos relatores da ONU. Outra possibilidade é recorrer ao recurso de Função Social da Moradia, previsto no Plano Diretor do Recife, Lei 17.511/08, que trata de assentamentos habitacionais ocupados por população de baixa renda, que surgem de forma espontânea, carentes de infraestrutura e que são passíveis de regularização urbanística e fundiária. “Se a legislação permite, essa seria outra possibilidade para as famílias do Holiday”, afirma Cesare.
Socorro Leite, da Habitat Brasil, conhece bem a legislação local, reforça a recomendação feita por Cesare. “O fato do Holiday ser uma moradia de interesse social chama o poder público à responsabilidade para buscar uma solução para o problema. Não é simplesmente retirar as famílias. O próprio Plano Diretor do Recife tem um instrumento que poderia ser aplicado ao Holiday, que é o Imóvel Especial de Interesse Social, que possibilitaria um trabalho [da prefeitura] para consolidação de moradia adequada em imóveis que estivessem desocupados”, reforça Socorro.
Enquanto fazem malabarismos para sobreviver na nova rotina fora do Holiday, as famílias ainda precisam lidar com o medo de que o prédio seja desapropriado e que venha a ser comprado por alguma imobiliária. Para Rud Rafael, do MTST, o fantasma que ameaça as vidas das famílias do edifício, é consequência de um regime praticamente inconstitucional . “O direito à moradia praticamente não existe na cidade, a partir de uma ação do poder público, que é de não ter uma política de moradia e, em casos como esse, ao violar o direito à moradia quando ele existe. Aquilo que deveria ser um direito, infelizmente, no Recife, é um privilégio para quem pode pagar”, afirma Rud Rafael. Socorro Leite endossa a análise: “o direito à moradia é negligenciado e, muitas vezes, violado pelo próprio Estado, quando cuida de fazer uma remoção sem trazer uma alternativa para essas famílias”, reitera.
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