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Assassinato do menino Jonatas, de apenas 9 anos, na Mata Sul, com características de pistolagem, mostra o alto grau da violência armada no estado. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Por Cecília Olliveira*
A sensação de insegurança e o medo da violência são sentimentos comuns de boa parte dos moradores do Grande Recife. Entender a dimensão desta violência é o desafio do Fogo Cruzado, instituto que há quatro anos tem produzido dados sobre a violência armada na Região Metropolitana do Recife. Ancoramos por aqui em abril de 2018, e desde então mapeamos mais de 6 mil tiroteios, que deixaram mais de 4.600 mortos. Os números são altíssimos, e justificam esse medo. Se não há plano de governo que alcance bons resultados na segurança pública, precisamos agir.
Passamos a mapear os tiroteios na Região Metropolitana do Recife em 2018 porque queríamos entender, através dos dados, as dinâmicas da violência armada na região. O que o Grande Recife carrega de diferente de outras metrópoles brasileiras? O que tem de igual? O que deu certo em outros lugares que pode funcionar também por aqui? Descobrimos, por exemplo, que muitas das mortes por armas de fogo acontecem dentro de casa. Nesses quatro anos, 784 pessoas foram baleadas naquele que deveria ser seu lugar mais seguro, o lar. Analisando esta informação, foi possível notar que estas balas têm alvo certo, normalmente frutos de acerto de contas ou homicídios sob encomenda. Percebemos também que o número de tiroteios dentro de presídios é absurdo. Foram 23 tiroteios com 61 baleados nos últimos quatro anos. Como aquelas armas entraram ali?? Como uma pessoa consegue atirar dentro de um presídio sem qualquer obstáculo?
No ano passado, armas de fogo foram usadas em mais de 80% dos homicídios cometidos no Estado. Mas a Secretaria de Defesa Social não tem um banco de dados com detalhes sobre as armas apreendidas – o que era previsto pelo Pacto pela Vida quando o programa foi instituído, em 2007. E sabe qual o impacto disso? Não é possível saber quem matou quem, com que arma, se essa arma foi usada em outros crimes, de onde ela veio. Estas armas precisam ser rastreadas para que seja possível elucidar crimes e para mapear as ocorrências. A falta dessas informações dificulta o combate à violência.
Somado a isso, no ano passado a Polícia Civil descobriu que mais de 300 armas e milhares de munições foram furtadas do depósito da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), no Recife. De acordo com a investigação, o material foi vendido para traficantes. Ou seja, as armas da polícia podem estar matando por aí. É preciso manter um controle rígido sobre os paióis das polícias e investigar estes desvios.
Ao mesmo tempo em que o acesso às armas foi sendo facilitado, os mecanismos de fiscalização e investigação não foram aprimorados.
O Pacto Pela Vida, tido como transformador em sua criação, em 2007, murchou com o passar dos anos. O programa do governo do estado que tinha como meta a redução de homicídios é passado. Isso é comum com muitos programas que não são construídos como projeto de estado, mas de governo. A gestão passa, e o projeto também.
Há quase uma década, as regiões Norte e Nordeste, que concentram apenas 35% da população brasileira, respondem por mais da metade das mortes violentas do país – a maioria delas perpetradas com armas de fogo. Isso mostra o tamanho do problema da segurança pública. A população nordestina assiste seus estados serem aqueles que mais sobem no ranking de mortes por armas de fogo ano após ano. A região é líder nesse índice (37% do total), e supera o Sudeste em números absolutos desde 2009.
O contexto da violência em Pernambuco é difícil: policiais civis se manifestam por valorização e melhores condições de trabalho, e delegacias têm até fechado mais cedo porque faltam profissionais e estrutura, gerando subnotificações de denúncias e queixas de crimes. Nesta brecha, grupos armados tomam conta de regiões inteiras. No Cabo de Santo Agostinho houve até toque de recolher no ano passado. Este ano não está sendo muito diferente: 2022 já começou com a morte de um menino de 9 anos, filho de um líder rural, assassinado a tiros por homens encapuzados na Mata Sul. O promotor do Grupo de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público que investiga o crime disse que ‘é típico de atividade de grupo de extermínio e pistolagem’
Todo esse cenário de falência na segurança pública é ancorado pela falta de transparência na gestão. Foi isso que motivou a abertura do Fogo Cruzado em Pernambuco. Em 2017, a divulgação diária dos números de homicídios, informações como os nomes, idades e cor da pele das vítimas no estado, saiu do ar. Desde então é divulgado apenas um boletim mensal com o número de mortes por cidade. O Ministério Público então começou a investigar a falta de transparência – e isso ainda está pendente.
Esse vácuo estratégico na produção e divulgação de dados mostra que nós temos que agir. Dados sobre violência armada, em específico, não eram produzidos – e não apenas em PE. Estes dados nos revelam mais sobre dinâmicas criminais do que a análise dos homicídios em si, devido a sua agilidade e também a possibilidade de análise em menores períodos de tempo.
Nós, sociedade, podemos fazer isso. Produzir as informações que precisamos para cobrar a responsabilidade das autoridades com propriedade. É essa a chave.
* Cecília Olliveira é jornalista investigativa dedicada à cobertura do tráfico de drogas e de armas e à violência. Em 2016, frustrada com a falta de dados publicamente disponíveis, ela começou a mapear os tiroteios no Rio de Janeiro. Essa ideia se transformou no Fogo Cruzado, hoje um Instituto que usa tecnologia para produzir e divulgar dados abertos e colaborativos sobre violência armada. Hoje o FC está se espalhando por todas as grandes cidades do Brasil. Ela foi a única finalista latino-americana do Prêmio Repórteres Sem Fronteiras para a Imprensa de 2020, que celebra vozes intrépidas e corajosas na mídia global.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.