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“Por que tanta injustiça? Por que eu sou negro e pobre?”

Raíssa Ebrahim / 01/06/2022

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Seis meses, 24 dias, 17 horas e 43 minutos. André Arcanjo tem na ponta da língua o tempo que passou preso após ser indiciado pela Polícia Civil de Pernambuco pela participação num latrocínio que ele assegura não ter qualquer envolvimento. “Eu só quero que a verdade prevaleça. Porque eu perdi muita coisa. Ganhei muitos amigos que eu nem imaginava e também perdi. Perdi tempo, perdi um pedaço muito valioso na minha vida”, lamenta.

A vítima foi um vizinho idoso a quem André, órfão de pai vivo, ajudava nos cuidados com a esposa acamada e com quem desenvolveu uma relação paternal que já durava 20 anos. Auxiliar de farmácia, agora desempregado, André é um homem negro, de 41 anos, morador do bairro de Areias, na zona oeste do Recife. Na ocasião do crime, ele estava no lugar certo, mas na hora errada.

“Estar lá dentro, pagando por algo que você não cometeu é terrível. A todo momento, eu me perguntava o porquê disso, o porquê de tanta injustiça. Por que eu sou negro? Por que eu sou pobre? Por quê?”, questionou. “Eu fui preso sem saber o porquê. Chegando no Cotel (Centro de Observação e Triagem Professor Everardo Luna), quando a gente entrou ali naquele presídio, meu mundo acabou. Todas as esperanças ali acabaram. Eu disse ‘meu Deus, o que é que está acontecendo?’”, lembrou André.

A Marco Zero começou a acompanhar a história dele em outubro de 2021 e, neste mês, entrevistou-o pessoalmente, já em casa, junto com a mãe, Maria do Carmo, de 62 anos, aposentada. André contou detalhes do dia do crime e também dos dias de desespero no Cotel. Depois de um habeas corpus inicialmente negado, ele e os outros dois acusados receberam alvará de soltura no final de abril. Nesta quinta-feira, 2 de junho, acontecerá a segunda audiência de instrução no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE).

Na primeira audiência de instrução, em 19 de abril, de acordo com a defesa, nenhuma das quatro testemunhas ouvidas – consideradas peças-chave da acusação – apontou qualquer envolvimento de André no crime de latrocínio. Pelo contrário, testemunhas na verdade apontaram que ele é uma pessoa de confiança e evidenciaram sua relação de longa data com a vítima. Uma delas até desmentiu a versão do inquérito da Polícia Civil de que André teria facilitado a entrada dos bandidos na casa onde aconteceu o crime.

A defesa de André defende, desde o início, que ele foi indiciado mesmo sem provas consistentes. A única prova contra ele é um vídeo de uma câmera de segurança da vizinhança que mostra André e um colega entrando na casa da vítima, Edvaldo Oliveira Carvalho, de 71 anos, conhecido como seu Valdo. À reportagem, André contou que foi convidado, como de costume, para ir à casa do idoso. Era julho de 2021. Depois que entrou e o colega estava fechando um dos portões de acesso, os dois foram surpreendidos por dois homens que saíram de um carro HB20 estacionado próximo e, já dentro do imóvel, armados, anunciaram o assalto.

“Eles levaram a gente lá para atrás (da casa). Renderam eu, meu colega e um prestador de serviço que estava trabalhando para Valdo e botaram a gente perto de um quarto, onde Valdo guardava as coisinhas dele. Então começou aquele momento de tortura, em que eles diziam ‘Encontrei vocês, eu quero dinheiro, eu quero o cofre, cadê o cofre?’”, relembra. “Eu enrolei dizendo ‘Não tem cofre não, leve o que você quiser, pelo amor de Deus’, apanhando muito também. A todo momento, eles diziam que iam atirar na gente, que iam atirar nas nossas cabeças.”

André conta que, a partir daí, começaram a ouvir seu Valdo pedindo que não mexessem na esposa dele. Depois, André e o colega escutaram dois tiros. O colega se levantou, saiu correndo para ver o que tinha acontecido e constatou que Seu Valdo tinha sido baleado. Os bandidos fugiram. A primeira reação de André foi ligar para o Samu, que demorou bastante para chegar. Com orientação de um médico ao telefone, ele fez massagem cardíaca na tentativa de reanimar Valdo, mas o senhor não resistiu. Quando a ambulância chegou, já estava sem vida.

André permaneceu no local até a chegada do Instituto de Medicina Legal (IML). Depois, para cooperar com a polícia, ele e os outros dois homens presentes na casa no momento do crime foram, de livre e espontânea vontade, à delegacia, sem advogados, para prestar depoimento e até forneceu o próprio celular na ideia de contribuir com as investigações. Três meses depois do fato, o susto: de testemunha, ele passou a réu.

A história dele mobilizou amigos, familiares e a igreja evangélica da qual André faz parte, a Igreja Mangue, que conseguiu um advogado e assim o caso ganhou repercussão nas redes sociais e na imprensa. O abaixo-assinado pedindo a soltura dele ultrapassou 13 mil assinaturas. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existem atualmente quase 920 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil. Desse total, cerca de 413 mil são presos provisórios (ainda sem condenação, aguardando julgamento), entre homens e mulheres, isto é, quase 45% do total.

André agora está em busca de um novo trabalho e vivendo uma nova rotina, com medo de sair no bairro, apesar do apoio dos vizinhos. Enquanto a reportagem fazia essa entrevista, alguns moradores acenaram para ele no portão demonstrando apoio.

André Arcanjo em casa com a mãe, Maria do Carmo. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

“O que passou na minha cabeça foi desespero quando meu outro filho ligou e disse ‘Mainha, André foi preso’. Eu não associava André, prisão… Não tinha como aceitar isso. Eu me desesperei, fiquei sem chão. Eu não tinha mais nenhuma perspectiva, meu filho está preso, está entregue às autoridades, pagando pelo crime que não cometeu. Por quê?”, lembra a mãe de André, dona Carminha. “Porque eu tenho dois filhos, eu criei com uma formação como um menino pobre, de bairro pobre mesmo sendo negro, mas eu criei dois filhos com personalidade”, afirma lembrando da relação paternal que André tinha com seu Valdo.

“Eu dizia ‘Meu Deus, meu filho só fez o bem’. Valdo vinha aqui uma hora, duas horas da madrugada, chamava André às pressas, no meio do desespero. André ia. Não sabia dar o ‘não’. E eu questionava com Deus, ‘Deus, ele só ajudou e agora meu filho está preso?’.”

Os planos de André agora são aguardar que o julgamento prove a sua inocência e conseguir um novo emprego. “Acredito que, por eu ser pobre e negro, eu possa ser confundido com um marginal. Isso é fato, é visível. E essa injustiça tem que acabar, tem que dar um basta nisso. Não é porque você é preto, pobre, está com uma sandália um pouco mais desgastada que você é um marginal, perigoso. O mundo só vai vencer quando a gente começar a lutar para valer”, finalizou a entrevista.

As imagens desta reportagem foram produzidas com apoio do Report for the World, uma iniciativa do The GroundTruth Project.

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AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com