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Festival de Inverno de Garanhuns volta a censurar espetáculo e artistas LGBTQIA+

Maria Carolina Santos / 09/07/2022

Foto do espetáculo "Cabaré d'água: nosso corpo é político", do coletivo Acuenda. Crédito: Divulgação

Quatro anos após a suspensão do monólogo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, da atriz, diretora e dramaturga Renata Carvalho, o Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) volta ao centro de um caso de censura envolvendo artistas LGBTQIA+, novamente em ano eleitoral. Uma peça do coletivo Acuenda, da periferia paulista, foi cancelada ontem. Após uma chuva de reações indignadas nas redes sociais, hoje a Secretaria de Cultura de Pernambuco e a Fundarpe, realizadoras do festival, emitiram nota afirmando que o grupo “nunca foi excluído da grade artística da 30ª edição, que segue disponível para consulta pública no portal www.cultura.pe.gov.br”.

O coletivo Acuenda considerou a nota mentirosa. E uma das provas da censura é de que, até o fechamento desta matéria, o horário das 19h, do dia 21 de julho, no teatro do Sesc, permanece como “aguardando definição” na programação oficial. No lançamento da grade, era o nome da peça do Acuenda que estava escrita neste mesmo dia e horário, como comprovam vários sites que colocaram a programação no ar.

Ontem, um dos integrantes do grupo, David Costa, recebeu a ligação de uma pessoa chamada Irene, da gerência de política cultural, afirmando que a entrada do espetáculo Cabaré d’água: nosso corpo é político na grade de programação foi um erro e que outro espetáculo iria ficar no lugar deles, no dia 21, às 19h. “Em nenhum momento mandaram algum e-mail ou mensagem oficializando a saída. Disseram que houve uma nova reunião da comissão de seleção e que, na verdade, o espetáculo tinha ficado em 20º lugar, e não em segundo lugar. Eu disse a ela que nós iriámos atrás dos nossos direitos e solicitei a ata dessa reunião. Ela disse que não poderia enviar, mesmo sendo um documento público”, afirma David, em entrevista à Marco Zero. “Quando Irene me ligou ontem, ela não conseguia completar as informações. Eu perguntava o motivo disso estar acontecendo agora e ela não respondia diretamente, ficava enrolando. Disse que, se algum grupo caísse ou tivesse substituição, entrariam em contato”.

Outro integrante do coletivo, Bruno Fuziwara, conta à Marco Zero que o grupo havia comprado material para a apresentação no FIG. Os ensaios também já estão ocorrendo. O cachê do festival é de R$ 10 mil e a peça conta com oito artistas e duas pessoas para a parte técnica. “Para mim, o que acontece é censura, por sermos um grupo LGBTQIA+, por sermos drag queens. A nota diz que nunca saímos da programação, querem colocar a gente como mentirosos, mas é só entrar no site e ver que nos retiraram sim. Até o presente momento a gente não sabe se vai ou não participar, compramos figurino, perucas, maquiagem, materiais de cena…nossa peça é para falar de que nós, drag queens, somos um ato político. Nosso corpo é um corpo politico por estar ocupando esses espaços e não sermos invibilizados, por estarmos mostrando força e potência”, diz Bruno.

Após as denúncias de censura nas redes sociais, David Costa recebeu mensagens do diretor do festival, André Brasileiro. Nas mensagens, André fala em “retomar o diálogo” e repete o conteúdo da nota, que também cita que “as tratativas (com o Acuenda) se resumiram à solicitação de documentos para confirmação do processo de contratação do referido grupo”. “Não foi nada disso, foi bem claro de que estávamos fora do festival. O FIG exige uma burocracia enorme de documentação e quem está resolvendo isso é uma produtora nossa, que tem enviado por e-mail os documentos solicitados”, diz David.

Print do site G1, com a programação divulgada pelo FIG. Abaixo, print de como está hoje no site oficial do festival

Curador confirma 2º lugar

A peça do coletivo Acuenda entrou na grade de programação do FIG por meio do edital. E ficou em segundo lugar na classificação de espetáculos ao ar livre, de acordo com o curador de Teatro e Dança do festival e presidente da Comissão de Seleção de Teatro e Ópera, José Neto Barbosa. Ele foi exonerado no dia 14 de junho da Secretaria de Cultura, mas deixou a programação já pronta, antes de sair. O tema da curadoria foi “A re-existência do teatro: mulheridades, diversidades, corpos políticos e imaginário popular“.

O espetáculo do Acuenda entrou na categoria de teatro ao ar livre porque, inicialmente, previa um cortejo de drag queens pelas ruas do centro da cidade, antes da peça ser encenada no teatro do Sesc Garanhuns. Com a saída de José Neto, o Acuenda foi informado de que a apresentação seria apenas dentro do teatro.

“Há um conservadorismo muito forte em Garanhuns. Há um medo dos corpos drag queens, porque é um personagem que tem a ver com o protesto, com o teatro de revista, com a contestação. E isso dentro de um ano eleitoral…foi claramente uma pressão política para a saída da peça”, diz José Neto. A exoneração dele, que fazia a curadoria de teatro desde 2017, ocorreu também de forma controversa. “Em uma ligação de menos de um minuto disseram que eu iria ser exonerado, porque a nova gestão queria o cargo para um quadro do grupo político. Foi sem qualquer diálogo”, conta José Neto, que ocupava o cargo de assessor de Teatro e Ópera desde 2017. No começo de maio, Oscar Barreto, do PT, assumiu a secretaria de Cultura do estado, na movimentação de alianças para as eleições.

Para o Acuenda, foi a possibilidade de que o caso ganhasse a projeção nacional do caso de Renata Carvalho que fez com que a Secult e a Fundarpe emitissem nota desmentindo a retirada da peça. David inclusive estava com Renata quando ela apresentou, de forma independente, o monólogo em Garanhuns. “Na época, a Fundarpe em si não fez nada, só queria que a gente fosse embora da cidade. Foi bem triste”, lembra. “Naquela época e agora, se trata de questões políticas. Eles querendo poupar a cidade de uma atração que talvez nem a cidade queira se poupar disso. De algo novo, de algo que está chegando com o festival, que traz diversidade, que traz a cultura LGBTQIA+. Mais uma vez querem empurrar um teatro convencional, um teatro muito certinho. Tenho certeza que tem interferência da política”, afirma David.

Cena da peça Trans(passar), que busca apoio para ir a Garanhuns. Foto: Divulgação

Onde estão as pessoas trans?

Também nas redes sociais, o grupo teatral Agridoce lançou a pergunta: Onde estão as pessoas trans na programação do FIG? O grupo, formado por dois homens cis gays e duas mulheres trans, foi habilitado no edital, mas não passou da fase da curadoria. Agora, fazem uma campanha para arrecadar R$ 1,3 mil para exibir o espetáculo Trans(passar) em Garanhuns, nos dias em que acontece o FIG. “Contamos nos dedos quantas produções locais, de Pernambuco, estão presentes no FIG” , reclama a atriz Sophia Williams, integrante do Agridoce.

Sophia também denuncia a forma como pessoas e artistas trans são tratadas pelo festival. “É como se nossas pautas não fossem interessantes. A LGBTobia está escancarada desde o que aconteceu com Renata Carvalho. A bancada evangélica é muito forte em Garanhuns e, mesmo indo fora da programação, Renata foi atacada. Eu não vejo como um problema ter um palco gospel, para mim isso não é uma questão. Mas quando usam a religião como desculpa para LGBTfobia, para cancelar um espetáculo que eles não aprovam, é algo muito nocivo”, diz.

Para a crítica de teatro Ivana Moura, do blog Satisfeita Yolanda, é inadmissível que um festival que chega aos 30 anos de estrada se comporte desta maneira. “O episódio descredita o FIG e sua curadoria, prejudica os artistas e toda a cadeia produtiva envolvida com o espetáculo. Não é um caso isolado. É um retrocesso sempre com os mesmos alvos: os corpos LGBTQIA+, os corpos trans. Tem que ter um basta para esses manés, coronéis, políticos que querem sempre se aproveitar da situação, de manipular politicamente. A cultura não é objeto para servir aos interesses dessas figuras. A cultura merece e exige respeito. A proibição da peça da atriz Renata Carvalho foi um trauma. Deixou profunda marcas negativas nos envolvidos. É um episódio que envergonha Pernambuco e ainda hoje é citado quando se fala nos casos de censura no país”, afirma.

Para não correr o risco de ameaças e violências, Sophia Williams conta que a peça Trans(passar) só vai ter o local e o horário divulgados horas antes. O espetáculo conta história de várias mulheres trans e travestis na perspectiva de uma escritora que cria uma personagem que tem como sonho ser tirada para dançar. “Vamos levar a peça para Garanhuns como um ato de resistência. Para que nossos corpos sejam vistos e nossas histórias sejam contadas de outra forma, não só de forma agressiva, não só pelo viés da violência ou da prostituição. Mas que nós somos também cidadãs, nós pagamos impostos e nós temos sonhos. Vamos para dizer que estamos vivas e vamos continuar sonhando”, diz Sophia.

Com a expectativa de ter o nome de volta à programação oficial do FIG, o coletivo Acuenda também quer transformar a participação no festival em uma mobilização com artistas LGBTQIA+ locais. “Está tudo muito recente, mas vamos conversar com os artistas e tentar fazer se não um cortejo pela cidade, pelo menos uma entrada na frente do teatro”, diz Bruno.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com