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Recém-inaugurado, novo banheiro da orla de Boa Viagem já tem abastecimento irregular de água. Prefeitura diz que falta foi pontual. Foto: Arnaldo Sete/MZ
É uma tarde de sexta-feira de céu azul e muito calor em Boa Viagem. No recém-inaugurado banheiro público do Segundo Jardim, as adolescentes Evelyn Miguel e Yasmim Gomes tiram o excesso de areia da praia na torneira da pia do banheiro feminino. Não há água no chuveirão. Do lado de fora, funcionários da prefeitura do Recife tentam puxar um fio do poste para ligar uma bomba.
O banheiro, bonito e novinho, havia sido inaugurado uma semana antes pelo próprio prefeito João Campos (PSB), ainda sem água da Compesa – que só deve ter quando o projeto da nova orla sair do papel. “No começo tudo são flores, mas abriu de manhã e de tarde já estava faltando água”, reclama Ítalo Índio, que é sócio de uma barraca em frente ao novo banheiro.
O abastecimento de água do novo banheiro é feito por carro-pipa, e nem sempre ele vai todo dia. Um funcionário da prefeitura conta que a água do chuveirão é desligada, também, porque os lavadores de carro da orla vão e usam toda a água.
O episódio acima serve como um panorama para um problema negligenciado por décadas. São apenas 15 lugares com banheiros públicos com manutenção feita pela prefeitura do Recife em toda a cidade. Com uma avenida à beira-mar majoritariamente residencial, o problema da falta de banheiros fica ainda mais evidente na orla de Boa Viagem.
Neste ano, a prefeitura anunciou a construção de 11 novos banheiros, que se somam aos dez já existentes e que também estão sendo reformados. Estão sendo investidos R$ 4,8 milhões no serviço, de recursos próprios da prefeitura. Foi uma iniciativa extremamente bem-vinda: eram banheiros precários e a distância entre um e outro chegava a 800 metros. Até agora, apenas um novo banheiro foi entregue, justamente o que a reportagem encontrou com problemas.
Outro banheiro foi demolido e entregue totalmente reformado, o que fica em frente à padaria Boa Viagem. Ali, a reportagem encontrou água abundante no chuveirão – um equipamento necessário, haja vista que vários estudos já condenaram a água dos chuveiros dos poços na areia da praia.
Para os frequentadores, os novos banheiros estão ótimos. E poderiam ser mais numerosos. Em cada unidade, só há dois sanitários masculinos e dois femininos. “É um banheiro moderno, estava precisando há muito tempo. Mas são poucos sanitários, domingo e feriado vai ter filas”, afirmou Edvaldo Martins, morador do bairro do Arruda.
Em nota, a prefeitura do Recife afirmou que a falta de água no novo banheiro da orla foi um problema passageiro. “A Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb) esclarece que houve registro de um problema pontual no fornecimento causado por vandalismo em um dos equipamentos já entregues, mas cujo funcionamento já havia sido plenamente reestabelecido desde sábado (04)”, diz a nota.
A Marco Zero fez um pedido, via Lei de Acesso à Informação (LAI), para saber quantos e quais são os banheiros mantidos pela Prefeitura do Recife. A lista veio com 15 localidades – todos os 11 banheiros da orla de Boa Viagem equivalem a apenas uma localidade – e incluem apenas os que são de manutenção da Emlurb. Banheiros que se encontram dentro de equipamentos públicos da prefeitura, mas que são administrados por outras instituições, como os banheiros do Parque da Macaxeira, não entram na lista. A relação completa, que pode ser conferida aqui, também traz incongruências, como o número de banheiros de cada espaço. Abaixo, os 15 pontos no mapa:
Trabalhando na estação do BRT da avenida Guararapes, Edneuza Maria conta apenas com o banheiro público da praça do Sebo. Ao contrário do novo banheiro da orla de Boa Viagem, ele não tem nada de bonito ou moderno. No masculino, há vazamento no mictório e a água se espalha pelo chão, que é forrado com papelão. Tem papel higiênico e limpeza regular: em todos os banheiros públicos mantidos pela prefeitura do Recife, há um ou dois funcionários responsáveis pela limpeza. Mas há a necessidade de reformas.
Quando os boxes de livros da praça do Sebo fecham, às 17h, Edneuza, que só larga perto das 22h, fica sem banheiro. “O jeito é pegar o BRT e ir para outra estação, que tem banheiro para funcionários”, explica. “Esse banheiro aqui ajuda bastante, porque é pertinho, mas acho necessário mais banheiros públicos na cidade como um todo”, diz.
Os banheiros mantidos pela prefeitura são públicos e gratuitos, mas há restrições de horários. Não há nenhum aberto 24 horas. O da praça do Sebo, teoricamente, vai até às 19h, mas fecha quase diariamente às 17h, que é quando os boxes encerram o dia e trancam a pracinha. “Não dá pra deixar o banheiro aberto com tudo aqui fechado, porque já tentaram arrombar os boxes”, explica o comerciante José Ivanildo da Silva.
Na lagoa do Araçá, as chaves dos banheiros, que são dois, ficam em uma banca e em um quiosque. No que fica mais perto do posto da polícia militar, o banheiro masculino parece um almoxarifado, já que lá ficam guardados os materiais de limpeza. Na hora do almoço do funcionário, fica fechado. “Faz muito tempo que os banheiros daqui têm problemas. O perto do campo ficou até um tempo com uns cachorros morando lá dentro e ninguém conseguia entrar”, diz Luiz Henrique de Araújo, morador do bairro. A MZ encontrou esses banheiros fechados com cadeado, tanto o masculino quanto o feminino.
A população de rua, que cresce a olhos vistos no Recife, é das que mais sofre com a escassez de banheiros. A oferta de sanitários nos Centro POP (Centro de Referência Especializados para População em Situação de Rua) – dois deles no centro -, nem de longe dão conta. “Aqui é péssimo para usar banheiro. São poucos e mal cuidados. É melhor pagar R$ 1 em um banheiro particular por aqui. Mas, quando estão fechados, o pessoal que fica na rua vai mesmo é na maré, vira um grande banheiro. É uma tragédia para uma cidade como o Recife”, diz Carlos Lima, que mora em Olinda e trabalha na praça do Diário.
Em todo o Recife Antigo, o bairro mais turístico do Recife, há apenas um único banheiro público da prefeitura do Recife. Fica em uma rua perto da praça do Arsenal. Quando tem eventos, ele costuma funcionar até mais tarde, mas o normal é fechar às 19h. A comerciante Telma Araújo e o guardador de motos Júnior da Silva, que trabalham na área, dependem dele. “Desde 2016, trabalho aqui e é ótimo ter um banheiro aqui perto. Deveria ter outro no Marco Zero, porque a distância é grande. Na rua da Moeda também. Fica com fila aqui todo dia de domingo”, diz Telma.
Há também uma dificuldade em identificar onde há banheiro público. Cada um é diferente, até na sinalização. “No início do século XX, Saturnino de Brito (engenheiro e sanitarista que que fez planos de melhorias urbanas para o Recife e diversas cidades) fez um plano de saneamento e incluiu banheiros públicos, alguns que funcionaram até há pouco tempo atrás, como o que ainda existe ali na Praça 17, no cais do Imperador. Era uma arquitetura única para todos os banheiros da cidade e as pessoas identificavam facilmente onde havia banheiro público. Não é colocar qualquer arquitetura: deve ter uma identidade e, principalmente, respeito pelo usuário”, diz a professora do Laboratório da Paisagem do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Ana Rita Sá Carneiro.
E aí há mais um ponto positivo dos novos banheiros da orla de Boa Viagem. Neles, há sinalização e padronização. Todos os banheiros são iguais e têm o mesmo belo azulejo dos quiosques da orla.
A Jaqueira e o Treze de Maio são locais que, nos fins de semana, viram parques metropolitanos, atraindo moradores de várias cidades, não só do Recife. E são justamente parques com banheiros públicos, se não ideais, pelo menos funcionais. O parque das Graças ainda não conta com banheiros públicos – que deverão ser entregues na quarta e última etapa da obra.
“Quando a gente não tem uma cidade com banheiros públicos estamos expulsando os pobres. Influencia na gentrificação da cidade”, afirma a pesquisadora Fernanda Deister Moreira, doutoranda do programa de pós-graduação em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Universidade Federal de Minas Gerais (SMARH/UFMG).
Além de estreitar quem pode ou não pode passar o dia em determinado parque, a falta de banheiros também prejudica quem frequenta ou vive por perto. “Os próprios moradores das Graças já reclamam. A população que vai até o parque é grande aos finais de semana e, sem banheiros, como vai se virar? E em espaços privados, geralmente você tem que comprar alguma coisa para usar o banheiro. Nem todo mundo pode. Terminam as ruas ficando com cheiro de urina e por aí vai”, aponta Ana Rita de Sá. “Em parques, os banheiros públicos são imprescindíveis, as pessoas vão e passam o dia. Em praças, os frequentadores passam apenas algumas horas, e pode até não ter, mas seria ótimo se tivessem também”, completa a professora da UFPE.
Para Fernanda Deister Moreira, o banheiro público tem que ser visto pelas prefeituras como um direito dos moradores das cidades. “É um instrumento para dar dignidade às pessoas que estão na rua – trabalhando, morando, transitando. Faz parte do direito à água e ao saneamento também. Os banheiros são importantes porque fomentam o turismo, a mobilidade, o comércio local e o lazer. Pode-se pensar “tá, é só um banheiro”, mas a existência desse banheiro pode fazer a pessoa passar mais tempo em um espaço público, consumir do comércio local, fazer ela deixar de ir de carro e ir a pé ou de bicicleta, porque não vai precisar correr para casa, se não houver banheiro”, enumera.
Nas praças da infância que a prefeitura está fazendo, como a da Encruzilhada, não há banheiros públicos. “Praças para crianças sem banheiros públicos estão violando até a questão da criança ter direito a brincar, de estar em um espaço aberto, de ter qualidade de vida. Às vezes há lugares com banheiros químicos, mas que não atendem às necessidades de pessoas com crianças. Não tem espaço para trocar fraldas. Já vi pais e mães trocando fraldas no meio da rua porque não tem lugar adequado”, afirma Fernanda.
Em nota, a Prefeitura do Recife afirmou que a instalação de banheiros não foi demandada durante o processo de escuta dos moradores para definição do projeto Praça da Infância da Encruzilhada. “E vale lembrar que a população pode usar os banheiros do mercado, que fica próximo”, diz a nota.
A prefeitura do Recife também afirmou à Marco Zero que há diversas obras da gestão municipal que incluem a instalação de banheiros públicos. A nota cita como futuros pontos de novos banheiros públicos na cidade o pátio da feira de Casa Amarela, “onde haverá uma área para banheiros feminino, masculino e portadores de necessidades especiais”; a antiga passarela do Pina, na Avenida Herculano Bandeira, que vai virar “uma moderna Biblioteca Digital que fará parte da Rede Compaz”.
A nota ainda cita a recentemente “requalificação completa” do Parque de Apipucos – a MZ esteve lá e ainda falta sinalização adequada – e o Parque Eduardo Campos, no Aeroclube.
Para esta reportagem, a Marco Zero visitou sete dos 15 locais com banheiros públicos da prefeitura do Recife. O mais caótico foi o da avenida Dantas Barreto. Da calçada, já se sente o forte odor de urina. A estrutura é antiga e deteriorada.
“É muita gente que usa e o povo reclama muito. Mas o povo faz muita ‘nojeira’ também, né? mela as paredes, quebra porta, quebra pia. Aí fica difícil, por mais que tenha gente trabalhando para limpar”, comenta a ambulante Maiara da Silva Pereira, que trabalha há cinco ano no vuco-vuco do centro e usa o banheiro com regularidade.
O desrespeito que a própria população tem com os equipamentos públicos se espalha pelos banheiros visitados. E têm uma carga também sobre os funcionários que trabalham nesses locais. A auxiliar de serviços gerais Elizângela Aparecida, que limpa há três meses o banheiro da Dantas Barreto, diz que é o trabalho mais difícil que ela já teve. “Não pelo limpar, mas porque o povo esculhamba. É a primeira vez que trabalho em banheiro e as mulheres reclamam demais. Quando não tem papel higiênico, até dizem que é nossa obrigação comprar. A prefeitura manda papel, mas às vezes falta, porque outras pessoas pegam. A educação das pessoas precisa melhorar é muito”, diz.
Durante a apuração desta reportagem, a Marco Zero flagrou cenas evitáveis, como um homem urinando no mangue da lagoa do Araçá, tendo um banheiro aberto a poucos metros dele. Mas flagrou também a população tendo que lidar com brechas na qualidade da prestação do serviço público – como as adolescentes do início desta reportagem, que, tendo que voltar de Boa Viagem até Camaragibe, e com o chuveirão sem funcionar, usaram a pia para tomar banho.
Para a professora da UFPE Ana Rita de Sá, ter banheiros públicos em pleno funcionamento é um indicador importantíssimo para o desenvolvimento de uma cidade. E as campanhas de conscientização devem fazer parte desse pacote. “O prefeito João Campos (PSB) está fazendo uma propaganda grande dos novos banheiros da orla, o que é pertinente. A reforma é uma ação muito importante. Mas, como às vezes o aparelho é entregue incompleto, pode dar uma mensagem de que é algo que não é muito sério. A oferta deve ser com todo o serviço – e isso inclui também ações de educação”, defende. “Deveriam ser campanhas de educação como as de trânsito ou as contra o cigarro. Campanhas perenes e fortes”, conclui.
Não é só no Brasil que os banheiros públicos são escassos ou que a manutenção desses espaços é custosa e difícil. mas há diferenças regionais. A pesquisadora Fernanda Meister Moreira cita um levantamento feito pela empresa britânica QS Supplies em 2021 com base nos dados disponibilizados no PeePlace – site onde são cadastrados os banheiros públicos de 203 países. Pelo levantamento, o país com mais banheiros públicos por 100 mil habitantes é a Islândia, com 56.
Em seguida vem Suíça, Nova Zelândia e Finlândia com 46, 45 e 41 banheiros por 100 mil habitantes, respectivamente. O Reino Unido possui 15 por 100 mil habitantes e os Estados Unidos apenas 8. “O Brasil, assim como outros 16 países, possui apenas um banheiro público a cada 100 mil habitantes. No total são 1.417 banheiros públicos em solo brasileiro identificados pelo site”, escreveu, em artigo no Ondas, o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento. Por esses dados, os números do Recife estão dentro da média nacional.
“Até os países que têm os maiores índices de banheiros públicos por metro quadrado, esse tema ainda é uma questão, porque têm banheiros que vão cobrar uma pequena taxa para o uso, mas há pessoas que não podem pagar”, disse à MZ.
A privatização, acredita a pesquisadora, não parece ser uma boa alternativa. “O modelo de São Paulo, de exploração comercial nesses banheiros, com a venda de anúncios, é desigual. Qual empresa que vai querer colocar propaganda em um banheiro em um local com pouco movimento? Vai continuar o cenário em que os maiores centros, com uma elite urbana, é que serão privilegiados com uma manutenção mais efetiva”, diz.
Apesar do baixo índice de banheiros públicos, a discussão sobre o assunto no Brasil está avançando. No ano passado, o Ondas elaborou o texto inicial do projeto de lei 1922 de 2022 que propõe alterações na lei 11445 de 2007, o chamado Marco do Saneamento.
“Nas prefeituras, hoje, varia muito em que setor fica a questão dos banheiros. Acreditamos que é uma questão intersetorial, envolvendo planejamento urbano e saneamento. O projeto de lei coloca o acesso à água potável e ao esgotamento sanitário como direito humano e coloca a importância dos banheiros em espaços públicos também dentro do setor de saneamento”, diz Fernanda. “É uma alteração importante por trazer a discussão do saneamento no espaço público, principalmente agora com a lei 14.026, que incentiva a abertura do setor do saneamento para a privatização”, alerta.
O projeto de lei 1922/2022 foi subscrito por 44 deputadas e deputados e está desde julho do ano passado aguardando o parecer do relator na Comissão de Defesa do Consumidor.
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org