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Depois de show com músicas críticas à PM, “laranjinhas” cercam e intimidam músicos e advogada no Rec’n’play

Inácio França / 17/10/2025
A foto mostra uma aglomeração noturna em um espaço público, iluminado por postes de luz. No centro, há vários policiais militares usando boinas ou bonés alaranjados e fardas escuras, cercados por pessoas. O público, composto majoritariamente por jovens, parece observar ou registrar a cena com celulares. Em primeiro plano, uma mulher de cabelos presos usa um vestido verde claro e um homem veste uma camisa preta com o número 9 e a palavra “PLAYER” nas costas. Ao fundo, há árvores, barracas, construções e muitas pessoas reunidas.

Crédito: Reprodução

“Como a maldade é parte com a estrutura / na violência de polícias / onde a polícia mata mais um preto e faz da viatura câmara de gás…”

Minutos depois de tocar versos como esses da música “Tá vivo é vitória” e descer do palco do Som da Rural no festival Rec’n’Play, o grupo de hip hop Sujistência foi cercado por policias militares. Eram 21h30min da quinta-feira (16) quando Apollo, Crexpo e Xéu Kelaino, os três músicos, chegaram ao Cais do Alfândega, onde pretendiam assistir ao show da banda Ave Sangria e foram abordados por um grupo de, pelo menos, oito “laranjinhas”, os novos policiais em treinamento.

Inicialmente, os artistas acharam que seria mais uma das muitas abordagens por que já passaram. “Mais um baculejo, pensei, sou preto, tô até acostumado, aí colaborei, fiquei logo de braços em cima da cabeça”, contou o vocalista Xéu. Não demorou para perceberem que aquilo não seria nada normal. No meio da multidão, os agentes acuaram Apollo e Xéu, abrindo suas pernas e revistando a região genital.

Apolo disse que estranhou para valer quando os “laranjinhas” quiseram saber, perguntando repetidamente “o que vocês estão fazendo aqui?”.

Estagiário do Ministério Público de Pernambuco e graduando em Direito, curso que deve concluir em dezembro, Apollo não se intimidou, dando uma resposta irônica que enfureceu os policiais: “Acho que está meio óbvio o que a gente está fazendo aqui”. A abordagem, então, ficou mais violenta, chamando a atenção de Jéssica Jansen, advogada, produtora cultural e integrante da produção geral do Rec’n’Play, que decidiu intervir.

Jéssica conta que tentou explicar que eles faziam parte da programação oficial do festival e que ela também era produtora deles, além de advogada do grupo.

“Quando eu disse isso, eles esqueceram os meninos e me cercaram”. Segundo ela, isso coincidiu com a chegada de reforços policiais. “Dez ou doze deles me isolaram do restante do nosso grupo, me intimidando dizendo que iriam me revistar, me abordar. Eu disse que eles não poderiam fazer nada daquilo, pois que eu tinha prerrogativas como advogada”, contou Jéssica. O problema é que os novatos, provavelmente, não sabiam o que significava a palavra prerrogativas, pois alguns deles teriam aberto o google para procurar, como é possível perceber em alguns dos vídeos que circulam nas redes sociais.

Uma segunda policial feminina, uma oficial. “A tenente se juntou aos demais gritando que eu não tinha direito porque não estava no exercício da profissão”. Apollo acredita que a oficial era a mais truculenta do destacamento da PM, dando ordens para levar Jéssica para a delegacia.

O fato da produtora ter apresentado a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e estar usando camisa da equipe do festival e crachá de produtora foi ignorado.

Nos vídeos é possível ver Jéssica pedindo ajuda por telefone e por um rádio walkie-talkie, quando o cerco se fecha sobre ela e uma policial feminina abre sua bolsa, tirando tudo o que havia dentro, além de arrancar o celular de suas mãos.

A confusão só terminou quando vários integrantes da equipe de produção do Rec’n’Play chegaram ao cais. Debaixo de vaias, os policiais saíram sem apresentar justificativas.

Sem paz

“A gente não tem um minuto de paz com essa galera da PM, não adianta ter colaborado, ter ficado de boa, eles não querem nem saber”, desabafou Xéu Kelaino. Além de rapper, ele é operário da construção civil e estudante do curso técnico de Edificações. “O que a gente canta é o que a gente vive. Foi só descer do palco e aconteceu o que a gente tinha cantado”.

A julgar pela disposição de Jéssica Jansen, os policiais que conduziram a abordagem também não devem esperar por paz. O Porto Digital e a coordenação do festival Rec’n’Play estão oferecendo suporte psicológico e institucional à produtora, devendo tomar providências jurídicas ao longo dos próximos dias. “Fui completamente acolhida, o Rec’n’Play foi solidário e profissional”, contou. A equipe jurídica da vereadora Jô Cavalcanti (PSOL), que testemunhou parte do episódio e se colocou à disposição para ajudar, deverá representar a posição de Jéssica nas medidas jurídicas que serão decididas em reunião neste sábado.

A assessoria da imprensa da PM foi procurada pela Marco Zero, se limitando a pedir o envio dos vídeos que podem ser encontrados nas redes sociais, mas não responderam às seguintes questões:

  • qual seria os versão dos responsáveis pela abordagem, caso a assessoria tenha essa informação.
  • há orientação do comando do policiamento para priorizar abordagens a homens jovens e negros, inclusive em grandes eventos de rua?
  • há orientação do comando do policiamento para abordar, confrontar ou intimidar artistas que mencionem a violência policiais em suas obras?

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de conteúdo da MZ.