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Um movimento organizado pelo Whatsapp que, em poucos dias, conseguiu desestruturar um país. Essa é apenas uma das leituras possíveis para o movimento paredista dos caminhoneiros, deflagrado na última segunda-feira (21), cujos efeitos se alastraram rapidamente na economia. A capacidade de articulação e de pressão política dos caminhoneiros autônomos surpreendeu muita gente que tinha esquecido da extrema dependência que a nossa logística tem do modal rodoviário, por onde circulam 70% das mercadorias no país.
Mas também é interessante perceber que entre o pânico da população – gerado pela falta de gasolina nos postos e as ameaças de colapso em serviços públicos, como transporte e segurança, além de problemas de abastecimento de alimentos, devidamente alardeados nas redes sociais – e as contas dos economistas que já calculam perdas milionárias em operações de estradas, portos e aeroportos, poucas análises mais profundas sobre as raízes do movimento vieram à tona. Há mais perguntas do que respostas.
Por que os caminhoneiros esperaram a sequência de aumentos de combustíveis para entrar em greve? Aliás, foi mesmo uma greve de trabalhadores ou um locaute? Quem liderou o movimento? Como se alcançou tamanha adesão? Por que a polícia não reprimiu os piquetes como faz na maioria das greves dos movimentos sociais? Por que os efeitos nas grandes cidades foram sentidos logo no segundo dia de paralisação? Quem poderia lucrar politicamente com a greve? E, finalmente, o caos e o desabastecimento poderiam criar mais instabilidade e servir de pretexto para um golpe militar?
Para tentar entender o novo episódio da prolongada crise brasileira, durante 48 horas essas e outras perguntas foram feitas pelos repórteres da Marco Zero Conteúdo a lideranças políticas, parlamentares, empresários, sindicalistas, economistas e professores universitários.
Foi possível chegar a três conclusões: Primeiro, a totalidade das pessoas ouvidas formal ou informalmente não conseguiu traduzir ou compreender o vendaval dos últimos dias. Segundo, a raiz do problema está no alinhamento dos preços dos combustíveis à cotação internacional do barril de petróleo adotada pela Petrobras no governo Temer. Por fim, a confirmação da força política dos caminhoneiros, uma das poucas categorias profissionais com capacidade de, literalmente, parar o País.
A dificuldade de leitura talvez venha do fato deste ser um movimento composto por várias vozes. “Existem os trabalhadores que realmente estão sentindo no bolso o aumento dos preços, os empresários que estão aparelhando o movimento e acabaram jogando os caminhoneiros para greves e ainda grupos fascistas que pretendem desestabilizar não apenas o governo atual, mas o quadro político geral às vésperas da eleição”, analisa o historiador e professor do programa de pós-graduação de serviço social da UFPE, Marco Mondaini.
O historiador considera que o cenário de caos gerado pelo movimento paredista nos últimos dias gerou um sentimento de temor na população – facilmente observado em cenas como a corrida de consumidores aos supermercados para estocar alimentos, como se estivéssemos à beira de uma guerra civil, pode contribuir para o fortalecimento de um discurso de ordem. Mondaini vê o quadro com preocupação. “É fato que o governo atual terminou. Isso porque ficou claro a incapacidade de direção do país e de diálogo do Planalto com os manifestantes. O mais preocupante é que os caminhoneiros foram usados na experiência chilena (leia mais abaixo) e em 2015 para pedir a saída de Dilma”, comenta.
Diante de uma solução intermediada pelos militares, que foram convocados pelo Governo Federal para “resolver o problema”, depois de uma tentativa frustrada de acordo, o historiador enxerga um “risco concreto de golpe militar”. “Não sei se nos moldes de 64, mas um processo de desestabilização política como o atual é preocupante. E, para se voltar contra isso, as esquerdas não são suficientes, ainda mais com a principal liderança (Lula) preso. É preciso uma aliança com setores sociais democráticos brasileiros que rejeitam nomes como o de Bolsonaro”.
Enquanto forças à esquerda e à direita ainda tentam decifrar os acontecimentos, o que se sabe por enquanto é que movimentos como esse não são novidade no Brasil e, quase sempre, o combustível principal das articulações tem teor político.
Em 1999, uma paralisação dos caminhoneiros autônomos se interpôs no caminho do governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Risco de desabastecimentos de alimentos e pressão do empresariado, inclusive com falas de dirigentes da Fiesp na grande imprensa cobrando uma “posição enérgica do governo”, impeliram FHC a atender às reivindicações da categoria congelando o preço do diesel momentaneamente.
Mesmo assim, para debelar o movimento foi preciso ameaçar uma convocação das Forças Armadas para intervir no desbloqueio das estradas, assim como fez agora o presidente Michel Temer. Como se não bastasse esse flashback da história, na época de FHC, a imprensa também denunciava um suposto envolvimento informal dos empresários do ramo de transporte no movimento, tal qual tem sido investigado atualmente pela Polícia Federal.
A hipótese de locaute – ou seja, uma greve do empresariado, é reforçada pela pacífica aceitação da manifestação da categoria pelas transportadoras até agora. Do ponto de vista dos trabalhadores a reivindicação de redução do preço do diesel é mais do que legítima, considerando o aumento do preço médio do derivado desde a mudança da política de preços da Petrobras, em julho de 2017, quando a petrolífera passou a ajustar o valor dos derivados acompanhando as oscilações do mercado internacional. Desde então, a petrolífera aumentou o preço do óleo diesel 121 vezes nas refinarias, uma alta de 56,5% de acordo com o Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE).
Os aumentos, contudo, também foram influenciados por outros fatores. Também em julho do ano passado, o presidente Michel Temer assinou um decreto para aumentar as alíquotas do Pis/Cofins sobre etanol, gasolina e diesel. Na época, a intenção era turbinar os cofres públicos com uma receita extra de R$ 10,4 bilhões. “O que não fica claro, por exemplo, é o fato desse movimento de caminhoneiros não ter acontecido nessa época. Por que a mídia também não fez tanto barulho antes, se o preço dos combustíveis vêm aumentando mês a mês? Qual o real objetivo?”, provoca o coordenador da Federação Única dos Petroleiros (FUP), José Maria Rangel, conhecido como Zé Maria.
Sem resposta pronta para os questionamentos, Zé Maria demonstra preocupação com o fato de bandeiras de intervenção militar estarem presentes no movimento dos caminhoneiros. “A gente tem que lembrar que essa mesma categoria fez um movimento no governo Dilma (em 2015) pedindo a saída dela do governo”, recorda.
Mesmo sem tanta visibilidade numa sociedade tão urbanizada quanto a brasileira, o peso político dos caminhoneiros (e demais profissionais de transporte) não é uma novidade no Brasil. Nos demais países da América Latina, porém, os caminhoneiros são protagonistas da cena política há décadas.
No Chile, em 1973, os 40 mil proprietários de 56 mil caminhões associados à Confederação de Sindicatos de Donos de Caminhões do Chile bloquearam as estradas chilenas de 9 de outubro a 5 de novembro de 1972, provocando uma crise de abastecimento massiva que desestabilizou o governo do socialista Salvador Allende. Os caminhoneiros eram liderados por León Vilarín Marín, descrito pela jornalista e pesquisadora chilena Susana Rojas como dirigente do grupo paramilitar de ultradireita Patria y Libertad.
Em seu artigo “El paro que coronó el fin o la rebelión de los patrones”, Rojas relata que, anos mais tarde, quando os relatórios da CIA se tornaram públicos, confirmou-se que dos US$ 8 milhões de dólares destinados às campanhas de oposição a Allende, US$ 2 milhões serviram para financiar a paralisação dos motoristas.
O exemplo de 1973 foi o mais lembrado pelos militantes de esquerda que, nas redes sociais, advertiam para o risco de apoiar ou celebrar o sucesso da greve.
Nem seria preciso ir tão longe no tempo. Em 2016, os caminhoneiros da Confederação Nacional de Transporte de Carga de Chile, realizaram uma série de piquetes nas estradas, gerando desgaste para a presidente chilena, a também socialista Michele Bachelet. Assaltos e ataques a caminhoneiros motivaram as paralisações. Hoje, o líder do movimento, Sergio Perez, integra um dos conselhos do governo do direitista Sebastián Piñera.
Na Argentina, a participação dos caminhoneiros na vida política vai além das greves. O apoio da histórica liderança da categoria, Hugo Moyano, foi considerada decisiva para eleger Mauricio Macri. Em setembro de 2015, o sindicalista que está à frente da categoria há 40 anos traiu o peronismo e garantiu que Macri “governaria com muito apoio do sindicalismo peronista”.
Desde o início de 2018, o cenário mudou. A política de ajustes neoliberais de Macri, sobrecarregando os mais pobres, levou Moyano a reaproximar-se de Cristina Kirchner. Em fevereiro, os caminhoneiros lideraram a maior manifestação popular contra o governo Macri. Desde a ruptura com o governo, o velho sindicalista e seu filho Pablo passaram a ser investigados por lavagem de dinheiro no Independiente, tradicional clube de futebol que ele preside.
Os caminhoneiros são atores políticos importante também na Europa. De 9 a 15 de junho de 2008, no governo de José Luiz Zapatero, do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), pelo menos 340 mil caminhoneiros espanhóis pararam o país numa das maiores greves do setor. Oitenta por cento dos postos ficaram sem gasolina, os mercados das grandes cidades sofreram desabastecimento e várias grandes indústrias (SEAT, Renault, Nissan, Ford e Campofrio) interromperam a produção por falta de insumos.
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