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Homens jovens e negros, pobres, com baixo grau de escolaridade, fora do mercado formal de trabalho e, frequentemente, egressos do sistema prisional ou do sistema sócioeducativo. Esse é o perfil de autores e vítimas dos homicídios nas cidades em que mais se mata em Pernambuco, Alagoas e Paraíba, de acordo com estudo qualitativo realizado entre dezembro de 2015 e agosto de 2016 pelo Gajop (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares).
A imagem que vem à cabeça estabelece pontos não apenas com o senso comum – que julga a população de homens negros como potenciais autores de violência – mas também com o que já apontam estudos sobre violência letal: ela não acontece de modo generalizado e tem como alvo prioritário a mesma população pobre, negra e jovem. Ao analisar os resultados, no entanto, a equipe de pesquisa aponta para as falhas das políticas públicas de segurança que priorizam atividades que mudam pouco o contexto em que ocorrem as violências e ignoram ações efetivas de prevenção.
O documento “Dinâmicas de Produção de Homicídios em Pernambuco, Alagoas e Paraíba: Um Estudo Qualitativo” faz parte de uma pesquisa nacional do Senasp – Secretaria Nacional de Segurança Pública. O Gajop foi a única organização da sociedade civil a disputar e ganhar o edital.
O trabalho foi realizada por uma equipe de pesquisadoras sob coordenação de Ana Paula Portela, para quem o estudo “reafirmou o que já sabíamos”. A importância da pesquisa, no entanto, é trazer uma atualização dos contextos em que acontecem as violências letais e a percepção das pessoas mais próximas do evento. “Tínhamos, lá atrás (antes do golpe de 2016), a intenção de conceber um plano nacional de redução da violência letal. O primeiro passo era realizar um diagnóstico e, em seguida, trazer contribuições de mudanças concretas na sociedade para diminuição desses crimes”, explica Edna Jatobá, coordenadora do Gajop.
O objetivo do estudo é identificar as caraterísticas da violência em todo o país para subsidiar políticas públicas. Com base em pesquisa quantitativa de índices de violência letal – também realizada pela Senasp – foram selecionadas as 11 cidades com mais homicídios nos três estados pesquisados. Desse total, seis das cidades estão em Pernambuco, três na Paraíba e duas em Alagoas. Em 2014, ano anterior à realização da pesquisa, os três estados registraram juntos 7.068 homicídios. Desse total, 2.995 casos aconteceram nas cidades selecionadas.
Além de identificar as causas e fatores de risco de homicídios relacionados aos autores e vítimas, a pesquisa buscou entender detalhes, motivações e dinâmicas culturais específicas que poderiam produzir ou favorecer os homicídios em nível local – por exemplo, perceber como a existência de iluminação ou não, a geografia local, acessibilidade, vazios urbanos, acesso a armas, etc, interferem na ocorrência de um crime.
Para isso, o estudo também descreve e analisa “percepções de diferentes atores sociais sobre pessoas envolvidas nos homicídios, motivações para os mesmos e as respostas dadas pelo Sistema de Segurança Pública e Justiça Criminal”.
Violência como situação social
No estudo, a violência é entendida como uma situação social e não como fenômeno ou ação em decorrência de doenças, por exemplo. Ao todo, foram realizadas 126 entrevistas com pessoas diretamente relacionadas com os homicídios ou o contexto em que aconteceram. Foram entrevistados agentes públicos da área de segurança, saúde, assistências social, familiares, amigos, testemunhas, sobreviventes e também repórteres das editoria de polícia. Um dos obstáculos ao desdobramento da pesquisa, segundo Ana Paula Portela, foi o seu curto tempo de duração: seis meses.
Ainda assim, a análise dos dados, a partir da percepção de quem está no contexto imediato dos homicídios, revelou elementos geradores de atos violentos que podem resultar em crimes letais. “Estávamos, na verdade, olhando para o contexto social em que as pessoas agiam de modo violento e observando que fatores interferiram nessas ações”, explicou.
“Homicídios se concentram em áreas críticas: territórios de intensa precariedade social, nas periferias, sem infraestrutura básica, equipamentos, serviços e políticas públicas. Caracterizados por um ‘desordenamento’ urbano (becos, ruelas, ruas sem asfalto, moradia precária), ‘distantes de tudo’”
Apesar de o senso comum propagar uma ideia de insegurança generalizada, a pesquisa já partia de dados que mostram a concentração dos homicídios em regiões e contextos específicos. “Homicídios estão concentrados em alguns bairros. No Recife, 12 bairros concentram quase 50% dos homicídios, um deles é o bairro de Boa Viagem. Mas existe uma escala sócio-econômica”, diz, reforçando que foi necessário identificar que áreas em bairros específicos reuniam o maior número de homicídios.
Em cada município pesquisado foram identificados os bairros com maior quantidade de crimes letais (em números absolutos): Cabo de Santo Agostinho (Cidade Garapu, São Francisco, Vila Social e Ponte dos Carvalhos), Caruaru (Rendeiras, Morro, São Francisco, Loteamento Serranópolis e Centenário), Jaboatão dos Guararapes (Santo Aleixo, Prazeres e Cajueiro Seco), Olinda (Peixinhos, Rio Doce, Janga e Caixa d’Água) Paulista (Maranguape II), Recife (Ibura, Várzea, Dois Unidos, Passarinho e Setúbal).
Fatores determinantes para ocorrência de homicídios
“Para todo mundo pobreza é falta de oportunidade. As pessoas não são burras, elas olham em volta e percebem que as pessoas brancas, ricas, que foram à escola, que trabalham, não estão vivendo naquele contexto, não estão sendo sujeitas a tiroteios nem estão sendo assassinadas todos os dias”, argumenta Ana Paula. Além deste fator, apontado por todas as pessoas entrevistadas, foram identificados outros: atividade criminal como alternativa à ausência de mecanismos formais de inserção social (como escola e trabalho), que permitem a aquisição de recursos simbólicos e materiais; e a ausência de programas de reinserção social de egressos do sistema penitenciário.
A influência do tráfico de drogas nos contextos de homicídios também foi abordada no estudo. Para as pesquisadoras, o padrão se repete nas áreas mais violentas e o contexto de precariedade social e familiar somado à ausência de políticas públicas sociais e à truculência da polícia constrói um terreno fértil “onde cresce e se fortalece a figura do traficante como líder comunitário e referência para a juventude”. São esses mesmos traficantes que, por um lado, atraem jovens para a prática criminosa e, por outro, são os responsáveis por assassinatos nas comunidades.
“A única forma com a qual o Estado aparece na comunidade é com a polícia. Para a maior parte da população, a polícia chega para dar porrada quando a gente está na rua ou então para ir lá na boca pegar sua parte. Que Estado é esse em que a gente está vivendo?”, questiona Cidicleiton Zumba, do Coletivo Força Tururu, de Paulista.
O uso de drogas é um fator de risco (especialmente crack – com a ressalva de que os usuários se tornariam vítimas e autores não devido à droga como estimulante instigador do homicídio, mas pelo aumento da vulnerabilidade ao traficante, pelas dívidas, e à droga, pela ausência de práticas de redução de danos). O álcool, por outro lado, foi apontado como motivador ou adjuvante do homicídio. Para Cidicleiton, é preciso trazer o debate da Política de Drogas para o trabalho comunitário já que são os moradores das áreas mais violentas que sofrem, direta e indiretamente, com a guerra às drogas. “A úncia droga ruim é a maconha, é o crack, é aquela que não pode entrar na televisão de forma comercial porque a cerveja, o cigarro aparecem nos filmes de Hollywood. Em todo canto aparece. Mas maconha é criminalizada, por que? Por que o álcool que é um dos maiores propulsores da violência doméstica não é questionado? O tempo todo estamos na comunidade catucando e discutindo com as pessoas sobre como essas drogas influenciam. Mas a gente precisa provocar esse debate com o Estado”, defende.
Mulheres ainda mais vulneráveis
“A ausência e o abandono do Estado deixam infinitamente pior as mulheres jovens com filhos pequenos que ficam numa situação de vulnerabilidade muito maior em relação a vários tipos de violência – do parceiro e da comunidade”, explicam as pesquisadoras. Apesar de o estudo não ter identificado mulheres como praticantes de homicídios, chama atenção que as violências sofridas por elas foram citadas apenas por moradores dos bairros e não por agentes públicos.
Com relação ao tráfico, as mulheres podem sofrer violências letais com requintes de tortura motivadas pela questão de gênero. “Existem normas internas de algumas gangues que admitem espancamento e morte de mulheres quando elas não seguem regras de segurança ou violam a moral sexual”, explica Ana Paula.
O estudo, no entanto, não teve como aprofundar a análise sobre a condição dessas mulheres, mas apontou a necessidade de um olhar específico sobre o modo como as desigualdades de gênero atuam nas diferentes camadas destas relações, apesar de ser algo esperado. “As mulheres são punidas por seu comportamento sexual em todos os ambientes, não é só dentro do tráfico. Mas como é um ambiente marcado pela violência armada é muito mais fácil que a mulher seja assassinada nesse contexto do que em outro. Em um contexto como esse ela fica inteiramente refém, ela não pode chamar a polícia porque vai incorrer em dois erros – romper com o grupo e virar delatora – então o que sobra para ela? Entrar para o programa de proteção à testemunha, mas como ela chega a esse serviço? Então é uma armadilha mortal”, analisa a pesquisadora.
A sensação generalizada de medo encontra resistência em quem trabalha e dedica esforços para motivar e oferecer outras possibilidades de vida nas comunidades consideradas periféricas. Aurelina Barbosa, do Grupo Comunidade Assumindo Suas Crianças (GCASC), faz parte do grupo Mães da Saudade que realiza um trabalho de acolhimento, escuta e apoio a mulheres que perderam filhos, irmãos e maridos pela violência. Para ela, o que mais dói é a naturalização da violência nas periferias, sem qualquer questionamento por parte da sociedade e dos gestores públicos. A falta de políticas públicas e, especialmente, a inexistência de espaços de lazer para as crianças e jovens no bairro em que mora é um dos aspectos que cita.
“As crianças estão assustadas, muitas mães não deixam elas saírem de casa por medo. A infância é comprometida. Como é que a gente pode estar convencendo a sociedade a lutar pela vida? Nós precisamos pensar estratégias de pressão para que isso mude. É um desafio sensibilizar os jovens, mas estamos fazendo isso com diálogo”, explica a mãe, que há 14 anos perdeu um filho para essa mesma violência com mira ampla, que insiste em matar jovens negros.
As desigualdades sociais foram apontadas como fatores determinantes, principalmente as deflagradas por grandes projetos, como é o caso do Complexo Portuário de Suape, que tem parte do território no município do Cabo de Santo Agostinho. “As pessoas percebem que esse tipo de grande projeto traz uma grande circulação de dinheiro, de recursos, mas também cria oportunidades para o ilícito, para o crescimento de diferentes formas de criminalidade”, explica Ana Paula. Segundo o Atlas da Violência 2017, o Cabo está na 10º posição no ranking dos 30 municípios mais violentos do Brasil. Com uma população de 200.546 mil pessoas, registrou 147 homicídios apenas em 2015.
Retomada da violência
As características que o estudo qualitativo apresenta complexificam os números que, em 2017, já alertavam para a falência do Pacto pela Vida, principal política pública de segurança que marcou os últimos anos em Pernambuco e por um período curto conseguiu reduzir os índices de violência no Estado. “Pernambuco, que foi uma ilha de diminuição de homicídios no Nordeste entre 2007 e 2013 (quando logrou queda de 36% da taxa de homicídio), apenas no último ano teve aumento de 13,7% (voltando ao padrão 2009/2010)”, aponta o Atlas da Violência 2017, realizado pelo Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em 2017, Pernambuco bateu o infeliz recorde de 5.030 homicídios no ano, segundo dados da Secretaria de Defesa Social. Apesar de a violência letal acontecer em bairros e regiões específicas da cidade, a sensação de insegurança generalizada abre margem para discursos punitivistas, de encarceramento, e que pouco têm efeito para solução do problema, defendem as pesquisadoras envolvidas no estudo e representantes de organizações da sociedade civil que lidam com o tema da segurança e da violência.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.