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Novo semiárido passa no teste da maior seca da história

Inácio França / 26/07/2018

Crédito: Inácio França/MZ Conteúdo

Pela primeira vez na história, uma grande seca chegou ao final sem mortes, saques ou migração massiva para as metrópoles. E não foi uma seca qualquer: a estiagem que começou em 2012 e, namaior parte do semiárido, terminou com as chuvas do primeiro semestre deste ano é considerada como a mais duradoura desde que o fenômeno começou a ser monitorado, em 1845.

A seca pôs à prova as políticas públicas implantadas a partir de 2003 e as estratégias de convivência do semiárido adotadas pela sociedade civil a partir do final dos anos 1990, que resultaram na construção de 1,2 milhão de cisternas.

Estudioso do fenômeno e autor do livro A invenção do Nordeste, o professor de História da UFPE e UFRN, Durval Muniz, afirma que o batismo de fogo das novas condições do semiárido foi superado:

“O fortalecimento da economia local, gerada pelo Bolsa Família e pelo fortalecimento do salário mínimo, reduziu a importância da pecuária e das culturas de subsistência inadequadas para o região. E as tecnologias apropriadas, espalhadas por toda a região, garantiram água e alimentos para as famílias”.

“A imprensa não noticiou para não dar visibilidade às profundas mudanças provocadas pelo Governo Lula numa região vista como inviável e sem solução por séculos”.

Dinheiro circulando

De acordo com os números disponíveis no Instituto Nacional do Semiárido (INSA), em 2012, no início da estiagem, 3,4 milhões de famílias recebiam R$ 518 milhões do programa Bolsa Família. Juntando esse valor aos R$ 2,1 bilhões (80% de verbas federais) movimentados pela Articulação do Semiárido (ASA) desde 2000 para construir cisternas e outras tecnologias, é possível ter ideia de como os efeitos da seca puderam ser minimizados.

O sociólogo Antônio Barbosa, um dos coordenadores de programas da ASA, conta que “a maior parte desses recursos foram gastos na região, com a remuneração dos agricultores capacitados para construir cisternas e compra de matéria-prima e ferramentas no comércio dos municípios”.

Das 1,2 milhão de cisternas existentes hoje na região, pelo menos a metade (622 mil) foi construída pela ASA. A outra metade foi viabilizada por meio de convênios individuais entre os governos estaduais e as ONGs que integram a ASA.

O golpe de 2016 e o governo Michel Temer estão colocando isso em risco. Os cortes de R$ 3 bilhões no Bolsa Família afetam diretamente a região, bem como a redução de 84% dos recursos para a Segurança Alimentar e Nutricional.

A Marco Zero Conteúdo entrou em contato com a titular da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Lilian Rahal, mas ela não respondeu às perguntas enviadas.

O grande salto

A soma dessas pequenas soluções contribuiu para elevar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de toda a região. Considerando apenas os estados do Nordeste, os pesquisadores Uirá Araújo Nery da Cunha e Liliane Caraciolo Ferreira, do Núcleo de Pesquisa e Estudos Socioeconômicos do Semiárido, da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), constataram que o IDH a região saltou de 03931,em 1991, para 0,6598 em 2010. O crescimento foi de 67,83%. No resto do País, a evolução foi de 50,08%.

A redução da mortalidade infantil reforça a percepção do que aconteceu na região. Ao final da grande seca de 1984, a taxa de mortalidade infantil era de 113 mortes por 1000 nascidos vivos. Morriam mais bebês do que se morre hoje em dia no Afeganistão, país com a pior taxa da atualidade (111 por 1000). Em 2015, último ano em que o indicador oficial está disponível, essa taxa já era de 17,5 por 1000.

O filósofo e teólogo Roberto Malvezzi é testemunha dessa evolução. Quando chegou ao sertão da Bahia para atuar pela Comissão Pastoral da Terra, presenciou um saque ao comércio de Campo Alegre de Lurdes, logo no início da seca que foi de 1979 a 1983. Nos anos 90, foi publicado o primeiro estudo do IDH. Então, ele soube que o desenvolvimento humano da pequena cidade onde havia presenciado o saque era semelhante ao da África subsaariana.

“Não foram só os programas sociais e a captação de água de chuva que mudaram o semiárido. Houve outros esforços da sociedade civil, do povo organizado, a exemplo da agroecologia e da educação contextualizada. As ações do governo garantiram acesso à luz elétrica, telefonia celular e a construção de algumas adutoras que finalmente saíram do papel”, explica Malvezzi.

A felicidade é verde

Acompanhar a visita de intercâmbio de agricultores da América Central ao semiárido da Paraíba e de Pernambuco, em junho, possibilitou ver e ouvir dezenas de homens, mulheres e adolescentes que vivem na roça repetir, em plena crise econômica e no ambiente pessimista do governo Temer, que “são felizes”, “não desejam outra vida” ou que “não se imaginam morando em outro lugar”. Frases que, melhor que os números, expressam o quanto mudou o cotidiano dessas famílias.

Na comunidade Sítio Carrasco, a 30 quilômetros de Campina Grande, Maria das Graças Domingos posa para fotos com orgulho diante da cisterna calçadão capaz de armazenar 52 mil litros de água da chuva (foto abaixo). Enquanto a filha estuda computação no Instituto Federal da Paraíba (IFPB) na cidade de Esperança, Nina, como é mais conhecida, e seu marido, Givaldo Firmino, trabalham sozinhos na propriedade de apenas 1,25 hectares.

Apesar do tamanho do sítio, a diversidade surpreende: o casal cultiva feijão, milho, cana-de-açúcar, seis variedade de laranja, quatro de limão, cajá, manga, além de um vaca leiteira e algumas galinhas. Em junho, venderam 1.600 mudas de limão galego. “No mercado eu só compro carne e material de limpeza. O resto a gente tira da terra”, conta Nina.

A propriedade do casal Petrônio Fernandes e Ivoneide Nunes é um pouco maior. São cinco hectares que asseguraram a criação e a educação de três filhas que participam ativamente dos trabalhos no campo. Uma delas, Petrúcia, é técnica agrícola e ajuda os pais a aplicar os princípios da agroecologia. O sítio da família em Juazeirinho (PB) é um modelo na região: a família reaproveita a água utilizada em casa para irrigar as fruteiras, introduziu plantas que servem como pesticidas naturais, aumentou a produção usando uma barragem subterrânea e comercializada os excedentes na feira de orgânicos do município.

A feira de Juazeirinho, aliás, é uma das 16 organizadas pela rede de entidades que trabalham e agroecologia no interior da Paraíba. O mais significativo é que essas feiras surgiram e cresceram ao longo do período de seca, assim como uma marca de produtos orgânicos, criada pela rede de organizações não-governamentais (ONGs).

Ivoneide costuma mostrar os detalhes para outros agricultores que a equipe da ONG Patac (Programa de Aplicação de Tecnologias Apropriadas), filiada à ASA, leva até lá. “Faço questão de compartilhar. O que eu quero para mim, quero para os outros”.

Petrônio diz que, durante todos os anos de seca, “nunca deixei de tomar banho de chuvisco”. Ou seja, do chuveiro abastecido por um sistema que coleta água da chuva.

Nina e a cisterna que garante a produção em seu sítio de 1,25 hectare

Chuva de transparência

Entre a assinatura de um convênio e o agricultor usar a água da chuva em sua cisterna há um processo em que participação é uma das palavras-chave. A outra é transparência.

Antônio Barbosa é enfático: “Sabemos de onde veio cada centavo que recebemos. Sabemos para onde foi cada centavo que usamos. Coletamos, registramos, sistematizamos e disponibilizamos para qualquer interessado os dados e as informações relativas às nossas atividades”.

De acordo com Barbosa, uma medida simples dos gestores da ASA ajudou a tirar da informalidade pequenos comerciantes e constituir a cidadania de agricultores que sequer tinham documentos.

“Não fazemos nada com pessoas que não tenham CPF. Se o agricultor for escolhido para receber alguma tecnologia, tem de tirar o CPF. O armazém que pretende vender uma simples colher de pedreiro para o programa Um Milhão de Cisternas tem de ter CNPJ, emitir notas fiscais”, assegurou o sociólogo.

1,2 milhão de cisternas ainda é pouco

Na década de 1970, enquanto os coronéis e os políticos nordestinos ainda batiam nas portas em Brasília para “vender” estradas de ferro, rodovias, açudes imensos e outras obras mirabolantes que “solucionariam” a seca, o agrônomo Aderaldo de Souza Silva já batia na tecla que uma das soluções possíveis seria captar água das poucas e irregulares chuvas. No início, ninguém lhe deu atenção.

No final dos anos 1990, a insistência começou a encontrar ouvidos atentos. Pouco depois, o especialista em Segurança Hídrica que atua na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) já avaliava os impactos socioambientais das primeiras cisternas construídas.

“Estamos concluindo um estudo sobre esse novo semiárido. Posso lhe adiantar que defendo a continuidade do trabalho da ASA. Ainda precisamos de mais ou menos 600 mil cisternas. Com 1,8 milhão de equipamentos, será possível dizer que a seca foi superada”, afirma Souza Silva em sua sala de trabalho na Embrapa Semiárido, em Petrolina.

Hora de resistir

As consequências do golpe de 2016 já chegaram ao semiárido. Pouco menos de 4.600 cisternas foram construídas pela ASA em 2018. Já é o menor número desde o início do programa.

O historiador Durval Muniz acredita que as políticas de convivência com o semiárido estão prestes a ser desmontadas. “Os partidos que representam as elites da região como o antigo PFL (DEM) foram amplamente derrotados na região porque perderam o monopólio do acesso a água, perderam o controle de indicar na fazenda de quem seria perfurado o próximo poço do DNOCS”, afirma o professor.

Muniz ressalva que “mesmo com seus pleitos históricos por ferrovia, transposição e refinarias de petróleo sendo atendidos, a elite local apoiou e continua apoiando o golpe porque assustou-se com a mobilidade social provocada pelas mudanças”.

O filósofo e teólogo Roberto Malvezzi , no entanto, permanece otimista. “A política de convivência com o semiárido é resultado da unidade dos movimentos sociais em torno da ASA. Ao superar as divergências políticas para focar num objetivo, os movimentos realizaram aquilo que no ano 2000 era apenas sonho. E isso não irá se apagar, a unidade permanece”.

Segundo Malvezzi, outro fator que não cairá no esquecimento é a mudança de vida das pessoas. “O agricultor sabe que sua vida mudou e sabe porque mudou. Mais que cisternas, a ASA construiu resistência”, sentencia.

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.