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“A África parece Pernambuco”: Baobácine traz cinema africano para o Recife

Débora Britto / 22/05/2018

Idealizada e realizada por mulheres negras que trabalham com audiovisual, a Baobácine – Mostra Filmes Africanos do Recife nasce com o desejo de escurecer e encurtar os caminhos que conectam o cinema negro brasileiro e a produção africana contemporânea, além de democratizar o acesso a este tipo de arte. Primeiro evento na capital pernambucana com essa dimensão, a mostra começa nesta quarta-feira (23), no Cine São Luís, e segue até o dia 28 com uma extensa programação de filmes  “clássicos” e contemporâneos produzidos no Senegal, Niger, Congo, Mauritânia, Burkina Faso e Mali, além de debates e minicurso.

“Quando nos colocamos como público de cinema, percebemos a lacuna e o desconhecimento que existem a respeito desses filmes. Além disso, num segundo momento, pensamos que os filmes africanos falam da vida das pessoas nos diferentes lugares onde se passam as histórias e como essas rotinas são, inevitavelmente, ultrapassadas pelo contexto de serem nações com uma herança de colonização”, explicam as organizadoras da mostra Ludimilla Carvalho, Natália Lopes e Raquel Santana. “A África parece Pernambuco”, frase dita por uma criança em oficina promovida pelas organizadoras, é um exemplo de como o contato com imagens e narrativas do cinema africano podem ser percebidas no Recife.

As organizadoras da mostra afirmam, ainda, a importância de se olhar para a condição das mulheres negras no cinema e também na construção de festivais. Por isso, na busca por mais espaços de reflexão e debates, as atrizes Cíntia Lima e Conceição Camarotti, a diretora Éthel Oliveira, a cineclubista Iris Regina e a produtora Stella Zimmerman participam, às 14h do sábado (26), de uma roda de conversa sobre os dilemas e desafios que enfrentam em seus cotidianos. Tudo, claro, em diálogo com os filmes exibidos na mostra.

Uma das atividades da mostra é o minicurso “Para além de Nollywood (como é apelidado o cinema produzido na Nigéria): experiências contemporâneas do cinema autoral africano”, que teve mais de 200 inscrições para uma turma, a princípio com 25 vagas, ampliada para 50. “Essa demanda colabora com a desconstrução do imaginário e do olhar que a gente tem, formados por modelos eurocêntricos, por padrões cinematográficos hollywoodianos, em última instância padrões cinematográficos que não nos representam, ou nos representam de uma forma negativa ou inferior”, diz a pesquisadora e curadora Janaína Oliveira, que ministrará o curso e que também é idealizadora e coordenadora do Fórum Itinerante de Cinema Negro (FICINE).

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Frame do filme “Félicité”, com direção: Alain Gomis. (Senegal, França, Bélgica, Alemanha, Líbano, 2017, 123’)

A curadoria da Baobácine abre uma janela de diálogos e reflexões sobre as identidades afrodescendentes no Brasil. Por meio do cinema, do contato com as imagens e discursos que cineastas africanos têm desenvolvido sobre si mesmos, ganham definição os pontos de conexão com a própria juventude negra brasileira. “O cinema africano se equilibra entre falar das questões que atingem os africanos, um movimento para falar de si, em vez de ser objeto de um olhar europeu que por diversas vezes estigmatizou, ridicularizou seus costumes, seu jeito de ser, e a dependência  financeiramente de seu ex-colonizador para impulsionar sua produção, para que atestem a qualidade das produções em festivais. Fica claro que é um cinema que quer andar com as próprias pernas e que tem que concorrer com toda uma cinematografia que já tem público (norte-americana e europeia)”, argumentam Natália e Ludimilla.

Esse cenário se aproxima da realidade de realizadores negros brasileiros: “É possível fazer uma associação entre o que propõe o cinema africano e o cinema independente brasileiro que trabalha essas questões políticas, porque além de debater questões ligadas à situação de uma população que é negra, um esforço para criar um discurso sobre si mesmo, mas também joga com a possibilidade de ao mesmo tempo que demarca esse lugar, mandar uma mensagem de afirmação. De sua cultura, de seus interesses, de seus saberes, de seu direito de ter a sua maneira de vestir, de falar, de se relacionar, não somente aceita mas respeitada”, defendem as organizadoras.

Com olhar cuidadoso para a produção contemporânea de cinema em países africanos, a mostra também propõe uma aproximação com o cinema negro brasileiro nos últimos anos. “Na Nigéria, por exemplo, tem um grupo de cineastas que tem se movimentado para produzir e se colocar publicamente, criticando e tentando se distanciar de Nollywood, que seria uma produção mais comercial. Há uma geração que luta para a possibilidade de uma realização de seus filmes, que são filmes independentes, o que acaba se conectando à realidade do cinema negro brasileiro”, aponta Janaína.

Segundo ela, um aspecto que chama atenção é a dificuldade de filmes africanos e do cinema negro ultrapassarem certos circuitos de exibição em festivais ou canais de TV paga para alcançarem um maior público. “A invisibilidade que paira sobre essas produções ainda é muito grande. O diálogo vai se estabelecer à medida que as pessoas tomarem ciência, tiverem contato com os filmes umas das outras. Esse é um processo ainda em curso, fazer circular as obras brasileiras no continente africano, no exterior de um modo geral, e fazer as obras africanas circularem aqui dentro”, explica. A realização da Baobácine em um cinema público, um dos poucos resistentes da geração do cinema de rua, é uma iniciativa que fortalece esse diálogo com a sociedade e realizadores.

Além da representatividade

Para Janaína, apesar de ainda ser um desafio, hoje existe uma maior abertura do público para as cinematografias africanas. “A gente pode dizer que a mostra colabora nesse sentido. Tem a ver com essas questões de ser negro no Brasil, com a questão da afrodescendência, e enfim, com a possibilidade de se olhar, de se ver na tela e buscar ali, cada um na sua subjetividade. as conexões com diferentes situações e realidades do continente africano, que é o que também está presente nos filmes que serão mostrados”, diz.

A projeção na tela do cinema traz possibilidades que dialogam com a representatividade de negras e negros, mas também vão além, e estimulam pessoas negras a realizarem suas próprias narrativas audiovisuais.“Um filme como Kbela [da diretora Yasmin Thainá] é uma bomba que fala exatamente de um ponto-chave para identidade da pessoa negra que é o cabelo. Então a carreira que o filme vem fazendo, sua acolhida, já mostra a força que tem colocar em imagens essas dores – na verdade as tentativas de apagamento da identidade e do exercício do racismo. Trata-se de um filme que só pode ser feito da perspectiva de uma pessoa negra. E esse tipo de filme vai abrindo portas, como outros também já fizeram. Por exemplo, recentemente um grupo de estudantes universitários negros estavam fazendo uma campanha de financiamento coletivo para um curta, aqui no Recife, que se chama “O fio”, exatamente para falar sobre representatividade de negros e negras”, dizem as realizadoras.

Cinema como educação

O caráter pedagógico da Baobácine incentiva também experiências de ensino de arte e cultura para além das salas de aula. Uma das preocupações das realizadoras na concepção do projeto, inclusive, é que a mostra desse oportunidade a professores, centros de educação e estudantes de colocar em prática o que prevê a  Lei 10.639/03, que determina a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana.

Cartaz maior

Reprodução do cartaz oficial da Baobácine.

Apesar do esforço para mobilizar um público que normalmente não acompanha os festivais de cinema que acontecem na cidade, as organizadoras da mostra Raquel Santana e Ludimilla Carvalho contam que encontraram desafios como a falta de recursos para aluguel de ônibus, por exemplo, para trazer estudantes de escolas públicas. Ainda assim, foram surpreendidas com procuras de professores que animaram a organização. “Estamos tentando viabilizar através da Gerência Regional de Educação (GRE Recife Sul) transporte para a ida de estudantes do Ensino Médio e EJA. Fomos contactadas até por um professor de uma turma de graduação de Serviço Social que quer levar os alunos e nos perguntou o que era necessário fazer. As pessoas perceberam que é importante que elas vejam esses filmes exatamente por esse contexto de se relacionar com a cultura africana, como uma das que mais fortemente nos influenciou, em virtude também da lei”, explicam.

Além disso, a mostra realizou visitas de divulgação a grupos de comunicação, cultura e mobilização em comunidades periféricas, como Daruê Malungo, Maracatus Encanto do Pina e Porto Rico, Ação Cultural Caranguejo Uçá e Livroteca Brincante do Pina e Feira Quilombar.

“Achamos que são essas as contribuições da Baobácine, no sentido da formação de público, na formação e afirmação de nossa identidade negra no Brasil. Sempre que a gente amplia o leque do repertório das representações, a gente está criando e reforçando as possibilidades de combate ao racismo, de combate ao preconceito, de combate à ignorância que se relaciona no senso comum da sociedade brasileira no que diz respeito às culturas africanas”, defende Janaína.

 

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.