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A declaração de Lula e os genocídios lembrados ou esquecidos

Marco Zero Conteúdo / 20/02/2024
Bebê usando fralda descartável, completamente sujo de fuligem, recebe oxigênio enquanto é observado por adultos em um leito de hospital.

Crédito: Instagram @_doaa_mohammad/Doaa Albaz

por Anderson Barbosa*

No momento em que começo a escrever esse artigo quase 30 mil palestinos já foram assassinados pelo Estado de Israel. Entre eles, mais de 12 mil crianças. Mais de 1 milhão de pessoas foram expulsas de suas casas e se espremem em campos de refugiados improvisados, sofrendo a angústia de poderem ser as próximas vítimas dos bombardeios israelenses, ao mesmo tempo em que sofrem com a escassez quase completa de alimentos, sendo muitas vezes obrigadas a comer ração animal para não morrer de fome ou beber água poluída para não morrer de sede. Mais de 300 instalações de saúde foram atacadas e praticamente não existem mais locais para onde levar os feridos e doentes. E, mesmo quando existem ou existiam, não raras vezes as ambulâncias são impedidas por tanques de guerra ou por bombardeios de prestarem socorro às vítimas.

No momento em que você estiver lendo certamente os números acima já estarão desatualizados. É provável que já estejam mesmo agora, já que nem todas as vítimas e corpos puderam ser resgatados dos escombros e o número de assassinados tem tudo para ser muito maior que o oficial, registrado tanto pelas autoridades palestinas quanto pela Organização Mundial de Saúde.

Esse é o drama atual do povo palestino, ou melhor, é parte dele, já que minhas palavras são insuficientes para descrever o tamanho das atrocidades que estão sendo cometidas na Faixa de Gaza nos últimos quatro meses. Você pode chamar a isso pelo nome que quiser, mas isso não muda a realidade do que está acontecendo. A África do Sul chamou de genocídio e denunciou Israel na Corte Internacional de Justiça por isso. O Brasil, corretamente, endossou a acusação. No último 18 de fevereiro, o presidente Lula, de forma corajosa e correta, chamou novamente assim com todas as letras.

A verdade certamente dói aos ouvidos daqueles que idolatram a mentira. E de forma completamente esperada reagiram eles furiosamente à declaração de Lula. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, o genocida carniceiro de Gaza, obviamente esperneou e, como é habitual, distorceu a declaração de Lula. Para surpresa de ninguém utilizou a carta curinga que utiliza toda vez que seus crimes são denunciados e expostos: acusou Lula de antissemitismo. Acusou Lula de minimizar o holocausto judeu. Obviamente mentiu, já que em nenhum momento Lula fez isso.

Presidente Lula durante a cerimônia de Abertura da 37º Cúpula da União Africana, na Etiópia. Foto: Ricardo Stuckert/PR

Curiosa essa acusação de Netanyahu contra Lula, já que minimizar os crimes dos nazistas foi exatamente algo que o próprio Netanyahu fez alguns anos atrás: “Hitler não queria exterminar os judeus na época”. Estas foram as exatas palavras proferidas pelo genocida Netanyahu. Declaração que pode ser facilmente conferida clicando aqui.

À reação do carniceiro de Gaza juntou-se a de seus vassalos na mídia brasileira, assim como na extrema-direita bolsonarista. O mesmo segmento da mídia que se escandaliza com a fala de Lula mas oculta ou minimiza e justifica o assassinato de mais de 12 mil crianças palestinas. A mesma extrema-direita que não se escandalizou quando Bolsonaro se encontrou e tirou foto sorridente ao lado da líder do partido neonazista da Alemanha, Beatrix Von Storch.
Mas a hipocrisia dos citados acima já é velha conhecida e não merece mais consideração do que já foi dada aqui. Vamos tratar da declaração de Lula.

O genocídio que vitimou os judeus certamente é algo que deve horrorizar a humanidade e que deve ser sempre lembrado com repulsa.

Mas infelizmente ele não foi o primeiro nem o maior da História. Em termos de escala de mortos o genocídio dos povos originários na América foi muito maior. Não foi o primeiro nem o maior nem mesmo do século passado. No início do século XX, pelo menos dez milhões de congoleses foram exterminados sob o comando do rei da Bélgica, Leopoldo II. Sobre o genocídio do povo congolês é possível dizer que choca não só a brutalidade do acontecimento em si, mas o fato dele ser frequentemente esquecido ou ignorado. E talvez por isso mesmo ele guarde mais semelhanças com o atual genocídio em Gaza. Mas voltemos a isso mais à frente.

Mas antes é preciso dizer que, evidentemente, não se trata aqui de fazer uma competição ou ranqueamento sobre qual povo sofreu mais. Sob determinado aspecto e dimensão a dor e o sofrimento de cada povo é único e incomparável a qualquer outro, assim como são a dor e o sofrimento de cada indivíduo. Há algo individual e particular na dor que é impossível mensurar externamente. Mas certamente há ali também algo de geral e universal e é exatamente isto que torna possível nossa empatia por quem sofre. Entre os povos algo semelhante acontece. E se é verdade que a tragédia de cada povo guarda particularidades que só podem ser compreendidas conhecendo profundamente este povo. É verdade também que há um aspecto ou dimensão geral, onde não só é possível mas é necessário comparar ou equiparar tal sofrimento. Aliás, é precisamente porque é possível comparar e equiparar esses episódios é que podemos chamar a todos eles pelo mesmo termo: genocídio.

Os povos indígenas da América, o povo congolês, os judeus foram igualmente vítimas de genocídios. E assim como se deve evitar a comparação sobre quem desses povos sofreu mais ou menos, deve-se igualmente evitar a seletividade de alguns que só conseguem enxergar em um deles a qualificação de vítimas de genocídio.

Não coincidentemente, é essa mesma seletividade que impede estas pessoas de enxergar que o que acontece hoje na Palestina é um genocídio. É essa seletividade que faz com que essas pessoas quando falam do holocausto como o maior genocídio da História, esqueçam ou ignorem que mais de dez milhões de congoleses foram assassinados pelo governo belga no mesmo século.

Os métodos de limpeza étnica, de extermínio com base no critério racial entre todos esses casos são basicamente os mesmos. Na comparação entre o genocídio do povo judeu e o atual do povo palestino há ainda a semelhança entre os campos de concentração. E no que Israel tornou a Faixa de Gaza, senão num gigantesco campo de concentração? Os palestinos vivem hoje sob um regime brutal de colonização e apartheid, muito semelhante ao qual foram submetidos os judeus pelos nazistas. Os palestinos são vítimas inclusive de experimentos para as armas israelenses ou até de roubo de seus cadáveres pelo exército israelense para serem levados a laboratórios. Mesmos métodos empregados pelo regime nazista contra os judeus.

Mas certamente para as pessoas que compartilham dessa seletividade é conveniente esquecer ou minimizar genocídios e massacres na África, Ásia ou América. Para elas, as vidas que de fato importam e merecem ser lembradas são as dos europeus e/ou brancos. E elas acreditam realmente nisso ainda que não percebam.

É precisamente isso que as impede de se comover de fato com a dor e o sofrimento do povo palestino. Os palestinos não são europeus nem são majoritariamente brancos. Os palestinos pertencem à mesma categoria de seres humanos a qual pertencem os congoleses. A categoria daqueles por quem a empatia deve ser, no máximo, passageira. Daqueles cujo sofrimento não merece jamais ser comparado ou equiparado ao de europeus e/ou outras populações majoritariamente brancas.

E quem ousar fazer diferente disso deve ser alvo de toda a ira da civilização ocidental. Lula ousou dizer a verdade. Talvez mais que isso: ousou elevar palestinos à categoria de seres humanos iguais aos filhos do ocidente. E portanto, a ele deve ser destinado todo o ódio e fúria dos que se dizem porta-vozes da civilização ocidental.

*Professor de História licenciado pela UFPE

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Marco Zero Conteúdo

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