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A delegada, o coronel e os livros

Inácio França / 24/10/2025

Crédito: Jeniffer Oliveira/Marco Zero

Em que tipo de empreendimento um casal formado por uma delegada da Polícia Civil e um coronel da Polícia Militar decidiu investir depois que ela se aposentou e ele foi para a reserva?

1. Empresa de vigilância privada;

2. Clube de tiro;

3. Cursinho para jovens interessados em prestar concurso para a polícia;

4. Loja de armas;

5. Livraria especializada em literatura universal e autores de esquerda, com exposições de arte e debates sobre temas progressistas.

Se você não escolheu a última opção, preferindo as mais óbvias, lamento informar: você se precipitou.

Na contramão dos estereótipos dos profissionais de segurança e da realidade do mercado editorial brasileiro, a delegada Rita de Cássia Valença e o coronel Givanildo dos Santos apostaram no interesse dos caruaruenses em ler clássicos, literatura contemporânea e ensaios sobre a revolução proletária.

Sejamos sinceros, quem escolheu a opção “1” acertou parcialmente.

O coronel Givanildo é dono de uma empresa de “gerenciamento de riscos” que já funcionava no mesmo prédio em que a Livraria Cultural foi instalada em maio deste ano. A decisão de abrir um estabelecimento que funcionasse como espaço cultural foi de Rita, recém-aposentada: “revisitei muito o meu passado, percebi que queria algo completamente diferente de lidar com violência e crime. Sempre que pensava em abrir uma empresa ou negócio, a primeira palavra que me vinha à mente eram os livros”.

Em dois pavimentos, o térreo e um mezanino, a loja do casal de policiais está longe de ser uma megalivraria como a falida Cultura do Paço Alfândega, principal referência de Rita de Cássia. Mesmo assim, tem dois pavimentos, o térreo e o mezanino o que, convenhamos, parece imensa para uma cidade como Caruaru.

Espalhadas pela loja, há homenagens a livreiros e produtores culturais, com destaque para Tarcísio Pereira, o criador da famosa Livro 7. “Não o conheci pessoalmente, mas admiramos muito o legado dele”, admite a delegada, que, na juventude, pensou em cursar Biblioteconomia antes de optar por Direito.

O mais surpreendente é o conteúdo de suas prateleiras. Logo na entrada, há um espaço dedicado a livros que tratam de revoluções populares: soviética, sandinista, zapatista, vietnamita, cubana ou a comuna de Paris.

Entre as estantes ou por trás do balcão da cafeteria, a proprietária circula com seu boné verde-oliva com bandeirinha de Cuba e estrela vermelha. “O livro ainda é uma das formas mais potentes de resistência, de educação e de cuidado com o outro. A livraria é o meu jeito de contribuir para um mundo mais consciente e sensível”, explica a delegada.

O posicionamento da esposa, expresso na decoração e no acervo para que nenhum cliente tenha dúvidas, não incomoda o coronel Givanildo, um oficial que já foi comandante do batalhão de policiamento de Caruaru. “Partilhamos com grande força o pensamento político social, e isso, tornou mais prazeroso realizar em conjunto a construção deste ambiente de livros”, resumiu Givanildo.

“Muitos colegas esperavam que eu abrisse um clube de tiro, mas fizemos um clube de livros”. Givanildo é bom em frases de efeito, como se confirmará mais adiante.

A foto mostra uma prateleira de madeira em uma livraria. No topo da estante há uma placa vermelha e branca com a palavra “PROIBIDO” em destaque, seguida de ícones que indicam ser proibido o uso de coworking, tablet e notebook. Ao lado da placa, há um par de binóculos. Na prateleira abaixo, estão expostos livros, entre eles “A Revolução Russa”, de Maurício Tragtenberg, e outros títulos de capa escura. À esquerda, parte de outra estante aparece com livros infantis coloridos.

Crédito: Jeniffer Oliveira/Marco Zero
A foto mostra uma parede interna de uma livraria decorada com grandes painéis fotográficos em preto e branco que retratam momentos históricos de protestos no Brasil. Na parede à esquerda, há uma imagem de mulheres usando vestidos coloridos, marchando em um protesto no Rio de Janeiro em 1968 contra a censura. À direita, há duas fotos em preto e branco: a superior mostra pessoas em uma sacada com uma faixa escrita “A UNE SOMOS NÓS, A UNE É NOSSA VOZ”; a inferior exibe um manifestante correndo em meio a um protesto de rua. No canto direito da imagem, vê-se parte de uma estante com livros organizados por cor e uma escada de madeira que leva ao andar superior.

Crédito: Jeniffer Oliveira/Marco Zero
A foto mostra Rita de Cássia Valena, uma mulher em pé dentro de uma livraria ou café literário, posicionada no mezanino do espaço. Ela tem cabelos longos pretos e escuros, usa óculos, uma blusa rendada marrom e saia da mesma cor, com cinto xadrez. Usa relógio dourado e uma flor presa na boina preta sobre o cabelo. Atrás dela, uma parede exibe retratos em preto e branco de figuras conhecidas da literatura e do pensamento, organizados em duas fileiras, cada um com o nome impresso abaixo. À direita, uma grande janela em arco deixa entrar luz natural, iluminando o ambiente.

Crédito: Jeniffer Oliveira/Marco Zero

Vendas surpreendem

E o público ainda compra livros? Em Caruaru não falta clientela, garante Givanildo. “Desde o início o movimento nos surpreende positivamente, não sei se é porque havia uma carência desse tipo de estabelecimento aqui na cidade, mas nosso resultado de vendas está ótimo, não temos do que reclamar”, explica o coronel da reserva e livreiro iniciante.

Segundo o casal, um dos trunfos do empreendimento é o modelo de negócios adotado. “Não é só uma livraria, é um espaço cultural, um ponto de encontro, um ambiente para pequenos eventos”, explica Rita de Cássia. Segundo ela, o desafio é manter o público interessado: “este é um trabalho permanente, as atividades precisam ser bem pensadas para que as pessoas sintam prazer em descobrir o quanto a leitura e o conhecimento podem ser fascinantes”.

Os livros que vão parar nas estantes são escolhidos sob critérios inegociáveis. Inflexíveis mesmo. “Nosso acervo é voltado à filosofia, história do mundo, história do Brasil, antropologia, psicologia e literatura”, explica a delegada, ressalvando que é preciso energia para conter as editoras que tentam empurrar apenas os gêneros que vendem milhões.

Bem humorado, seu marido faz a lista dos gêneros que, de jeito nenhum, são vendidos na Cultural: “não trabalhamos com livros de autoajuda, coach, pseudociência e dogmas religiosos!”

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de conteúdo da MZ.