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A dificuldade das mulheres da periferia de acessar serviços de saúde mental

Marco Zero Conteúdo / 10/03/2025
A imagem mostra uma mullher e uma menina negras vistas de costas. A pessoa à esquerda tem cabelos trançados e usa uma blusa amarela com detalhes verdes e vermelhos. A pessoa à direita é uma criança com cabelos presos em pequenos coques. Ambas estão olhando para uma parede de concreto desgastada, com um céu azul e algumas nuvens ao fundo. A pessoa à esquerda está usando um colar prateado. A imagem parece ser tirada em um ambiente externo, possivelmente em um quintal ou varanda.

Crédito: Martihene Oliveira/Sargento Perifa

por Martihene Oliveira*

Seis meses ou até um ano. Esses marcos temporários são registrados por mulheres pretas e periféricas de Recife que esperam por atendimento psicológico oferecido pela prefeitura da capital pernambucana. A dor que alastra o coração e a alma dessas mulheres é invisível para o poder público, que não garante uma assistência à saúde mental de forma efetiva e rápida. Enquanto isso, milhares de mulheres, que aguardam na fila de espera, enfrentam o medo, a depressão e a solidão.

“Ela disse a mim que o meu caso era para uma psicóloga me acompanhar, mas no momento ia demorar um pouco, porque a fila de espera estava muito grande, tem gente lá que está esperando há mais ou menos um ano para ser atendido, porque na prefeitura não tem quantidade de psicólogos suficiente para suprir a demanda”, narra Elizabeth Santos, de 40 anos, ao contar a experiência de tentar atendimento psicológico na Prefeitura do Recife.

Segundo Elizabeth, a consulta foi uma sugestão de uma endocrinologista, que a encontrou em um posto de saúde, fora de sua comunidade. A profissional diante do seu relato de insônia e alimentação compulsiva para tratar da obesidade, solicitou agendamento com uma especialista de saúde mental.

Ilustração: Isadora Clemente/Sargento Perifa

Antes de nos aprofundarmos sobre a realidade em Recife, é importante informar que a pesquisa Esgotadas com 1.078 mulheres brasileiras pelo Laboratório da Inovação Think Olga apontou que quase metade das entrevistadas já foi diagnosticada com algum transtorno mental. Desse grupo, 68% faz acompanhamento médico; 55% afirmou não terem recebido nenhum diagnóstico, contudo, entre aquelas que responderam afirmativamente, ansiedade (35%), depressão (17%) e síndrome do pânico (7%) foram os diagnósticos que mais se destacaram.

São mulheres com idades a partir dos 18 anos, de todas as classes e regiões do país, com ansiedade, depressão, síndrome do pânico, entre outros transtornos.

Voltemos ao Recife, cidade que, segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) possuía em 2022 uma população de 1.488.920 habitantes, dos quais 54,9% são mulheres.

Para falar de acesso à saúde mental por mulheres periféricas na cidade é preciso primeiro conhecer qual a estrutura que a cidade dispõe se, em tese, todas as mulheres recifenses, independentemente de cor ou classe, decidissem buscar apoio psicológico no sistema de saúde municipal.

Segundo resposta da prefeitura enviada no dia 12 de janeiro de 2025 à solicitação via Lei de Acesso à Informação (LAI), há 20 psicólogos com carga de 40 horas semanais vinculados às equipes multiprofissionais (eMulti) dos oito distritos sanitários do município. Cada eMulti dá suporte a até nove equipes de Saúde da Família, realizando atendimentos diretos à população.

Para mulheres em situação de violência, o Instituto Clarice Lispector, programa ligado à Secretaria da Mulher de Recife, disponibiliza oito psicólogas. Na mesma resposta via LAI, a secretaria de Saúde informou que há 18 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) em funcionamento que se dividem em serviços voltados para a população infanto-juvenil, pessoas que realizam uso complexo de substâncias psicoativas e pessoas com transtornos em geral.

Fora isso, há psicológos em um Serviço Integrado de Saúde Mental, um Centro de Convivência, três Unidades de Acolhimento e em 50 Serviços Residenciais Terapêuticos, mais comumente conhecidas como residências terapêuticas. Também é possível ter acesso a atendimento psicológico nos serviços de média
complexidade – atendimento ambulatorial nas policlínicas – e de emergência.

A prefeitura acrescentou que há disponibilidade de equipamentos da Academia da Cidade para auxiliar em processos terapêuticos: “os Polos de Academia da Cidade, entre outros dispositivos que auxiliam no tratamento de ansiedade e/ou depressão. A unidade a qual o usuário será direcionado, dependerá da análise realizada pela equipe de saúde da família”, diz a resposta da gestão municipal de saúde.

Essa estrutura, no entanto, não bastou para garantir o acesso a Elizabeth Santos – e das outras mulheres que entrevistamos nas comunidades periféricas do Recife – a atendimento psicológico.

O impacto da pandemia

Ceça Costa, doutora em psicologia clínica e integrante do Ilê Psi, um consultório formado majoritariamente por psicólogas negras que compreendem o racismo como um fator de sofrimento psíquico enfatiza que o serviço de atendimento psicológico para qualquer cidadão é uma tarefa do poder público e alguém precisa mostrar como fazer: “existe sim a possibilidade de ajudar, isso é uma tarefa do serviço público e alguém precisa dizer a ele como fazer. Eu não acredito em salvação fora do SUS. Nós fazemos uma clínica de atendimento psicológico aqui fora do SUS, porque o SUS não tem”.

A falta de assistência especializada pode agravar a saúde mental de mulheres periféricas. A partir da pandemia de covid-19, por exemplo, a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou em 25%, conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). O resumo do relatório da OMS apontou que o impacto da covid-19 na saúde mental atingiu principalmente as mulheres. E, após a pandemia, é perceptível notar um número elevado de mulheres lidando com quadros de depressão e/ou ansiedade.

“A pandemia mostrou isso para gente, mas a pandemia foi só um sinal, foi aquele apito da panela de pressão que botou para fora a pressão, mas as mulheres já adoecem há muito tempo e continuam adoecendo. Quando elas são atendidas, elas são medicalizadas. A medicalização esconde a dor e deixa essas mulheres mais quietas. Então a medicalização não é a saída para saúde mental. É só um apoio quando precisa. E as mulheres? Porque elas estão adoecendo, porque elas estão perdendo os filhos. A grande maioria já não tem marido, porque é mãe solo, é mãe solteira”, relata a psicóloga.

Quando o assunto é mortes por problemas de saúde mental, o Ministério da Saúde, através do Boletim Epidemiológico v.55 nº4, aponta que “experiências de vida estressantes – como a morte de entes queridos, diagnóstico de doenças graves, divórcio, violência doméstica, desemprego, adversidades financeiras ou migração forçada – não apenas aumentam o risco, mas também podem servir como gatilhos para o ato suicida”.

No Brasil, as mortes autoprovocadas, segundo o último levantamento realizado em 2021, ocupam a 27ª posição no número de óbitos do país, sendo a 3ª maior causa das mortes da população jovem, com 1 suicídio a cada 34 minutos. As mulheres ocupam 25% desse grupo e Pernambuco, nesse mesmo relatório, está na 6ª posição quando se trata do aumento dessa taxa entre 2010 e 2021, que foi de 67% no número de mortes por suicídio.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que para cada suícidio existe uma média de 20 tentativas e para cada tentativa com sucesso, uma média de 6 pessoas próximas são diagnosticadas com depressão, ansiedade entre outros transtornos. Ainda, para o Ministério da Saúde “até 90% das pessoas que cometeram suicídio apresentavam algum transtorno mental antes do ato, sendo a depressão o transtorno mais frequente. Desse modo, o suicídio também pode ser compreendido como um indicador do bem-estar psicossocial de uma população”.

Abaixo, você conhecerá algumas mulheres com quem eu tive a oportunidade de dialogar e de conhecer. Confira trechos que exibem uma realidade silenciosa, camuflada no estereótipo de guerreira, silenciada pela falta de atendimento psicológico.

Lindalva: um enorme acúmulo de “tristeza” na rua Chã de Alegria

Há relacionamentos que adoecem.

— Não, eu não vou comemorar.

— Mas, por que, Dona Lindalva? – Disse eu, curiosa e inquieta.

Era 1 de fevereiro de 2025 e eu havia acabado de lhe informar que no dia seguinte seria o meu aniversário. Ela vibrou, me deu os parabéns e perguntou se teria festa em minha casa. Eu disse que não, nada com muita purpurina, mas minha família e alguns amigos de infância nunca deixam essa data sem nenhum estardalhaço.

O cheiro na calçada estava relativamente suportável. O dia havia sido ensolarado, o amontoado de tecidos apodrecidos onde ela dorme com Moisés não recebeu contato com a água. Cheguei por volta das 19h, armei o meu banquinho de improviso e sentei de frente para ela, para uma conversa olho no olho.

Mais de 20 dias após essa nossa última conversa, Dona Lindalva continua com a mesma roupa, Moisés, também. A casa, do mesmo jeitinho, com cada coisinha no lugar, as plantas da rua Chã de Alegria também não se arredaram, pelo contrário, criaram raízes e fortaleceram-se. O tempo as deixou mais bonitas, ele faz as flores germinarem a cada estação. É um subúrbio do Recife, um bairro da periferia da zona norte, a Bomba do Hemetério, vizinho ao Morro da Conceição.

A Bomba do Hemetério possui 8.472 habitantes, desse número, 54% da população é composta por mulheres. No quesito negritude, o bairro é 68,56% feito de negras e negros.

Lindalva é uma negra retinta que afirma possuir 56 anos, mas, a profissional do Consultório na Rua me informou que sua idade é 60. Eu poderia tirar essa dúvida pedindo a mesma para ver seus documentos, contudo, o medo de me tornar invasiva e perder a glória da conversa fez desse detalhe, para aquele momento, algo irrelevante. Ainda que Lindalva tenha mais idade, sua dignidade foi esquecida. E ainda que ela tenha menos, seu direito de envelhecer, também.

De todo modo, ao colocar o endereço de sua grande casa no Google Street View, tenho imagens de 2011 até agora. É que, pelo menos de dois em dois anos, o carrinho invasivo da big tech, passa nas ruas das cidades do país, registra fotos inusitadas, borra os rostos das pessoas e disponibiliza para o mundo. Às vezes há brechas para a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), e quem se sente invadido, pode ganhar uma grana.

De dor em dor, um acúmulo de objetos foi tomando o espaço. As cortinas registradas pelo street view se transformaram em farrapos e o enorme casarão foi engolido pelo lixo, pelos trapos, plantas mortas, resto de comidas, ratazanas, geladeira de inox comprada na loja, dinheiro velho, roupas, máquina de costura, garrafas e muita tristeza. Um espaço de menos de um metro entre a grade e a casa sobrou para mãe e filho que quando chega a madrugada, se deitam um de frente para o outro, com as cabeças para lados opostos.

— Tudo na infância é bom, tudo na adolescência é bom, mas quando vai chegando a velhice a gente já vai ficando mais envergonhada, mais quietinha no cantinho, né?

— É mesmo? A senhora se divertia muito na juventude?

— Ah… eu era uma negra muito fogosa. Sambava, ia pro Carnaval, dançava muito e desfilava por aí. Depois casei e a gente se tornou evangélico. Ele sempre quis ser pai, mas eu demorei pra engravidar. Só cedi a vontade dele depois de 6 anos de casada. Quando engravidei já tinha 36, e o menino nasceu com hidrocefalia. Pronto, esse foi o fim do meu casamento.

A imagem mostra um homem e uma mulher sentados em frente a um abrigo improvisado, com grades e tecidos pendurados. A mulher, de cabelos curtos e grisalhos, veste um vestido estampado e tem expressão séria. O homem, com barba e regata escura, parece gesticular enquanto fala. O ambiente sugere vulnerabilidade social, com sacolas, roupas e objetos espalhados. A iluminação artificial destaca os contrastes de luz e sombra no local.

Dona Lindalva mora na Bomba do Hemetério com seu filho

Crédito: Martihene Oliveira/Sargento Perifa

Os dados da Esgotadas informam que poucas amizades (25%), solidão (24%), árdua jornada de cuidado ou trabalho doméstico (20%), falta de parceria do companheiro(a) (19%), problemas amorosos e conjugais (17%), responsabilidades com filhos (16%) e falta de rede de apoio (16%) são as maiores causadoras de depressão e ansiedade. Nesse aspecto, Dona Lindalva crava em todas as etapas.

Em novembro de 2024, quando comecei a preparar a reportagem, eu não sabia o nome e nem muito sobre ela. Depois de algumas pistas do Sr. Google e de comentários sobre a mesma na comunidade, o interesse foi ficando mais latente. Dona Lindalva, sem dúvidas, é a mulher da história de bell hooks, a síntese em carne e osso da solidão da mulher negra. Aquela que cuida de todos, que embeleza a rua, que já teve o corpo desejado e que sambava como ninguém. A que foi arrasada pelo amor e foi adoecendo aos poucos, diante dos olhos da sociedade, dos vizinhos que hoje não suportam o seu cheiro, dos pais, professores e alunos que entram e saem da escola Mardônio Coelho e do posto de saúde Dr. Luiz Wilson.

— Eu não gosto de comemorar aniversários, eles me trazem muitas lembranças. Lembram casa cheia, comemorações, gente reunida em volta da mesa… lembram o amor de um casamento.

Um silêncio tomou conta do espaço e seu olhar foi ficando distante.

Quando comentei à psicóloga Ceça Costa sobre esse diálogo, ela respirou fundo e comentou “a gente pensa: então tem que atender todo mundo, porque o SUS é universal, perfeito. Mas a gente tem a equidade, que é tratar diferente quem tem necessidade diferente. Isso tá na lei, tá no papel, mas não tá na prática. O posto de saúde falha porque ele não entende que dona Lindalva precisa que o posto vá até ela e fale com dona Lindalva como você foi, sente com ela, escute dona Lindalva. Porque a dona Lindalva tem muito para falar. O silêncio dela é denunciador”.

Camila: a perda de um filho e o desencanto do viver

Quando uma mãe perde um filho negro assassinado, ela perde duas ou três vezes. Perde fisicamente, moralmente e emocionalmente também.

“Ela ficou assim após a perda de Richard. Não tinha nada a ver com drogas. Ele morreu assassinado porque se envolveu com uma mulher casada”, afirmou Carolina Félix, 32, irmã de Camila Félix, 34, morta em outubro de 2024.

— Esse miojo, partido no meio é a sopinha que guardei para Camille e Mateus. Daqui a pouco ele vai acordar e vai se alimentar – Disse Camila.

— E depois?

— Depois a gente vê. Aqui não tem nada, só um pouquinho de feijão que meu pai deu, já para eu inteirar amanhã para ver se dá para arrumar um macarrão para fazer comer dos meus filhos. A geladeira tá assim, eu guardo o meu feijão aqui embaixo, ó! Tem nadinha, ó!

Era 28 de outubro de 2022, havia cinco meses que as chuvas no Recife ceifaram mais de 149 vidas e em uma visita do Coletivo Sargento Perifa à residência de Camila Félix, a conversa se resumiu à falta de comida para ela e os filhos. Mesmo que sua casa estivesse a quase um metro de distância de um precipício, a lona que cobria a barreira estivesse rasgada e o luto pelas perdas na região metropolitana do Recife ainda nos assombrasse.

Claro que isso tudo foi uma tragédia anunciada, e a morte de Camila, 1 ano após esse depoimento, também. Embora não fosse pelas chuvas, a morte dela seria só mais um caso, caso costumeiro na favela. Não só por causa do miojo partido, da insegurança alimentar, nem porque 15% das famílias da comunidade foram afetadas pelo feminicídio e 83% pela violência de gênero e suas mais variadas nuances.

O caso dela, estaria nas estatísticas do Censo do Coletivo de Mídia Independente Sargento Perifa, no percentual de 32% que corresponde a 99 famílias do Córrego do Sargento que perderam pessoas para a violência urbana, não que ela fosse a vítima direta, nesse caso, seu filho, Richard, 15 anos, foi o preto assassinado. A morte dela foi ocasionada pela dor da perda, dor esta que lhe deu desânimo para caminhar 6 km e ir até o Córrego da Jaqueira, no mesmo bairro, ser atendida pelo posto de saúde e descobrir o diagnóstico que ceifou sua vida em tempo precoce.

Quando o assunto é fatalidades, mortes de entes queridos são responsáveis por 45% do adoecimento mental de mulheres, mas Camila, além da perda do filho, também foi atravessada pelo racismo e suas mais variadas nuances, que ocasiona a negligência do Estado em fornecer o básico para uma comunidade periférica onde negros, para estatísticas boas ou ruins estão sempre no topo das notícias.

A comunidade do Córrego do Sargento está localizada em Linha do Tiro, bairro de quase 15 mil habitantes situado na zona norte do Recife, composto 70,37% de negras e negros e 52,8% de mulheres. Desse grupo, 372 famílias residem no Córrego do Sargento. Em outubro de 2024, o Censo do Sargento Perifa entrevistou 306 representantes de famílias da comunidade. Perguntados sobre acesso ao posto de saúde, um total de 169 (64,4%) famílias afirmou não ter. Além disso, moradores consideram que a comunidade não possui área de lazer (90,2%), nem cultura (73,5%), nem creche (39,9%). Também não há escola nem parque, apenas uma igreja evangélica, a sede do Coletivo Sargento Perifa e uma praça criada pelos próprios moradores.

Tudo é fora do Córrego do Sargento e se para o atendimento básico de saúde, as pessoas precisam caminhar quase dois quilômetros até o Córrego da Jaqueira, Unidade de Saúde da Família disponibilizada para atender também a essa comunidade no bairro, quando o assunto é atendimento psicológico, a assistência é zero.

“Eu nunca vou entender isso. Ela estava com um caroço enorme no pescoço, mas o caixão veio fechado. A declaração foi de tuberculose. Eu tanto que falava: ‘Camila, vamos ao médico para ver isso?’. E ela não tinha ânimo pra nada. Para mim ela se entregou”, relata Carolina.

Camila faleceu no Hospital Otávio de Freitas, depois que se deitou no chão da emergência e gritava pedindo que lhe dessem ao menos soro, porque não conseguia se alimentar.

Madalena: o câncer, a solidão e o medo

Hospital Universitário Oswaldo Cruz, Recife, 10 de maio de 2024, 12h33:

— Comecei. [choro]

— Tá chorando?

— Tô

— Oxe, vai dar tudo certo, menina. Deus está no controle. Calma!

— Tá.

— Doi?

— Só uns beliscões na mão, mas a dor é mais pelo medo do que pelo procedimento de agora.

Enquanto escuto os bips da máquina da quimioterapia, Madalena chora. Sozinha, enrolada em sua colcha piel de pato, com meia nos pés para conter o frio e com o braço esquerdo, onde recebe o remédio, totalmente coberto. Estamos separadas por uma parede, mas conectadas via WhatsApp.

A conversa marca sua primeira vez na sala de tratamento e no seu caso, as sessões são infinitas. Algo paliativo, que não vai permitir que lhe caiam os cabelos, mas vai descamar sua pele, lhe gerar enjoos perturbadores, dores intensas nos pés e nas pernas e um desmaio em casa, dois dias após essa conversa, na frente de sua mãe e filha, que posteriormente vão gritar desesperadas pensando que ela terá morrido.

Madalena Oliveira, 36, é moradora do município de Abreu e Lima, cidade da Região Metropolitana do Recife, com 98.462 habitantes, dos quais 51.508 são mulheres. Negra, mãe solo e principal provedora de seu lar, em março de 2024 foi diagnosticada com um câncer no reto, que passou para o intestino, depois para o baço e pulmão e também tomou conta de sua região pélvica. O quadro metastático lhe gera insônia e angústia. A vaidade briga com sua aparência que agora, em março de 2025, depois da cirurgia no intestino, lhe afastou da quimioterapia por dois meses e lhe devolveu alguns quilos a mais. De “brinde”, uma bolsa de colostomia vai lhe acompanhar até seu último dia de vida.

A quimioterapia lhe formiga o braço e lhe dá vontade de morrer, causa isolamento e o desejo de se esconder. De 21 em 21 dias, após cada procedimento, sendo 7 dias sem comer e nem beber água. Durante esse período, abastecida apenas por soro, quando a dor nos pés e pernas ficam insuportáveis, a morfina é sua maior aliada.

Madalena é o retrato de 50,5% das mulheres com câncer no país, conforme a pesquisa realizada em 2023, pela Revista Brasileira de Cancerologia. O câncer de cólon e reto é o segundo mais frequente (9,7%) no grupo, perdendo apenas para o câncer de mama feminina(30,1%).

O diagnóstico de Madalena também ilustra outra realidade no Brasil, de que doenças físicas como o câncer, provocam transtornos mentais aos pacientes, segundo o Instituto Think Olga. Apesar disso, o posto de saúde no município de Abreu e Lima, onde Madalena é atendida, desde novembro de 2024, a mantém na fila de espera, para atendimento psicológico, sem nenhuma previsão de agendamento.

“Acredito que minha saúde mental nunca mais foi a mesma e nunca será. É muito difícil encontrar profissionais de saúde na área de psicologia, pois pelo SUS demora meses para você conseguir agendar uma consulta. Só fui atendida uma vez e depois disso, nunca mais. Minha experiência em relação a essa única consulta: no início eu ficava me perguntando sobre o motivo de estar ali e o que isso iria mudar na minha vida. Para mim, nada, pois não mudaria meu diagnóstico e muito menos me traria a cura. Mas depois que conversei me senti muito aliviada, foi como se eu tivesse tirado um peso enorme de cima de mim”, narra Madalena.

*Reportagem produzida a partir do edital Vozes de Impacto: Jornalismo investigativo sobre direitos humanos e democracia, promovido pela Fiquem Sabendo em parceria com a Embaixada Britânica no Brasil.

Coordenação Editorial: Maria Vitória Ramos

Análise de dados: Igor Laltuf

Revisão textual: Taís Seibt

Mentoria: Marta Alencar

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É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.