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Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo
Essa é a história de um homem que ficou quase um ano preso tentando provar a sua inocência enquanto dormia, acordava, comia e esperava entre as grades do Complexo Prisional do Curado, antigo Presídio Aníbal Bruno. A Polícia Civil e o Ministério Público não se sensibilizaram com o que a defesa do réu classifica como insuficiência de provas contra ele. O delegado Ramon Teixeira, então titular da Delegacia de Boa Viagem, o indiciou, a promotora Henriqueta de Belli o denunciou e o juiz Walmir Ferreira Leite, da 16a Vara Criminal da Capital, decretou sua prisão preventiva e o manteve preso por 356 dias até determinar sua soltura na segunda-feira, 9 de março deste ano, nove dias antes de completar um ano de cárcere.
Acusado de ser um dos homens armados que assaltaram em plena luz do dia a imobiliária Jairo Rocha, em Boa Viagem, em novembro de 2018, Wilson Xavier da Silva, 34 anos, nem foi condenado nem inocentado em primeira instância. O processo ainda está em andamento. Mas o seu caso é considerado emblemático pela Comissão de Direitos Humanos da OAB-PE de como tem funcionado a máquina do Estado de encarcerar jovens negros da periferia. Máquina que colocou o Brasil entre os países com maior número de presos no mundo. São mais de 800 mil pessoas, sendo 41,5% delas sem condenação definitiva. Por um ano, Wilson foi um número nessa estatística.
Músico percussionista autodidata, até ser envolvido nas investigações da Polícia Civil sobre o assalto, Wilson participava de apresentações em bares e casas de show da periferia do Grande Recife. Complementava a renda fazendo entregas, como trabalhador informal, sem carteira assinada. Alega que no dia do crime estava despachando produtos em Candeias e Jardim Piedade. O encarregado que encomendou as entregas confirma essa versão. Mas ela parece não ter tido nenhum peso nas considerações da polícia, do Ministério Público e da Justiça.
Na comunidade onde mora no bairro da Imbiribeira, Wilson Xavier é conhecido pelo trabalho comunitário, um dos organizadores das festas do Dia das Crianças e de atividades recreativas de rua para jovens e adolescentes. Seu pai, Paulo Roberto da Silva, gari aposentado de uma empresa que prestava serviços à Prefeitura do Recife, mantém uma escolinha de futebol para 200 crianças da localidade. Na quarta-feira, dia 11, logo após ganhar a liberdade, Wilson ainda tentava entender como carregar a bateria da tornozeleira eletrônica, uma das medidas cautelares determinada pelo juiz, antes de sair para uma breve caminhada na comunidade onde nasceu e mora por três décadas.
A tecnologia que mantém Wilson sob vigilância por 24 horas faltou quando ele mais precisava e poderia ter evitado a sua prisão. Isso porque, apesar de o assalto à imobiliária ter sido filmado pelas câmeras de segurança da empresa, não foram realizadas perícias técnicas comparativas entre os rostos dos suspeitos presos e dos assaltantes filmados durante o roubo. O principal elemento condenatório do inquérito policial é o reconhecimento por fotos e presencial dos suspeitos realizado na delegacia por algumas das vítimas. Foram reconhecidos Wilson Xavier da Silva, Bruno Nunes de Andrade e Walmir Clebson de Andrade.
Assim como Wilson, Bruno foi preso preventivamente em março do ano passado. Bruno ficou nove meses na prisão, tendo sido solto em 20 de dezembro de 2019, último dia de funcionamento do Judiciário antes do recesso de fim de ano. A defesa apresentou à Justiça o registro eletrônico de sua entrada e saída do trabalho em 14 de novembro de 2018, data do assalto à Jairo Rocha. Apesar da comprovação, o Ministério Público, por meio da promotora Delane Arruda, se posicionou contrário à soltura de Bruno. Ainda assim, a Justiça concedeu a liberdade.
Após a revelação do ponto eletrônico, a defesa de Bruno apresentou ao advogado da empresa Jairo Rocha documento em que o réu se comprometeria perante os proprietários da empresa e os funcionários a não processá-los ou pedir indenização em caso de retificação em juízo do reconhecimento feito na Delegacia de Boa Viagem.
De fato, as vítimas levadas à Justiça afirmaram não mais reconhecer Bruno como um dos assaltantes. Muitas dessas vítimas que haviam feito o reconhecimento “sem sombras de dúvidas” do réu, como consta no inquérito policial, também tinham reconhecido Wilson na delegacia. Embora uma delas tenha mantido a posição em juízo quanto a Wilson, outra que o havia reconhecido na Polícia Civil não confirmou perante o juiz.
No reconhecimento na Justiça, uma outra vítima chegou a apontar como assaltantes duas outras pessoas completamente alheias ao processo.
Há um outro ponto em comum entre Bruno e Wilson neste caso. Os dois foram detidos pela Polícia Civil no dia 7 de janeiro de 2019, depois de alegadas “intensas investigações”. No inquérito, o delegado informa que seus nomes foram obtidos em cadastro da Secretaria de Defesa Social de contumazes praticantes de atos ilícitos na região. As defesas de Bruno e Wilson afirmam que nenhum dos dois possui antecedentes criminais e jamais responderam a processos na Justiça antes do caso Jairo Rocha.
A certidão negativa de Wilson junto ao TJPE foi, inclusive, anexada ao pedido de revogação da preventiva apresentado por sua defesa, ainda em março de 2019.
Questionada sobre a não realização de perícia técnica e pela forma como chegou aos suspeitos, a Polícia Civil respondeu laconicamente por email à Marco Zero: “o inquérito policial foi remetido ao Tribunal de Justiça de Pernambuco, tendo já sido concluído pela PCPE. Depois que essa etapa é concluída, mais informações devem ser obtidas por meio do TJPE”. Isso apesar de os questionamentos encaminhados serem específicos sobre falhas graves apontadas pela defesa dos dois réus no trabalho de investigação policial.
Quando o experiente advogado e professor de Direito Penal Eloy Moury
Fernandes assumiu a defesa de Wilson, em janeiro deste ano, a
primeira impressão que teve foi a de que o caso estava liquidado. O
réu tinha sido reconhecido por algumas vítimas, preso
preventivamente por quase um ano e o processo estava na fase final de
instrução na primeira instância. Eram motivos mais do que
suficientes para não ter muita esperança.
Ao se envolver no universo da família do réu e conhecer de perto dona Marize e seu Paulo Roberto, pais de Wilson, e os irmãos Williams, Welington e Washington, o advogado mudou completamente de ideia. A convicção da inocência de Wilson se cristalizou depois de uma longa conversa com o cliente no presídio. “Fique certo de que eu tenho mais convicção da inocência do seu irmão do que você mesmo pode ter”, disse Eloy a Williams depois do encontro.
Na casa simples de alvenaria numa rua sem asfalto, mas bastante movimentada, da comunidade de Dancing Days, no bairro da Imbiribeira, a ampla porta de correr que abre por inteiro, escancarando o primeiro cômodo da casa para toda a vizinhança diz muito do espírito da família Xavier. A casa é o centro da vida social da família.
Lá vivem pai, mãe, Wilson e a filhinha de seis anos, quando esta fica com o pai. No primeiro andar da casa fica Williams, 35. Na parte de trás, vivem Wellington, 32 – que trabalha numa metalúrgica no bairro -, a esposa e os filhos, um de 1 ano e seis meses e outra de dez anos. Ali perto, na mesma localidade, vive também o caçula de dona Marize, o barbeiro Washington, 28.
Williams, o primogênito, cursa o sétimo período do curso de Direito no Instituto Pernambucano de Ensino Superior (Ipeso) e trabalha em uma empresa de engenharia elétrica que fabrica e comercializa dispositivos. Ele hoje é o responsável técnico pelo atendimento direto aos engenheiros nos estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.
Tem muito orgulho de ter chegado aonde chegou. “Um menino da periferia, né? Não é a questão pessoal, mas de alguém que veio do nada. E por ter sido o primeiro dos filhos, por ter passado tudo com meus pais”. Ele gosta de ouvir as histórias de dificuldades enfrentadas pelos pais para “saber de onde veio”. Como aquela de quando era ainda um bebê e o pai estava desempregado. Saía cedo, sem o café da manhã, para procurar trabalho nas transportadoras. No braço da mãe, o filho pedia leite e não havia leite em casa. Mãe e bebê choravam juntos. A avó do menino ao ver a filha chorando perguntou porque ela não pediu ajuda. “Me casei, acho que não tenho esse direito. A responsabilidade é minha”. A avó então disse que esse era um assunto de família e que ela tinha que pedir ajuda, sim.
Histórias assim não saem da cabeça de Williams e ele pede frequentemente para a mãe contá-las. Elas são uma referência de vida para o técnico em engenharia, que decidiu cursar Direito para “proteger a família das abordagens policiais”. “A gente vem, durante toda a trajetória de vida, sendo sabotado a toda hora, pelo Estado. Precisamos nos proteger. Às vezes você está na frente de sua casa e passa uma viatura. Mandam você se levantar do nada. Fazem baculejo, gritam, xingam. Você é preto, pobre, eles tacham logo de bandido, suspeito… Precisava de alguma forma saber se isso tá certo e saber me defender e defender a minha família”, explica.
Em quase um ano de prisão de Wilson, a família Xavier permaneceu unida na defesa de sua inocência. Em abril de 2019, junto com familiares e amigos de Bruno, fecharam a avenida Mascarenhas de Moraes com pneus e móveis queimados para chamar a atenção da imprensa para o caso. Por meses, Williams procurou ajuda em várias instâncias do Estado ao perceber os rumos do inquérito e se decepcionar com a posição do Ministério Público. “Virei um peregrino no meio do mundo”. Com o irmão doente e sem atendimento, ainda preso no Centro de Observação de Triagem Professor Everardo Luna (Cotel), procurou a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos para obter apoio. “Ele acabou se curando sozinho, com o tempo”.
Em meio à depressão, Wilson não passou um final de semana sem que pais e irmãos fossem visitá-lo na cadeia. Durante os primeiros meses, a exceção foi dona Marize. Ela simplesmente não se sentia preparada para ver de perto a dor do filho. Queria poder ir ao presídio para confortá-lo e não para deixá-lo ainda mais preocupado. Quando a saudade tornou-se insuportável, passou uma semana tomando calmantes e se preparando para a primeira visita. “Quando voltei, fiquei a tarde toda sentada, sem me mexer. Só de noite me levantei para tomar um banho. Estava tonta. Parecia que estava embriagada”. Na segunda visita, o filho perguntou pela saúde da mãe: “Mainha, a senhora tava que nem papel, parecia que ia cair aqui”.
Depois daquele primeiro domingo, dona Marize não faltou a mais nenhum encontro com Wilson. “O dia que eu tenho mais animação é o sábado porque eu tô arrumando as coisas para levar e o domingo que eu tô lá com ele. Mas depois, acabou-se tudo de novo”, contou à reportagem, uma semana antes do filho ser solto. Todo domingo, mãe, pai e os três irmãos visitaram Wilson por meses. Cinco é o número máximo de visitantes cadastrados por visita. “Quando Wellington não podia ir, nós colocávamos a esposa dele no seu lugar. Mas sempre estávamos lá”, conta a mãe. “Se tivesse visita nos sábados nós também iríamos, se tivesse visita qualquer dia durante a semana a gente ia se virar para estarmos todos lá. Nunca iríamos abandoná-lo”, reforça Washington.
Em um ano, a família vendeu carro e moto para pagar os advogados e paralisou a reforma da casa. De certa forma, a vida dos Xavier ficou suspensa todo esse tempo na espera pela liberdade de Wilson.
Para evitar o mal maior de uma condenação de um inocente tida como certa em primeira instância, o advogado de Wilson tomou uma decisão pouco convencional, para dizer o mínimo. Decidiu partir para o ataque. Na última audiência do processo, quando os réus Bruno e Walmir eram ouvidos, ele pediu o reinterrogatório de Wilson. O músico foi trazido do presídio para o Fórum, mas teve a ouvida indeferida pelo juiz. Eloy Moury Fernandes então expôs o nome de outras pessoas que podem ter cometido o crime, informações resultante de investigação realizada pela própria defesa com base em análises de perfis de rede sociais. E que partiu da confissão de culpa não oficial, feita por um preso que não foi citado no inquérito.
“Chegamos a pessoas absolutamente estranhas à investigação, que não foram sequer alcançadas pela polícia. Isso numa pesquisa simples em Facebook, que é uma coisa comum de se encontrar porque criminosos patrimoniais via de regra são ostensivos e vaidosos. Analisando as imagens das redes fica evidente a aproximação delas com as imagens dos assaltantes. Rechecamos essas informações, os laços de relações claro entre esses novos suspeitos. Foi quando decidi tomar uma postura mais ativa”, explica Eloy.
Na
petição final redigida ao juiz, datada
de 12 de fevereiro deste ano, o
advogado foi além ao
trazer o tema do racismo para o processo: “Wilson… não merece
estar preso em razão de todas
as condições
técnicas declaradas em nosso ordenamento jurídico, exceto uma não
declarada, a
de não ser caucasiano em um país racista… Sim, Wilson, entre
outros motivos, está preso por ser negro no Brasil. É
preciso ter coragem para afirmar isso. E muitos advogados, entre eles
Rui
Barbosa e Gilberto Marques (o advogado de Pedro Jorge no caso do
escândalo da mandioca), ensinaram a esse ainda verde advogado, entre
outras coisas, a não ter medo”. O negrito no texto da petição é
do próprio Eloy.
Sentindo-se ameaçado pelo réu Walmir Clebson de Andrade, durante a última audiência do processo, quando apresentou os nomes de novos suspeitos ao caso, o advogado de Wilson decidiu procurar a Ordem dos Advogados de Pernambuco para ver resguardada a sua vida e o direito constitucional de defender o réu. Ele também pediu que a OAB intercedesse junto ao juiz do caso em favor da liberdade provisória do seu cliente.
Depois de analisar o processo, a Comissão de Direitos Humanos da OAB emitiu parecer em favor do réu e o presidente da Comissão, o advogado Cláudio Ferreira, assinou com Eloy um pedido de habeas corpus encaminhado ao Tribunal de Justiça de Pernambuco algumas horas antes do feriado de Carnaval. “Trata-se de um erro judicial claro e nós, para chegarmos a essa conclusão, fizemos uma ampla análise da investigação, do processo, inclusive a investigação produzida pela defesa é muito mais consistente do que a conclusão a que chegaram o Judiciário e a polícia”, afirma Cláudio Ferreira.
Para
Cláudio, não havia nenhum dos quatro pré-requisitos
para a decretação da prisão preventiva de Wilson. Ele enumera:
“primeiro, você prende alguém para interromper a atividade
delitiva. Mas ele só tem esse caso, não era assaltante contumaz.
Segundo, se o investigado trabalha para obstruir a investigação e
destruir provas.
Não há nada que indique isso no processo. Outro ponto é a quebra
da ordem pública. Assim fosse, todos os suspeitos de assalto
deveriam estar presos. Não faz nenhum sentido. E
por fim tem a questão relativa à ordem econômica. O que também
não é o caso”.
Na
avaliação de Cláudio,
o mais grave é a falta de investigação técnica da Polícia Civil.
“Quando você compara
as imagens captadas no assalto com as imagens do rapaz preso você
vai ver que não é a mesma pessoa. O formato do rosto é distinto.
Eu tenho certeza que se
você tivesse uma máquina de reconhecimento facial daria muito baixo
as características faciais dele com as que se apresentam nos
elementos probatórios que estão inclusive nos autos. Mas
o estado de Pernambuco, para minha surpresa, não tem esse
equipamento”.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PE também questiona a validade do reconhecimento presencial de vítimas de assalto. “Esse reconhecimento a posteriori de pessoas em situação de estresse, que é o caso de um assalto, é falho. A gente sabe que ele é falho. Esse fato que está nos autos (da retificação quanto ao reconhecimento de Bruno), demonstra que a certeza deles não era uma certeza que pudesse ter 100% de credibilidade”. Para Cláudio, a maneira como a polícia chega aos suspeitos é a demonstração do que classificou como “racismo ambiental” porque eles só são incluídos na investigação pelo ambiente em que residem, “como se a favela fosse um ambiente natural de delinquência”, e porque são negros.
A
postura do Ministério Público de referendar a investigação
policial e se posicionar pela preventiva dos suspeitos
seria um desvirtuamento da atividade do órgão. “É
a concepção do Estado policial. No Estado policial, o policial só
tem êxito se ele prende alguém. Da mesma forma, uma parte do
Ministério
Público pensa assim: se eu peguei um processo e no final eu não
consegui prender é porque eu não agi corretamente. Quando
não é para ser assim. A cultura do Ministério
Público deve ser
justamente a de
fiscal dos direitos fundamentais, da cidadania. Essa concepção de
Estado policial é gravíssima
e que
a lei de abuso de autoridade busca corrigir”.
A
Marco Zero Conteúdo entrou em contato com a assessoria de
comunicação social do Ministério Público de Pernambuco para saber
a opinião da promotora e do órgão sobre os questionamentos
levantados pela defesa de Wilson e Bruno e também a respeito das
críticas feitas pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos da
OAB-PE. A assessoria encaminhou nota curta e protocolar por email: “O
processo tramitou em prazo razoável, apesar da complexidade, em
razão de serem três réus, múltiplas vítimas e diversas
testemunhas. Há reconhecimento dos acusados feitos pelas vítimas.
Quanto ao juízo de mérito, a 59ª Promotoria de Justiça Criminal
irá se manifestar por ocasião das alegações finais, após
analisar os laudos periciais a serem juntados ao processo e cotejar
toda a prova colhida”.
O advogado de Bruno Nunes de Andrade, Wilgberto Paim dos Reis Júnior, concorda com Cláudio que não havia base para a prisão preventiva de seu cliente e também de Wilson. Lembra que Bruno foi detido em prisão temporária de cinco dias em janeiro de 2019 no local de trabalho (é funcionário de uma loja distribuidora das Baterias Heliar), assim como Wilson foi preso em casa. Soltos depois desse período, quando foi lavrado o auto de reconhecimento por parte das vítimas na delegacia, os dois voltariam a ser presos dois meses depois em preventiva nos mesmos locais da primeira detenção. “O que comprova que os dois continuaram seguindo suas vidas e não tinham a menor intenção de fugir. Não mudaram de endereço, não cometeram mais nenhum crime ou ilícito, não atrapalharam a investigação.”.
Wilgberto diz que, diante do registro eletrônico de entrada e saída de Bruno, o Ministério Público questiona, agora, o horário em que teria acontecido o assalto, em torno de 11h45min segundo as vítimas e também o registro das câmeras. “Como sugerindo que o crime poderia ter acontecido um pouco mais tarde, na hora do almoço, no intervalo do trabalho. Os registros mostram que naquele dia Bruno carregou cinco toneladas de sucatas de bateria. Cinco toneladas. Ele passou o dia todinho trabalhando”, defende.
“A delegacia disse que chegou no nome de Bruno com um trabalho investigativo ao analisar imagens que foram captadas nas câmeras de segurança e comparar com feições de agressores suspeitos cadastrados no banco de dados da SDS. Como assim? Bruno nunca foi numa delegacia. Não tem cadastro nenhum. Que comparação de feição de agressores suspeitos é essa? É porque é preto e pobre? Nem Bruno nem Wilson têm antecedentes nem registros criminais, nem quando eram menores de idade”, critica Wilgberto.
Williams conta que, em agosto de 2018, cerca de três meses antes do roubo à Jairo Rocha, Wilson foi assaltado por três homens na rua. Eles levaram celular e carteira com documentos e dinheiro. No dia seguinte, Wilson foi à Delegacia de Boa Viagem fazer o Boletim de Ocorrência do assalto. “Eu tenho a experiência de ir na delegacia quando roubaram a moto de meu irmão e fui pedir auxílio na busca, porque era recente, então eles fazem o interrogatório te julgando, eles acham que você está fazendo o BO pra se livrar de algum ato ilícito que você tenha feito, eles agem dessa forma. Podem ter achado que, com o BO, meu irmão estava querendo se livrar de algo… e colocaram o nome dele lá numa espécie de lista que eles devem ter de suspeitos na delegacia. Porque no site da SDS não tem nada”.
No pedido de soltura de Bruno, o advogado Wilgberto Paim trouxe aos autos do processo um outro caso rumoroso de má investigação realizada pela Delegacia de Boa Viagem. Trata-se da prisão do pedreiro Daniel Rego da Cunha, detido por um mês e quatro dias em Santarém, no oeste do Pará, em meados de 2019, por suposto envolvimento num assalto que ocorreu no dia 8 de junho de 2018, em Boa Viagem, quando foram levados R$ 2 mil em dinheiro e R$ 25 mil em cheques. A vítima reconheceu Daniel como sendo o motorista da moto que ajudou na fuga do assaltante, numa foto em documento que tinha os dados do paraense. A defesa desde o início informou que a foto era de outra pessoa. No processo, Daniel provou que nunca havia saído do Pará. A Justiça reconheceu agora em março de 2020 que Daniel foi indiciado indevidamente pela Polícia Civil de Pernambuco e decretou sua inocência no caso.
A maneira como os policiais prenderam Wilson também é motivo de revolta na família do réu. Chegaram na casa dizendo que procuravam Wilson e Williams por denúncia de maus tratos a crianças e idosos. Levado no carro com os policiais, Wilson soube que estava sendo na verdade acusado de assalto. Ainda na viatura, os policiais tiraram foto dele e postaram em grupos de Whatsapp. “Um amigo meu me ligou e perguntou se eu estava com Wilson. Disse que não, aí ele me mandou a foto do meu irmão no banco de trás da viatura e um texto que dizia que ele tinha participado de um assalto”, relata Washington. No caso de Bruno, a polícia disse em seu local de trabalho que ele estava sendo levado por conta da lei Maria da Penha, que define os crimes por agressões a mulheres.
Enquanto aguardavam no corredor da delegacia para saber o que estava acontecendo, familiares de Wilson contam que ouviram conversa informal dos agentes reconhecendo que tinham detido um inocente, mas que agora não havia mais o que fazer. “Tinha uma equipe de reportagem da imprensa lá esperando. O delegado recebeu primeiro a imprensa antes de falar com a família. Por questão de poucas horas eu não soube pela televisão o que tinha acontecido. Se eu estivesse trabalhando, eu saberia pela televisão”, conta Williams.
Na
segunda-feira, dia 9 de março, o juiz Walmir Ferreira
Leite, da 16a
Vara Criminal da Capital, determinou a soltura de Wilson e de Walmir.
Definindo
uma série de medidas cautelares, como o comparecimento mensal à
Justiça, proibição de se ausentar do Recife por mais de oito dias
sem autorização ou mudar de endereço sem prévio aviso,
recolhimento domiciliar entre as 22h e 6h, proibição de praticar
qualquer ato ilícito e proibição de os réus manterem contato
entre
eles – “ante o alegado risco em que se encontra
Wilson Xavier da Silva”. Os dois réus estão sendo monitorados 24
horas por dia por tornozeleiras eletrônicas.
O
juiz também decidiu juntar ao processo as imagens e fotos obtidas no
Facebook das pessoas que a defesa de Wilson aponta como os reais
assaltantes da imobiliária. Um deles, inclusive, morto pela Polícia
Militar no ano passado. Determina também a realização de “perícia
prosopográfica, consistente na comparação das imagens apresentadas
pela defesa (dos supostos assaltantes) com aquelas efetuadas pelas
câmeras de vigilância do local do crime”. O magistrado manda que
o mesmo tipo de perícia seja feita com Wilson. É por conta do tempo
de demora da realização dessas perícias que ele decide pela
soltura dos réus, considerando que havia determinado estudo técnico
do mesmo tipo para Bruno há quatro meses e estes ainda não foram
concluídos, “importando inevitavelmente em duração excessiva da
prisão”.
Posto
em liberdade, em entrevista à Marco Zero Conteúdo no dia seguinte à
saída da prisão, Wilson resumiu seu estado de ânimo: “Tô tão
feliz que, se eu fosse fogos, tava explodindo agora”.
Nesta
quinta, dia 19 de março, Williams comemora 36 anos de idade e tem ao
lado o melhor presente que podia desejar: a família Xavier completa.
Unida contra as sabotagens e a máquina de encarceramento em massa
que trabalha sem descanso no Brasil.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República