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A trajetória de Joelma Lima: da dor à luta por justiça para Mário e contra o genocídio do povo negro

Débora Britto / 13/07/2020

Foto: Saulo Santiago/Justiça para Mário Andrade

“Tive que escolher entre viver a minha vida e lutar pelo meu filho, pela memória dele. Então eu escolhi viver para lutar”, diz Joelma Lima

Tornar-se negra é um caminho sem volta, principalmente para as mulheres que encontraram a consciência e as implicações da cor da pele na dor provocada pelo racismo. Joelma Lima, mãe de Mário Andrade de Lima, jovem de 14 anos que foi vítima do extermínio da juventude negra, se tornou uma lutadora contra o racismo no momento de maior sofrimento de sua vida. “Eu aprendi a lutar e a escutar a minha voz, infelizmente, na dor”, diz.

Desde o dia em que teve o filho morto brutalmente, em 2016, Joelma lutou por dois anos e quatro meses para conseguir que a justiça fosse feita. Em novembro de 2018, o sargento reformado da Polícia Militar, Luiz Fernando Borges, foi considerado culpado pelo assassinato de Mário e sentenciado à pena de 30 anos em regime fechado. Atualmente, ele cumpre 28 anos e seis meses restantes na Penitenciária Barreto Campelo, em Itamaracá.

Neste mês de julho, completam quatro anos do assassinato do filho de Joelma pelo policial militar que também baleou outro adolescente de 13 anos. Os dois meninos andavam de bicicleta e acidentalmente bateram na moto em que o policial estava. Durante a luta judicial, Joelma precisou enfrentar a tentativa de criminalização do próprio filho pelo PM.

Hoje, a dor não diminuiu, mas Joelma conta que encontra forças na promessa que fez ao filho. “É difícil e doloroso para mim porque eu não consigo aceitar de jeito nenhum, fazem quatro anos esse mês. Para mim é como se fosse ontem, como se eu tivesse recebido a notícia ontem. Mas eu tento permanecer de pé porque foi o que eu prometi para ele dentro do caixão. Tudo o que eu prometi para ele eu estou cumprindo. Eu ia ajudar a pessoas que precisassem, ia levar o legado dele de ajudar as pessoas até o fim”, conta.

Mural em homenagem a Mário Andrade, no Ibura. Foto: Justiça para Mário Andrade

Além disso, uma briga incansável contra o preconceito, o julgamento da sociedade sobre a criança e pela memória de Mário demandaram esforços de Joelma, familiares e diversos voluntários que a apoiaram. Mãe de mais duas meninas, Joelma também assumiu como missão para a sua vida lutar contra o racismo para que tanto suas filhas como outras crianças do bairro onde vive não sofram as consequências do genocídio da população negra.

“Eu acho que eu não estava em mim quando ia e batia de frente para lutar. Eu acho que não era a Joelma, era a Joelma guerreira, lutadora. Eu não sabia que isso existia dentro de mim. Eu vim descobrir no momento da minha dor, da pior dor que eu já passei na minha vida. As pessoas diziam que eu estava diferente, que eu não era daquela jeito. A Joelma que ficou quando aconteceu o caso de Mário foi uma Joelma dilacerada e só o que eu queria era meu filho de volta, coisa que não iria poder ter mais”, lembra.

A trajetória da mulher que se descobriu negra na luta por justiça pelo filho diz muito sobre a força de resistência das mulheres negras. Foi junto com voluntários, familiares e amigos que Joelma teve forças para enfrentar. Hoje, apesar das lágrimas que vêm quando recorda do filho, ela também tem um sorriso caloroso quando fala da luta que motiva seus dias.

A luta por justiça não acaba na sentença

Joelma venceu a batalha na Justiça, mas sua luta não acabou. Ela se preocupa com a garantia de que o assassino de Mário vá cumprir a sentença. Durante a pandemia, o ex-sargento solicitou a transferência para prisão domiciliar, mas teve o pedido negado. “Eu sempre falo com as advogadas para saber como anda a situação. Ele já trocou de advogado várias vezes. A sentença deu a sensação de dever cumprido. Eu sei que não traz meu filho de volta, mas é meu dever como mãe que o culpado pague pelo que ele fez”.

Faixa em atividade com crianças no Centro, no Ibura. Foto: Centro Comunitário Mário de Andrade

Fortalecida na luta coletiva

“Eu não sabia nem o que era uma pessoa militante. Eu não conhecia ninguém. Foram chegando muitas pessoas, mas também desapareceu muita gente. E as pessoas que permanecem do meu lado até hoje são pessoas que chegaram e ficaram. Eu digo a eles que hoje eu sou o que sou graças a eles porque eu não sabia o que era militar, eu não sabia o que era lutar. Eu aceitava tudo que viesse.

Eles se tornaram minha família, me ensinaram a ser a Joelma que eu sou hoje, a saber lutar, militar porque eu nem sabia o que era isso. Lutar pelos meus direitos e os direitos dos meus irmãos. Eu devo tudo a eles, entendesse? Sou grata eternamente. Eu sempre digo isso a eles e eles dizem que aprendem comigo. Mas eu digo que não, eu aprendi antes com eles.

Na verdade, eu não sabia de nada, eu aceitava tudo que os brancos traziam, me maltratavam, me humilhavam. Eu pensava que eu precisava, então eu tinha que passar por aquela humilhação. E hoje eu não faço isso, eu não aceito mais isso porque eles mostraram para mim que eu tenho voz, que eu sei os meus direitos”.

Torna-se negra e a denúncia do racismo

“Eu tinha preocupação porque como a gente mora em comunidade, em periferia, eu já sabia como era a ação dos policiais. Mas dizer que eu vou lutar porque eu sou uma mulher preta e tenho meus direitos, eu nunca tinha isso comigo. Hoje eu sei.

Eu sempre dizia a ele, mostrava o bom e o ruim. Dizia que se viesse uma viatura não era para correr, porque a gente mora em favela e eles não chegam para alisar, são ignorantes mesmo e fazem os BOs, podem forjar alguma coisa para você. Então você coloca os bolsos para fora e levanta os braços. Eu sempre dizia isso a ele. A gente que mora em favela sabe como são as abordagens.

Eu vim saber dos meus direitos, do que eu sou, depois da morte do meu filho. Eu vim aprender na dor. Infelizmente.

Muita gente me criticava quando comecei a dizer que era negra. Muita gente da comunidade mesmo dizia que eu não era uma mulher negra, não era uma mulher preta.

Diziam para mim que eu não era negra, eu era morena. Até algumas pessoas da minha família vieram falar comigo dizendo que não estava colocando só a mim em risco. Eu respondi que quem perdeu o filho fui eu, então eu vou até o fim. Se quiserem me parar vão ter que matar, mas eu vou até o fim”.

Vigília para Mário, em 2017. Foto: Justiça para Mário Andrade

A dor das mães de crianças negras

Como mãe e como uma mulher que se tornou ativista, Joelma se comprometeu, também, em apoiar outras mulheres como ela. O caso de Miguel, criança de 5 anos que morreu em um prédio de luxo sob os cuidados da patroa da mãe do menino, para Joelma, é mais um caso de racismo.

“Quando aconteceu esse assassinato, porque para mim não é fatalidade, é assassinato, eu me vi em Mirtes. Eu entrei num desespero em que eu não consegui nem dormir. Entrei em contato com ela, marquei de ir na casa dela. Mas eu não me senti segura de ficar frente a frente com ela. A minha dor multiplicou porque veio a lembrança da morte de Mário.

Quando teve o ato, os meninos perguntaram se eu queria ir, mas eu não senti que estou bem ainda. Depois Mirtes me ligou, conversamos, ela disse que acompanhou o caso de Mario todo e disse que queria muito me receber. Eu disse que iria para conversar, para apoiar. Ela tem meu apoio total, como Joelma, mãe e como gente. Ela tem minha ajuda seja lá para o que for. Joelma, mãe de Mário, e Joelma do centro comunitário. Sozinha ela não vai estar.

Eu sei o que ela está passando nesse momento. É muita gente em cima, eu não tinha tempo para respirar um minuto. Mas o que me preocupa é o que uma pessoa me disse assim na época: ‘hoje ela tem milhões de pessoas ao redor dela, mas a minha preocupação é depois, quando ela estiver só’”.

Para Joelma, a dor de Mirtes, mãe de Miguel, é a sua dor. Apesar da dificuldade, ela buscou contanto com Mirtes para prestar apoio, tão fundamental em um momento como esse. Ainda assim, não foi da noite para o dia que Joelma reconheceu e compreendeu que Mário foi vítima do racismo. Ela mesma demorou a se reconhecer como uma mulher negra.

“Ela (Mirtes) não considera que isso foi racismo. Ela não aceita que foi questão de racismo. Hoje eu vejo e sei que foi. Mas eu não a condeno, não a critico porque foi do mesmo jeito que eu pensava. Temos que ter paciência, entender, conversar para entender o que aconteceu com o filho dela.

Eu vim aprender que o aconteceu com meu filho foi racismo acho que tem uns 2 anos. Naquele primeiro momento isso não exista para mim. Hoje, pelo trabalho que a gente faz, pelo que a gente mostra, porque a gente fala e pratica, vejo que a comunidade aceita mais.

Ela está começando a entender, mas não é fácil para a gente que é de periferia, que já convive há muitos anos com os brancos, entender que eles tratam a gente com racismo. Eles são racistas com a gente que mora em favela e é preto. Dizer que ela [a patroa] era muito boa, trazia coisas de viagens para meu filho… Por isso na cabeça dela não existe racismo, até o momento em que ela lá na delegacia escuta a patroa dizer que ela (Mirtes) não tinha obrigação de cuidar dos filhos de Sarí, enquanto Mirtes disse que ela cuidava dos filhos da patroa. Se fosse o contrário, Mirtes estava presa até hoje e para sair ia dar trabalho.”

Familiares, amigos e voluntários em frente ao Fórum onde aconteceu júri pelo assassinato de Mário. Foto: Centro Comunitário Mário de Andrade

Política comunitária

Ao mesmo tempo em que rejeita ter a sua dor e luta utilizada por políticos, Joelma não nega que o trabalho que faz é política, mas de uma outra natureza: comunitária, de fortalecimento das pessoas que estão próximas a ela e vulneráveis, sem consciência dos efeitos do racismo. É, antes de tudo, fortalecer mães e proteger crianças e adolescentes das periferias.

“A política que eu faço não envolve machucar ninguém, não envolve enganar ninguém. O que a gente faz é mostrar a realidade da gente que mora em favela. Não é cobrir o sol com a peneira. É dizer que tu sofre isso porque tu é preto e mostrar que quem mais sofre são as crianças, as mães de favela.

O meu propósito é mostrar que a gente da favela tem voz e tem poder de dizer que isso aqui eu não quero, mas quero outra coisa. A política da gente é lutar contra o genocídio, lutar contra as mentiras que inventam para a gente e mostrar a nossa realidade. Que o nosso lugar é onde a gente quer, não aonde o povo branco que bota a gente na cozinha quer. É onde a gente quer.

Eu tive que escolher entre viver a minha vida e lutar pelo meu filho, pela memória dele. Então eu escolhi viver para lutar”.

Atividades com crianças no Centro Comunitário Mário de Andrade. Foto: Centro Comunitário Mário de Andrade

As sementes de Mário

Joelma e um grupo de voluntários que a acompanha desde 2016 criaram, em 2019, na casa em que ela vivia com seus filhos, o Centro Comunitário Mário Andrade. O espaço é a concretização da promessa de Joelma de preservação da memória do jovem inteligente e sonhador que era Mário e de acolhimento a outras crianças e jovens da comunidade.

O Centro vai oferecer atividades de educação e recreação para a comunidade, no Ibura de Baixo. A casa está passando por uma reforma graças aos recursos arrecadados por meio de doações e campanha do Centro. Todas as paredes foram derrubadas, mas Joelma deixou de pé o antigo quarto de Mário: é lá que ela vai fazer a nova cozinha, onde deseja preparar comida para acolher quem chegar no espaço.

“Eu e Mário conversávamos muito. Ele dizia para mim que queria ser empresario. O sonho dele era ser empresário, ele fez até um Rap para mim em relação a isso, dizia que ia ficar rico, comprar uma casa para mim, uma casa grande, ia comprar um carro, e que eu não ia trabalhar mais, só ia cuidar das meninas. E ele ia abrir uma fábrica de feijão, que ia se chamar Bom Feijão. Aí eu perguntei a ele como ele ia fazer as coisas do feijão e ele respondeu dizendo que ia plantar a semente. E eu disse tá bom, vá estudar para você ser um empresário”.

Quando eu estava fazendo uma ação de entrega de cestas agora na pandemia eu recebi a notícia que a gente tinha recebido doação de 30 mil da Benfeitoria. Foi naquele momento que eu vim entender a semente de Mário. A semente ia ser o centro, eu ia continuar os sonhos dele. O sonho dele era botar laje na casa da gente e está se concluindo. Se concluiu, na verdade, já está com a laje.

E as sementes de feijão que ele disse que ia plantar e colher é o centro e já está germinando. É gratificante, é um orgulho ver toda a história de Mário. Ele foi homenageado em vários locais, tem uma placa da turma de advogados da Faculdade de Direito da UFPE que se chama a turma Mário Andrade. Isso nunca tinha acontecido de colocarem nomes de pessoas comuns em mais de 200 anos que a faculdade tem. Foi voto unânime para colocar o nome do meu filho. Teve várias homenagens que marcam, para mostrar que ele está vivo, está presente.”

Centro Comunitário Mário de Andrade: antirracismo no dia a dia da favela

Durante todo este tempo de luta Joelma não esteve sozinha e faz questão de pontuar isso. Ela aprendeu com voluntários, pessoas que se tornaram parte da sua família, a lutar pelos seus direitos e a compreender o racismo.

O Centro deu início a uma campanha de arrecadação de fundos para a reforma da antiga casa de Joelma, mas com a pandemia a campanha foi redirecionada (“De quarentena, mas solidários”) para conseguir recursos e comprar cestas básicas para as famílias da comunidade.

Durante a pandemia, o Centro Comunitário organizou campanha de doações para cestas básicas para famílias da comunidade. Foto: Centro Comunitário Mário de Andrade

A reforma está em andamento, mas a manutenção das atividades precisará de apoio. Para isso, Joelma afirma não ter problemas em receber doações, desde que nada seja dado como moeda de troca. “Os recursos foram divididos entre a reforma e o atendimento às famílias com cestas básicas”, diz Joelma. Para apoiar o Centro, o canal de contato é a página oficial do espaço no instagram.

Hoje há 120 famílias cadastradas, que todo mês recebem cesta básica e produtos de limpeza. Além dessas, outras 500 cestas foram distribuídas graças às doações no período da pandemia.

“Quem entra no Centro sente aquela paz interior, aquela coisa gostosa. Eu digo que aqui é o coração de Mário, todo mundo que entrar aqui vai sentir um pouquinho do amor dele.

A vida da gente de periferia é dura demais, mas não podemos desistir. A gente precisa lutar de cabeça erguida e mostrar para a sociedade que a gente tem voz. O que eu digo para outras mulheres é que não percam a esperança, lutem pelos seus direitos, pela sua voz. Se tiver que bater de frente, pode chamar Joelma que eu vou ajudar”.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.