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Foto: Keila Vieira
Marco Mondaini*
Para quem, como eu, se tornou com o passar dos anos um pessimista empedernido, ter comparecido à sessão de lançamento do filme Quem Mora Lá, na noite da última segunda-feira, 16 de julho, no Cine São Luiz, representou uma espécie de epifania capaz de acender uma centelha de esperança em meio a uma terra cada vez mais árida em termos sociais e políticos chamada Brasil.
O filme retrata a trajetória de vida de moradores da comunidade do Pocotó que tomaram parte da ocupação de um prédio abandonado no centro do Recife liderada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Mas, apesar dos méritos do filme, aquilo que mais atraiu a minha atenção naquela segunda foi a plateia que lotou as salas do resistente cinema fundado em 1952. Uma plateia que misturou duas cidades dentro de um único espaço cultural – fato extremamente raro dentro de um universo tradicionalmente caracterizado pela apartação e exclusão.
Sentado na última fileira de bancos do cinema, pude perceber o duplo vai e vem de uma juventude progressista (la jeunesse dorée gauchiste recifense/olindense) habituada a frequentar aquele e outros tantos espaços culturais das duas cidades, e da “ralé” invisível que habita as favelas da Região Metropolitana do Recife, escondida pelas sombras de uma cidade verticalizada, a qual, muito provavelmente, via pela primeira vez na vida a beleza da sua arquitetura art déco.
O corte de classe era nítido, separando as pessoas pela maneira de se vestir, mas, ao mesmo tempo, unindo essas mesmas pessoas vestidas com estilos bem diversos, quando uma liderança gritou “MTST!” e todos responderam também gritando “A luta é pra valer!”, como que a demonstrar que algo de novo estava ali presente a reuni-los, para além da exibição do filme.
A sensação era de que, naquela noite de segunda, acontecia um encontro marcado entre os “privilegiados” de classe média que tomaram parte nas lutas do Ocupe Estelita (privilegiado no sentido que Ariano Suassuna se auto-enquadrava nas suas aulas-espetáculo) e uma parcela dos “humilhados e ofendidos” que lutam por um espaço digno para morar, viver e trabalhar na RMR.
Porém, os encontros marcados não acontecem por obra do acaso, ainda mais quando envolvem o social e o político. Pois bem, dificilmente o encontro dessas duas cidades numa única plateia teria sido realizado sem a provocação desse movimento social urbano que parece imbuído do raro espírito de construção de pontes que unam a cidade, fazendo da luta pela moradia um instrumento de mobilização democrática na direção da utopia de edificação de uma nova cidade.
Ufanismos à parte, oxalá a ricamente misturada plateia do Cine São Luiz da noite de 16 de julho venha a ser a imagem do embrião de uma nação suficientemente capaz de se reinventar radicalizando a democracia e contrapondo-se à miríade de protofascismos que pululam país afora desde os idos de 2013.
*Historiador e professor associado da UFPE
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.