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Crédito: Raíssa Ebrahim/MZ Conteúdo
“Eu vou deixar pra falar do meu marido quando me entregarem ele morto?”. A quarta-feira (2) começou às 7h da manhã para um grupo de mulheres articuladas que se encaminhou ao Palácio do Campo das Princesas, Centro do Recife, na tentativa de ser atendido pelo governador Paulo Câmara (PSB). O pedido não era diretamente para elas, mas para os maridos e filhos internos da penitenciária que deveria ser modelo em Pernambuco, em Itaquitinga, a mais de 70 quilômetros dali. Elas, que indiretamente também cumprem pena, pediam por algo simples para o local propagandeado como o melhor do sistema de ressocialização do estado: comida.
Sem sucesso na negociação, por volta das 13h, o grupo reuniu mais mulheres, agora cerca de 30, e seguiu para o centro de ressocialização, isolado em meio ao canavial da Usina São José, na Mata Norte, na esperança de saber notícias e ser atendido pelo diretor da unidade. Os presos, em protesto, iniciaram uma greve de fome no domingo (29) pedindo mais e melhor alimentação. Em represália, o Governo do Estado mandou cortar a água e a energia, numa queda de braços em que, de um lado, está o poder; do outro, os direitos humanos. No meio, a vida delas.
“Sei do erro do meu marido, o que ele fez não foi bonito e ele tá lá dentro pagando pelo que fez. Mas ele não é cachorro”. São elas que fazem a ponte, que peitam secretários e diretores, que vivem um amor muitas vezes incondicional. Pouco importam os nomes dessas mulheres, a quem a Marco Zero Conteúdo prometeu não divulgar informações nem rostos. A reportagem esteve com o grupo em Itaquitinga, foi e voltou com elas para conhecer um pedaço dessas histórias de amor e dor que se repetem.
“Família unida jamais será vencida. Vocês não vão morrer, estamos aqui”, gritavam do lado de fora enquanto os maridos e filhos, dentro das celas, a vários alambrados de distância, respondiam e acenavam com os braços para o lado de fora segurando lençóis e roupas para chamar a atenção. Essas mulheres foram até lá também para mostrar aos homens que estavam ali, incansáveis, lutando pela vida deles e para instigá-los a não cederem. Entre elas, não havia sequer um pai ou um filho.
Como sempre, elas pagaram do próprio bolso a gasolina e o fretamento de algumas Kombis porque não há transporte público até lá. Só vai quem tem dinheiro. O sinal de celular mal funciona. O banheiro do lado de fora tem que ser uma pequena barreira humana em meio ao canavial. Lá dentro, a escola prometida nunca funcionou por falta de professores e também não há atividade laboral, segundo elas informaram. O estado só fornece um fardamento, a bermuda laranja e a camisa branca. Quem quiser mais é a família que precisa arcar, leia-se: novamente as mães e esposas.
Quando pergunto sobre a visita íntima, a resposta é curta: “uma bosta”. “Eu já tive que tirar visita no chão do corredor, junto com minha sogra e meus dois filhos, porque barraco aqui tem dono. E não é por mim, porque eu tiro visita até no mato, é pelos meus filhos”.
“Mesmo ele já tendo me botado pra fora uma vez por causa de ciúmes, inclusive lá dentro, eu continuo vindo porque sei que Itaquitinga é muito sofrimento”, conta a mulher que vive uma relação de sete anos, dos quais há cinco o companheiro está preso. “Foi um choque quando eu soube, eu não sabia que ele era envolvido com grupo de extermínio. A mulher às vezes é a última a saber”.
E a revista? “Já teve dia de a gente ter que rasgar nossa própria roupa com uma faca que nos deram pra mostrar que não tínhamos nada. Olha aqui o corte que ficou na minha mão”.
Elas costumam gastar, cada uma, cerca de R$ 100 a cada visita para poder ir e voltar. Como não é possível entrar com nenhuma comida, precisam comer a mesma “boia”, como é chamada a alimentação dentro das prisões, que é servida aos internos. “A boia que servem a eles é uma carne moída branca de tão ensebada, salsicha, pão, arroz e feijão que chega até com bicho”. “Estou lá todo sábado e domingo, eu sei o que se passa”.
“O problema é que eles não dão comida que preste e também não admitem que a gente leve, aí complica”. Em dia de visita infantil, também não é permitido levar lanche para as crianças. “A gente sai de casa antes das 7h, vem comendo no caminho e meus filhos às vezes só vão se alimentar de novo, com essa comida nojenta, de 14h. São os pais que têm que pagar a pena, não os nossos filhos”.
Muitas já se casaram no papel em Itaquitinga ou em outras unidades prisionais, nos casamentos coletivos. Em um dia, deu para perceber que a comunicação entre elas é permanente. São elas quem mais sabem do que acontece lá dentro e repassam as informações umas para as outras rapidamente por grupos que se articulam no WhastApp, um deles se chama “Unidas por uma única causa”. Elas me explicam: “a luta é uma só, por todos eles”.
As visitas devem começar por volta das 8h, mas, segundo algumas mulheres, houve uma época em que elas só conseguiam entrar perto das 9h30. “E foi graças a gente que a situação aqui já ficou menos ruim do que era”. Em Itaquitinga, não há problema de superlotação. São 624 presos para 912 vagas.
A leitura ou o trabalho como remissão de pena também não existem, segundo as familiares. “Eles passam o dia sem fazer nada. Como é possível ressocializar uma pessoa assim? Itaquitinga é modelo de quê?”, questionam. “Sabe cachorro? Quando tá preso e sem comer, ele não fica manso não. Como vai mudar?”. A mulher que fez essa comparação está casada há 10 anos. Faz 20 que ele está na cadeia – “e não é qualquer mulher que tem essa sorte”.
Quando pergunto se ela, que já foi bater em Rondônia para visitar e defender o companheiro, tem vontade de ter outros filhos, dessa vez com ele, ela responde: “Tenho, mas Deus é quem sabe do tempo, porque é muito sofrimento”.
“Um dia desses eu trouxe uma bíblia para o meu esposo e, na visita seguinte, tive que ouvir de um agente que ela havia sumido. Como assim sumido aí dentro?”. “O atendimento à saúde é tão ruim que meu marido tá com pedra nos rins e não levam ele pra fazer exame. Ele já perdeu quase 20 quilos aqui. Um médico aí dentro receitou um remédio, eu comprei do meu próprio bolso e o remédio não foi entregue”.
Já passava das 19h quando resolvi pegar carona no primeiro carro que saiu de lá. Uma das passageiras, cujo marido foi preso apenas um ano depois do início da relação, tinha faltado ao segundo dia de trabalho para estar ali. Ele responde por três processos, que somam quase 30 anos de pena. Há seis anos preso, ela está na esperança de que ele siga para o semiaberto. “Já pensei, sim, em me separar, por conta de toda essa dificuldade. Mas não tenho do que falar dele como marido”.
“Deixei minhas crianças nas mãos de outras pessoas, uma pra levar na escola, a outra pra buscar, a outra pra tomar conta. Até nossos afazeres como donas de casa a gente joga pro alto. Perdemos um dia pra protestar pelo que tá na lei. Não é por regalia, é por comida”. No caminho, o motorista contratado teve que acelerar por medo de assalto num trecho já conhecido por investidas à noite.
Quando fui embora, o grupo estava decidindo se convocava mais mulheres para passar a noite na frente da penitenciária ou se todas iriam para casa. Uma me disse “estou um bagaço, cansada e com dor de cabeça, nem almocei”. A outra estava preocupada porque precisava levantar às 4h da manhã do outro dia para pegar no serviço.
Já era quase meia-noite quando recebi uma mensagem no WhatsApp dizendo que a greve tinha acabado e o clima tinha voltado ao “normal” em Itaquitinga. “Normal” para um sistema que encarcera para punir sem ressocializar.
O Centro Integrado de Ressocialização (CIR) de Itaquitinga, inicialmente pensado como uma Parceria Público-Privada (PPP) para abrigar detentos em regime semiaberto, deveria ter sido entregue em 2012, mas diversos problemas contratuais e financeiros atrasaram a obra, que só foi entregue, ainda incompleta, no início do ano passado. O Governo de Pernambuco terminou tendo que assumir a obra.
No final de 2018, o Governo Federal, através do então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, formalizou a federalização de Itaquitinga, a primeira de Pernambuco e também a primeira do Brasil que, em tese, deve seguir os padrões estabelecidos pelas Nações Unidas. A previsão de entrega é para o fim deste ano.
“A unidade I do Complexo de Itaquitinga é uma penitenciária de regime fechado, que ainda não tem uma regulamentação específica. Por isso, lá existem presos sentenciados e, irregularmente, também presos provisórios. Enquanto não houver uma regulamentação específica, é apenas, igual a tantas outras, uma prisão de segurança máxima”, comenta Wilma Melo, coordenadora e fundadora do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (Sempri). Ela atua na área há 30 anos. O Sempri aguarda as informações dos familiares após a visita do final de semana para finalizar uma nota pública sobre Itaquitinga.
A Marco Zero Conteúdo enviou uma série de questionamentos sobre Itaquitinga à Secretaria Executiva de Ressocialização (Seres), incluindo pedido de dados sobre gastos com presos e detalhes de alimentação e visitas, mas a Pasta se restringiu a se pronunciar através de uma curta nota, que segue:
A Secretaria Executiva de Ressocialização (Seres) informa que dois dos três pavilhões encerraram a greve de fome que vinham mantendo desde o dia 30 de setembro na Penitenciária de Itaquitinga (PIT). A situação na unidade segue sob controle.
A Seres esclarece que não há restrição de direitos aos detentos da PIT, pois em conformidade com a Lei de Execução Penal, os presos são assistidos materialmente como todas as outras unidades prisionais do Estado, inclusive, com a oferta de quatro refeições diárias com valor médio de 2.200 calorias. A avaliação nutricional mostrou que 96,6% da população da penitenciária apresenta peso dentro ou acima da normalidade.
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Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com