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Privatização da estatal de água e esgoto com discussão pública limitada a um chat na internet. Flexibilização das leis ambientais para atender aos interesses de grandes empresas. Recusa em negociar com professores da universidade estadual em greve por mais de dois meses. Indicação da esposa do ex-governador para um cargo vitalício no Tribunal de Contas.
Não haveria novidade alguma se o parágrafo acima poderia se referisse às políticas de um governador bolsonarista ou de uma legenda do centrão. No entanto, são essas as marcas da gestão do petista Rafael Fonteles, governador do Piauí, eleito em 2022 com apoio do seu antecessor Wellington Dias, eleito senador na mesma eleição e atual ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Das iniciativas tomadas por Fonteles, a mais surpreendente é a de vender a empresa pública Águas e Esgotos do Piauí (Agespisa) ao mesmo tempo em que o PT luta contra a privatização da Sabesp, a estatal paulista de saneamento, pelo governador Tarcísio de Freitas, ex-ministro de Jair Bolsonaro.
O esforço dos petistas paulistas contra a privatização merece destaque nos canais de comunicação do partido. No site oficial do PT, por exemplo, há dezenas de matérias e editoriais contra a pressa e os métodos do governo paulista para privatizar a estatal. Uma consulta rápida no Google mostra, pelo menos 21 conteúdos sobre o assunto, onde a venda da Sabesp é tratada como “ataque ao patrimônio público”.
Infelizmente, não é possível saber se a privatização da estatal piauiense é vista da mesma forma pelo site do PT nacional, afinal não foi possível encontrar qualquer texto ou postagem sobre o tema nos canais e perfis do partido.
Depois de republicar reportagem do site Ocorre Diário, portal de jornalismo independente do Piauí, a Marco Zero tentou saber o que lideranças do PT teriam a comentar sobre o projeto do governador Fonteles e a óbvia contradição entre os posicionamentos do partido em dois estados. O silêncio foi semelhante ao do site oficial.
Primeiro, tentamos a secretária nacional de Comunicação do PT, em Brasília. Foi sugerido que procurássemos a direção estadual do PT em São Paulo por ela estar lidando diretamente com o tema. Fazia sentido. Os contatos inciais forma promissores, a ponto da assessoria de imprensa do PT paulista nos prometer uma nota ou uma entrevista. Ficou na promessa. A assessora simplesmente deixou de responder às mensagens.
Com o PT do Piauí, a reação foi pior. As assessorias dos deputados estaduais Hélio Isaías e Franzé Silva ignoraram os contatos da Marco Zero. A secretaria de comunicação da direção estadual do partido não fez diferente.
Enquanto tentávamos em vão entrevistar dirigentes do PT em Brasília, São Paulo e Teresina, procuramos também os principais nomes do PT em Pernambuco. Só quem aceitou comentar a questão foram a deputada estadual Rosa Amorim e o ex-prefeito do Recife e também deputado estadual João Paulo. Ambos criticaram a privatização da água, como se verá abaixo.
O senador Humberto Costa, principal nome do partido em Pernambuco, escapou pela tangente. Sua assessoria informou que ele não falaria “por não estar a par da situação no Piauí”. Ao menos respondeu. A assessoria da senadora Teresa Leitão informou que ela não se posicionaria sobre o caso específico do Piauí, assim como não comentou o de São Paulo, mas afirmou que ela é contrária à privatização da Compesa.
Já o deputado estadual e presidente da legenda em Pernambuco, o deputado estadual Doriel Barros, e o deputado federal Carlos Veras ignoraram os pedidos de entrevista.
Um dirigente estadual que também é ativista ambiental se comprometeu a comentar o caso, antecipando que iria fazer um crítica aos companheiros do Piauí que, segundo ele, estariam conduzindo a privatização de maneira ainda mais autoritária do que Tarcísio de Freitas, em São Paulo. No entanto, antes de conceder a entrevista, ele teria que avisar a algumas pessoas da direção estadual que falaria com o repórter. Depois disso, se calou.
João Paulo foi o único dos petistas consultados pela Marco Zero a não hesitar. Ele criticou abertamente a postura da gestão piauiense comandada pelo seu partido. “Não conheço a realidade do Piauí, mas conheço a realidade das empresas que foram privatizadas no Brasil. Conheço a realidade da Neoenergia aqui em Pernambuco e testemunhamos uma realidade de tarifas altas e interrupções prolongadas de fornecimento de energia em vários bairros e cidades”, afirmou, lembrando que apresentou o pedido de uma CPI para investigar a queda de qualidade dos serviços da antiga Celpe.
“Nós não podemos ser contrários à privatização quando somos oposição e privatizar em um estado onde governamos. É preciso coerência! Acesso à água é um direito público, não uma mercadoria”, alfinetou o ex-prefeito da capital pernambucana.
Em nota enviada por e-mail, Rosa Amorim também diz ser contrária à privatização da água e da Compesa, sem fazer referência à política conduzida pelo seu correligionário no Piauí: “É inaceitável a privatização do acesso à água, ainda mais quando estamos falando de uma empresa eficiente, mesmo que ela tenha muitos desafios para garantir a universalização do acesso, porque a crise no abastecimento é um fato”.
Filho de um petista histórico no Piauí, o ex-deputado federal Nazareno Fonteles, o governador não tem laços com os movimentos sociais. Na verdade, nada indicava que Rafael Fonteles seria político. A carreira científica parecia ser o destino mais óbvio para quem passou a adolescência ganhando medalhas de ouro em Olimpíadas de Física e Matemática e, aos 22 anos, já era mestre em Matemática.
Logo, ele seguiu outro rumo ao se tornar um empresário bem sucedido na educação privada à frente do Instituto de Ensino Superior, uma faculdade focada em cursos de Direito, Gestão e Tecnologia. Depois de integrar a equipe de Wellington Dias como secretário da Fazenda, foi eleito governador no primeiro turno, com mais de 57% dos votos. Pouco depois de tomar posse, já indicou Rejane Dias, esposa do seu padrinho político, Wellington Dias, para uma vaga de conselheira vitalícia do Tribunal de Contas do Estado.
Distante das lutas sociais em defesa do Meio Ambiente, agora Fonteles iniciou uma ofensiva para reformar e “flexibilizar” as leis ambientais do estado. O projeto começou a tramitar na Assembleia Legislativa e tem como relator um deputado do PT. De acordo com reportagem publicada pelo Ocorre Diário no dia 2 de maio, ambientalistas, cientistas e até a defensoria pública criticam vários artigos da proposta, que lembra a “boiada” idealizada por Ricardo salles, o ex-ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro.
Um dos artigos propostos pelo governador petista cria a possibilidade de emissão de um “licenciamento ambiental de natureza cautelar” a ser emitido pelo secretário de Meio Ambiente caso a “morosidade do licenciamento oferecer prejuízos ao empreendedor ou ao estado”. O defensor público Humberto Rodrigues avaliou que o artigo é inconstitucional e, na prática, seria o fim do licenciamento ambiental.
Em outro artigo, Fonteles quer anular as multa decorrentes de infrações ambientais cometidas no curso do pedido de licenciamento. Traduzindo: se o empresário cometer um crime ambiental depois que tiver dado entrada no pedido de licenciamento, o valor da multa seria zerado. Na reportagem, o professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI) Davi Pantoja chamou a atenção para o artigo 23 que concede até 95% de desconto para multas de infração ambiental. “É praticamente uma isenção. É surreal. Para que existe a multa? A multa não pode ser um preço para cometer infrações. A multa tem que efetivamente coibir a ação nociva ao meio ambiente. As atividades mais impactantes são extremamente lucrativas”, argumentou.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.