Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Agrotraficantes de veneno agem entre pequenos produtores de arroz no Baixo São Francisco, em Sergipe

Marco Zero Conteúdo / 17/10/2023
Foto colorida, feita ao entardecer, ás margens do rio São Francisco, mostrando água suja, uma canoa de tolda (embarcação típica do Baixo São Francisco) e as luzes de uma cidade ao longe, sob um céu ainda azul, porém já ficando escuro.

Crédito: Jacson Santto/InfoSãoFrancisco

por Iracema Corso e Cristian Goés, do Mangue Jornalismo

“Infelizmente, hoje, o rio São Francisco parece um esgoto. Além da salinização, tem o gravíssimo problema do agrotóxico jogado na agricultura das margens que acaba contaminando as águas, os peixes, as pessoas. O rio está pedindo socorro”, desabafa o padre Isaías Nascimento, que atua no Baixo São Francisco em Sergipe.

O pescador José Castelo, da Comunidade da Ingazeira, em Ilha das Flores, a 128 km de Aracaju, confirma o desabafo do padre. “Com o veneno jogado aí, a água fica poluída. O pessoal tem coceira, diarreia, vômito… Muitas doenças, até câncer. Antes a gente tomava banho no rio e não tinha isso. Mas agora está contaminado com o esgoto que vem do arroz”, afirmou o pescador.

A situação do rio São Francisco é mesmo dramática, seja pela salinização, pelo despejo de agrotóxicos nas produções agrícolas localizadas às margens ou ainda pelos esgotos de povoados e cidades ribeirinhas direcionados diretamente ao rio.

Em reportagem anterior, a Mangue Jornalismo mostrou as graves consequências da fragilidade imposta ao rio por conta da retenção de suas águas por nove hidroelétricas. Em direção à foz, ele corre muito frágil e pobre até ser invadido pelas águas salgadas do Oceano Atlântico.

Na reportagem de hoje, a Mangue Jornalismo trata do problema dos agrotóxicos com foco no Baixo São Francisco, onde o rio divide os estados de Sergipe e Alagoas. Nesse último trecho, o Velho Chico também tem se transformado em um grande repositório de agrotóxicos despejados nas culturas agrícolas em boa parte de suas margens nos estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.

Para piorar esse quadro cumulativo de problemas, também são jogados no rio os esgotos de comunidades e cidades ribeirinhas.

Rede de agrotraficantes atua no São Francisco

O despejo de agrotóxicos nas margens do Velho Chico não é ação isolada, voluntária ou pontual. Existe uma rede de agrotraficantes empresários – alguns de Alagoas e Pernambuco – que aliciam produtores familiares de arroz no Baixo São Francisco.

“Empresários do agro contratam intermediários, geralmente lideranças de ribeirinhos, para assediar pequenos produtores. Eles financiam ureia, trator e remédio [referência aos agrotóxicos], e o agricultor paga com arroz”, revela um rizicultor local que, por motivo de segurança para ele, a Mangue preserva sua identidade. Ele será chamado apenas pelo nome fictício de João.

O que está ocorrendo no Baixo São Francisco sugere semelhança com a ação de narcotraficantes em grandes capitais brasileiras, além de indícios da existência de trabalho análogo à escravização.

Em resumo: agrotraficantes contratam agenciadores nas próprias comunidades – normalmente, lideranças locais, estes, por sua vez, reúnem pequenos produtores e entregam adubo, sementes e horas de trator, tudo com financiamento direto. No pacote dessa “bondade”, o agente inclui o “remédio” (agrotóxico) para combater pragas e fazer o arroz e outros produtos crescerem mais rápido.

O convencimento junto aos produtores familiares está na obrigação de usar o veneno para produzir rápido, caso contrário, o produtor não terá como pagar a dívida com o veneno, o adubo e as horas de trator.

Assim, são despejadas grandes quantidades de agrotóxicos na produção de arroz, frutas, verduras e do camarão (carcinicultura). O rizicultor João afirma que os agrotóxicos entram em Sergipe sem qualquer fiscalização e muitos deles são proibidos em vários países.

Como o arroz é plantado na área de várzea próxima ao São Francisco, quando os lotes enchem d´água, todo o veneno despejado no arroz desce para o Velho Chico através do bombeamento feito pela estrutura da Codevasf.

Essas produções regadas por muitos agrotóxicos acabam contaminando as águas, os peixes, os produtos, as pessoas e a vida do Velho Chico.

Como o veneno é caro (um litro chega a R$ 1,5 mil) e as horas de trator são inflacionadas, os pequenos produtores não têm como pagar o financiamento e têm que entregar quase toda a produção de arroz aos empresários como pagamento, em um ciclo sem fim.

“Importante dizer que esses empresários não aparecem aqui, [eles] mandam gerentes para acompanhar e fiscalizar o agenciador local e lucram com o financiamento a juros absurdos, recebendo de graça quase toda a produção de arroz. Os pequenos são engolidos, inclusive com a ação de cooperativas ligadas a esses empresários”, diz João.

A Mangue Jornalismo confirmou as informações da existência de agrotraficantes agindo no Baixo São Francisco com mais três outras fontes. Elas se recusaram a falar, mesmo com nomes preservados. Uma delas, que trabalha em um órgão de fiscalização, apenas disse que nos últimos três meses foram despejados 12 poderosos tipos de venenos somente na cultura do arroz.

Todos foram unânimes em nomear o principal e mais comum agrotóxico usado na região: trata-se do Roundup, produzido pela empresa Monsanto e tem em sua composição o temido glifosato. Sobre isso, leia: Agrotóxico faz mais mal do que se pensava.

Flagrante de uso de agrotóxico no Baixo São Francisco em junho de 2023 (Crédito: FPI/MPSE)

Contaminação das águas e das pessoas, dos peixes e dos produtos

João diz que órgãos de agricultura e de fiscalização em Sergipe sabem dessa realidade. “Não é raro encontrar técnicos do governo ajudando os agentes dos venenos junto às famílias aqui na região. Como é que entra tanto agrotóxico ilegal e ninguém vê? Tem gente facilitando e ganhando com isso”, acredita o produtor.

Antes de iniciar os trabalhos na produção do arroz, são realizadas reuniões nas comunidades com os agentes. Em algumas delas, sempre alguém denuncia doenças por conta do agrotóxico. “O que se vê são homens, mulheres, crianças e idosos despejando veneno sem nenhum equipamento de proteção individual (EPI), com bombinhas nas costas, sem proteção e até usando as mãos”, denuncia João.

No povoado Serrão, em Ilha das Flores, pescadoras e pescadores da Comunidade da Ingazeira reclamam da poluição do rio pelo despejo de agrotóxicos usados no arroz. A maioria da população lá não tem água potável e usa o rio para quase tudo.

“No verão, como agora, o sol é forte e a água poluída da rizicultura forma uma espuma tão fedorenta, uma espuma tão grossa que dá pra cortar com faca. É um crime o que estão fazendo com o rio e com a gente”, disse Zilda Souza, presidenta da Associação de Mulheres e Homens Pescadores Nossa Senhora Aparecida do Serrão/ Ilha das Flores.

Ela denuncia que crianças, adultos e idosos estão com problemas de saúde. “Tive uma pessoa da associação, uma pescadora com 35 anos, que teve câncer e morreu. A gente não sabe se foi por causa da água contaminada que as pessoas estão com tumor, mas a gente sabe que o agrotóxico é prejudicial à saúde”, disse a presidenta.

Elisângela Santos, pescadora também na Ingazeira, reclama da “poluição do rio” que tem provocado coceiras, lesões na pele e diarreia. “Não uso a água para beber, apenas para lavar a louça e para o almoço. Mas o pescador fica o tempo todo em contato com essa água. É um perigo”, disse Elisângela.

Genivaldo Santos pesca há muitos anos na Ingazeira. “Aqui tem a bomba da Codevasf que joga a água suja, imunda e com veneno, uma água amarelada que vem dos lotes do arroz. É veneno, é lama, tudo o que não presta. Como é que a gente pesca nessas condições? A gente já sabe as consequências disso e não bebemos dessa água e até evitamos tomar banho. A situação é grave”, diz Genivaldo.

“Não conheço estudos sobre as consequências do agrotóxico despejado aos montes nas plantações no Baixo São Francisco. O que se sabe é que tem contaminação de pessoas, do solo, do arroz, das águas, dos peixes. O veneno degrada o solo, vicia a terra, e a cada ano se joga mais veneno”, disse Mauro Luiz Cibulski, que atua na Cáritas (organização da Igreja Católica) e coordena a Rede Balaio de Solidariedade.

Praticamente todos ouvidos pela Mangue Jornalismo denunciam a ausência de autoridades na região. “O Estado é completamente ausente. Praticamente não existem mais técnicos da Emdagro e da Codevasf atuando por aqui”, informa João. A Emdagro é a Empresa de Desenvolvimento Agropecuário de Sergipe, e a Codevasf é a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba.

“Como é que a gente pesca nessas condições?”, perguntou Genivaldo (Crédito: Iracema Corso/Mangue Jornalismo)

Mais de 20 mil litros de agrotóxico descobertos em fiscalização

Em agosto deste ano, a Fiscalização Preventiva Integrada (FPI), do Ministério Público e vários órgãos federais e estaduais, apreendeu 430 litros de agrotóxicos em Propriá, Japoatã e Neópolis. O veneno não possuía receita agronômica e a manipulação, armazenamento e descarte estavam sendo feitos de forma irregular e incorreta.

Em julho passado, a equipe de agrotóxicos da FPI já tinha descoberto 20 mil litros de veneno e 2 toneladas do produto químico granulado em condições irregulares em uma usina no município de Japoatã. A coordenadora da equipe de agrotóxicos da FPI, Paula Braz, diz que uma das situações que mais chamou a atenção foi um trabalhador fazendo refeições no mesmo ambiente onde o veneno é armazenado.

Em entrevista à assessoria do MP, o procurador do Trabalho e coordenador da FPI, Albérico Neves, disse que a equipe de agrotóxicos “também teve um enfoque na saúde do trabalhador, a exemplo da fiscalização do local apropriado para armazenamento dos agrotóxicos e correto uso dos equipamentos de proteção individual, bem como da necessidade de área para descontaminação e lavagem das vestimentas utilizadas”. A equipe de agrotóxicos da FPI é formada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Sergipe (Crea), Administração Estadual do Meio Ambiente (Adema) e Polícia Militar do Estado de Sergipe.

Existe arroz agroecológico no Baixo São Francisco

Nem todos os pequenos rizicultores no Baixo São Francisco em Sergipe acabam cedendo às pressões dos agenciadores de agrotraficantes. Um dos exemplos de resistência a isso está na Comunidade da Resina, no município de Brejo Grande, a 130 km de Aracaju.

Lá, quilombolas do território de Brejão dos Negros realizam o cultivo do Arroz Agroecológico Velho Chico, produzido sem uso ostensivo de agrotóxico, o que tem dado excelentes resultados. A prova de sucesso dessa opção saudável é a colheita este ano de 180 toneladas de arroz agroecológico em apenas 23 hectares.

No pacote do Arroz Velho Chico está escrito: “produzido pelo campesinato do Baixo São Francisco, em Sergipe, a partir de práticas agroecológicas: com redução do uso de agrotóxicos. Ao consumir nossos alimentos, você contribui com a preservação dos recursos naturais e promove a economia socialmente justa, solidária e sustentável”.

A Mangue Jornalismo fez uma reportagem sobre a festa da colheita do arroz produzido no território de Brejão dos Negros.

Codevasf diz que realiza campanhas de orientação

Em nota, a Codevasf (4ª Superintendência Regional) disse que, “em parceria com os distritos de irrigação do Baixo São Francisco Sergipano, realiza periodicamente campanhas de orientação aos produtores sobre o uso correto de agrotóxicos. A Codevasf disponibiliza um galpão para o recolhimento de embalagens vazias de agrotóxicos, evitando o seu descarte inadequado e consequentes danos ambientais”.

A companhia também informou que “realiza periodicamente o monitoramento da qualidade da água em pontos específicos de captação no rio São Francisco, com os últimos testes verificando que os índices de agrotóxicos se encontravam dentro dos limites propostos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA)”.

Para a Codevasf, “o sistema de captação e bombeamento de água, assim como a rede de drenagem, funcionam de forma satisfatória, garantindo eficiência tanto para a irrigação dos lotes como para o escoamento da água, viabilizando o cultivo de mais de 40 mil toneladas de alimentos por ano na região do Baixo São Francisco Sergipano. No projeto Betume, inclusive, cerca de 30% da água drenada é reaproveitada para irrigação, reduzindo o impacto no rio São Francisco”.

Emdagro informa que fez 403 fiscalizações este ano

Aparecida Andrade, diretora de Defesa Animal e Vegetal da Emdagro, disse que a empresa atua por meio do Sistema integrado de Gestão de Agrotóxicos (Siagro), integrado à Secretaria de Estado da Fazenda (Sefaz), Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea) e Central de Embalagens vazias de agrotóxicos.

“A Emdagro realiza a gestão e auditoria sobre a cadeia comercial, propriedades rurais e unidades de recebimento de embalagens vazias. O objetivo é garantir o cumprimento das normas de comércio e uso de agrotóxicos e proteção do meio ambiente”, disse Aparecida. “Auditorias direcionam as fiscalizações em estabelecimentos comerciais, propriedades rurais e unidades de recebimento de embalagens vazias, sempre com o propósito de garantir o cumprimento das normas de comércio e uso de agrotóxicos e proteção do meio ambiente”.

Além disso, a Emdagro “realizou inúmeras fiscalizações alicerçadas em provas documentais que culminaram em autuações de estabelecimentos e prestadores de serviços na aplicação de agroquímicos não registrados no estado, notificação por desvio de uso de agrotóxicos, destinação inadequada de embalagens vazias dos produtos, além de apreensões de agrotóxicos comercializados de forma irregular e produtos falsificados. Foram realizadas 403 fiscalizações este ano, que geraram 59 infrações, 14 apreensões e 70 advertências”.

A Emdagro disponibiliza um telefone da fiscalização e rastreamento dos agrotóxicos: 79 99831-7501 (WhatsApp) e 3234-2614 (telefone fixo).

Monitoramento da qualidade da água in natura

Gabriel Campos, superintendente de Meio Ambiente e Expansão da Companhia de Saneamento de Sergipe (Deso), disse que a empresa “realiza periodicamente o monitoramento da qualidade da água in natura de seus mananciais, quer sejam os subterrâneos, quer sejam os de superfície, tal qual o Rio São Francisco, verificando se os parâmetros requisitados estão conforme exigências legais da ANVISA. No manancial em questão, é feito o controle de qualidade da água desde a barragem de Xingó até o povoado Saramém, em sua foz”.

Segundo o superintendente, “até o presente momento, o monitoramento não apontou qualquer anomalia em relação ao comprometimento da qualidade da água, quer seja por agrotóxicos, quer seja pelo lançamento de efluentes domésticos, tanto que o rio apresenta condições de balneabilidade em toda a extensão monitorada”.

Gabriel fez questão de destacar “que o acompanhamento feito pela DESO diz respeito ao compromisso com a qualidade da água bruta captada para posterior tratamento, potabilidade e distribuição, ficando a responsabilidade legal pelo monitoramento das condições de poluição do rio a cargo do órgão ambiental a nível federal, no caso o Ibama”.

Uma questão importante!

Se você chegou até aqui, já deve saber que colocar em prática um projeto jornalístico ousado custa caro. Precisamos do apoio das nossas leitoras e leitores para realizar tudo que planejamos com um mínimo de tranquilidade. Doe para a Marco Zero. É muito fácil. Você pode acessar nossa página de doação ou, se preferir, usar nosso PIX (CNPJ: 28.660.021/0001-52).

Apoie o jornalismo que está do seu lado

AUTOR
Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.