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“A arte mata a morte”, disse o amigo no microfone como forma de acalanto. “E sustenta a vida”, respondi em pensamento. Nessa sexta-feira, 21 de janeiro, eu tive a difícil e importante missão de acompanhar o sarau que amigos e familiares prepararam em homenagem ao poeta Japa Rua, assassinado há duas semanas. Escolhi ser o menos formal possível porque o que eu vi e ouvi não cabe em um texto jornalístico, objetivo e puramente informativo. É preciso sentir e refletir sobre o que se sente.
Quando um artista morre a gente se apega às suas obras para dar um novo sentido à dor. Há poucos dias sentimos isso com a morte da divina Elza Soares. A partida da artista, aos 91 anos, nos trouxe uma grande sensação de perda, ainda que a sua trajetória tenha sido intensa e seu acervo enorme. Mesmo tendo uma vida dura e sofrida, atravessada por violências machistas e racistas, Elza fez história e foi reconhecida pela sua arte, e sabe por quê? Ela teve tempo! Isso mesmo: tempo. O mesmo tempo que foi roubado de Japa, aos 25 anos.
Se, aos 25 anos de idade, o poeta reuniu dezenas de amigos e admiradores de sua arte, e causou uma mobilização que uniu diversos movimentos culturais e sociais para homenageá-lo, o quão grandioso Japa seria se tivesse mais 10, 20, 30, 40 anos pela frente?
Eis que penso na diferença que existe entre partir e ser partido pela violência. E penso também o que separa aqueles que conseguem sobreviver dos que morrem cedo demais. Sorte? Destino? Divindades? Na grande maioria das vezes a resposta está na cor da pele, no gênero, na sexualidade, no endereço, na condição financeira, na maneira de se vestir ou de falar… Imposições estruturais e estruturantes de um país fundado no colonialismo patriarcal e branco.
Depois de ouvir tantas palavras bonitas dos amigos de Japa e chorar junto com eles a morte de mais um jovem negro que tinha tudo para ser (e foi) uma referência de artista para os seus semelhantes, ficou a dor, a revolta, mas ficou, sobretudo, a certeza de que algumas pessoas são tão representativas que se tornam fundamentais após a morte.
Como uma memória póstuma, Japa deixou poemas inacabados, que graças ao esforço de seus amigos foram encontrados em seu antigo celular. O último poema a ser finalizado pelo artista foi enviado em vídeo para uma amiga. Com sua métrica única, Japa recitou e refletiu justamente sobre o nosso tempo na terra e como ele deveria ser utilizado por algo bem maior e mais importante do que todas as futilidades dos bens materiais: o amor. E como quem carregava sonhos e planos, o poeta defendeu o futuro, mas sem esquecer da importância do presente.
Todos ouvimos atentos as palavras de Japa, que saíam de um celular que estava posicionado em frente ao microfone onde os amigos prestavam suas homenagens. Estava ali mais um fascínio de quem é artista: o poder de se presentificar na arte. Igual a ouvir uma música de Elza e sentir que ela ainda está entre nós.
Para retribuir tanto amor, que continua sendo recebido mesmo depois da morte, os companheiros e companheiras do jovem artista determinaram que a rua Bulhões Marques agora será conhecida como Beco do Poeta Japa Rua.Foi lá que os amigos o homenagearam, e não no local de sua morte, por ser o lugar onde o poeta se sentia confortável.
Assim, todas as pessoas que passarem pela rua e encontrarem a placa que está grudada na parede da esquina saberão que por ali esteve, e se eternizou, um grande poeta e, quem sabe dessa forma, o tempo que lhe foi roubado pela violência possa se tornar menos penoso.
Crédito: Arnaldo Sete/MZ
Crédito: Arnaldo Sete/MZ
Crédito: Arnaldo Sete/MZ
Crédito: Arnaldo Sete/MZ
Crédito: Arnaldo Sete/MZ.
Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.
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Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.