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Crédito: Inês Campelo/Marco Zero Conteúdo
A promessa de um habitacional para as famílias de Caranguejo Tabaiares é antiga. Ela se soma aos vários projetos de moradia popular que nunca saíram do papel no Recife, mas sempre marcam presença nos guias de TV em época de campanha. A comunidade, instalada numa Zona Especial de Interesse Social (Zeis) de tradição pesqueira, onde vivem cerca de cinco mil pessoas, está situada entre os bairros de Afogados e da Ilha do Retiro, na Zona Oeste. Em julho deste ano, parte das moradoras e dos moradores foi surpreendida com um decreto (nº 32.680) de desapropriação em caráter de urgência assinado pelo Prefeito Geraldo Julio (PSB).
A justificativa é a obra de requalificação do Canal do Prado (parte do programa Capibaribe Melhor), que prevê serviços de drenagem, pavimentação, construção de calçadas, iluminação pública e paisagismo das vias que margeiam o canal. Também está prevista a implantação de três faixas de rolamento de veículos em um trecho que passa por dentro de Caranguejo Tabaiares, justamente na área onde seria construído o prometido habitacional.
O trecho viário vai da Estrada dos Remédios até as proximidades do braço do Rio Capibaribe, na altura da Rua Jordânia (a nota enviada pela Prefeitura para a Marco Zero cita, erroneamente, o rio Beberibe, que na verdade está distante sete quilômetros). O entorno é uma das zonas de forte especulação imobiliária na cidade, sobretudo na Av. Beira Rio e arredores.
Para viabilizar o projeto, orçado em R$ 1,6 milhão, a Prefeitura do Recife afirma que é necessária a desocupação das áreas onde serão realizadas as intervenções previstas e a realocação das famílias. A gestão municipal diz que essa obra finalmente irá, além de possibilitar o acesso ao canal, viabilizar a construção do lendário habitacional com 176 unidades.
Enquanto isso, o Recife convive com um déficit habitacional estimado em mais de 71 mil domicílios. O número, de 2017, é do Plano Local de Habitação de Interesse Social, com base nos dados do Censo Demográfico, da Fundação João Pinheiro e da Secretaria Executiva de Habitação e Urbanização Social.
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“Essas melhorias serão para quem?”, provoca Sarah Marques, do coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste. “Recife foi o pioneiro em áreas Zeis e pode ser também o pioneiro de retirada de áreas Zeis. Porque, quando você começa a expulsar as famílias sem conversar direito com elas, sem reorganizar a comunidade no lugar correto, onde as famílias construíram a sua história, você pode chegar e fazer isso em qualquer outra zona da cidade. E isso é o que nos dá força para lutar, porque não estamos pensando só em Caranguejo Tabaiares, estamos pensando na cidade como um todo”, protesta.
Caranguejo Tabaiares tornou-se uma Zeis há 23 anos. Até o mês passado, nenhuma providência havia sido tomada para efetivar a regularização fundiária do local. Quem passa próximo ao Sport Clube do Recife não imagina a vida e as histórias que se estabeleceram há mais de um século no território.
ZEIS
Significa o reconhecimento, por parte do poder público, de que a comunidade constitui-se enquanto assentamento habitacional consolidado de baixa renda, surgido espontaneamente e carente de infraestrutura básica, devendo, portanto, ser realizada a sua regularização fundiária.
Significa também o direito de permanência das moradoras e dos moradores das áreas Zeis em continuar residindo em seu território afetivo de origem, protegidos de serem desapropriados ou removidos para lugares distantes e periféricos em relação ao centro da cidade.
O poder público municipal vem dando três opções para que as famílias que vivem na área onde passará a obra se retirem: um apartamento no Conjunto Habitacional Casarão do Barbalho, na Iputinga, a sete quilômetros de Caranguejo Tabaiares; uma indenização calculada com base apenas nas benfeitorias empregadas; ou um auxílio-moradia de R$ 200,00 por mês até que o habitacional fique pronto.
Até agora, 32 famílias foram retiradas e realocadas para o Casarão do Barbalho. Mais três famílias estão aguardando o processo de mudança para o mesmo local e outros três imóveis serão retirados mediante pagamento de indenização. Como nada da obra ainda foi feito, boa parte dessas moradias já foram reocupadas.
“Estamos aqui até agora resistindo porque minha mãe não quer ir. Pode ser até um lugar bom (o Habitacional Casarão do Barbalho) para quem está dando, mas para mim e para a minha família não é. Minha mãe nunca sonhou com isso”, diz a auxiliar administrativa Suzana Maria da Silva. “Não é um lugar bonito, ninguém quer morar de frente para o esgoto. Mas não queremos sair daqui. Queremos melhorias aqui, temos esse direito”.
Ela é uma das filhas de Maria José Domingos, moradora da comunidade há 40 anos, dona de uma das moradias ameaçadas de remoção. A PCR só pode dar início às obras com essas retiradas. A senhora de 75 anos relata que chegou a ser abordada por técnicos da prefeitura quando estava sozinha em casa. “Por sorte, minha filha já tinha me alertado para que eu não assinasse nada”. A outra filha de Dona Maria é cadeirante e trabalha no Recife Antigo, mais um motivo para que elas não queiram deixar a comunidade.
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A construção de um habitacional em Caranguejo Tabaiares já estava prevista no plano urbanístico de 2008. Em 2013, depois que a comunidade foi atingida por um incêndio, o prefeito Geraldo Julio (PSB) esteve no local e reafirmou a intenção do projeto assinando um contrato de cessão de um terreno onde seriam erguidas as moradias populares.
Uma licitação para escolha da empresa chegou a ser lançada, mas, no meio do caminho, teve início uma disputa judicial envolvendo parte do terreno que pertence a uma sociedade de médicos. Assim, o convênio com a Caixa Econômica, através do Minha Casa Minha Vida, nunca foi assinado.
O acirramento do conflito fundiário em Caranguejo Tabaiares começou há cerca de um ano, quando a Prefeitura do Recife anunciou que precisaria desapropriar aproximadamente 100 famílias para a obra de requalificação do Canal do Prado.
O advogado do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), Stélio Cavalcanti, chama a atenção para o fato de esse processo, que desconsidera o traçado urbano já consolidado na comunidade, estar em desrespeito à Lei municipal nº 16.113 de 1995, de Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis), que define os parâmetros construtivos em área de Zeis.
“A atual luta de moradores de Caranguejo Tabaiares evidencia mais um passo do processo de gentrificação do Recife, onde o poder público, ao deixar de aplicar e respeitar a legislação, como a Lei do Prezeis, termina por criar as condições políticas e legais para que o mercado imobiliário dite o desenho da cidade”, avalia o advogado do CPDH.
Na semana passada, o centro entrou com um mandado de segurança para suspender os efeitos e anular o decreto de desapropriação de Caranguejo Tabaiares. O mandado ainda não foi apreciado pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco. Segundo os advogados, trata-se de “um processo de desapropriação ilegal, uma vez que, enquanto área Zeis, a comunidade deve destinar-se precipuamente, por força de lei, à regularização fundiária plena”.
Além disso, o decreto de Geraldo Julio viola também, segundo o CPDH, a Lei Federal nº 13.465/2017, uma vez que a organização entrou com pedido de regularização fundiária cerca de um mês antes, que ainda não foi apreciado. A lei diz que, enquanto o pedido não tiver sido apreciado, o que pode levar até um ano, não pode haver qualquer remoção na área.
Os advogados ainda chamam a atenção para a consolidação da comunidade há quase um século, o que ocorreu com a conivência do poder público, que permitiu a permanência das famílias e ainda realizou pavimentação de ruas, incentivando as ocupações através de políticas públicas habitacionais de doação de recursos e de materiais de construção para auxiliar as moradoras e os moradores na autoconstrução ou na realização de melhorias de suas moradias.
As desapropriações, por sua vez, denuncia o CPDH, estão sendo realizadas mediante indenizações calculadas com base apenas nas benfeitorias empregadas, com valores insuficientes para que as famílias possam comprar uma casa do mesmo padrão construtivo.
Outra opção dada pelo poder público municipal é inscrever as famílias num cadastro de beneficiários do programa de auxílio-moradia para que recebam uma ajuda de R$ 200 por mês até que a solução habitacional de Caranguejo Tabaiares saia do papel. Para se ter ideia, em Salvador esse auxílio é de R$ 400 e, em São Paulo, de R$ 800. Tudo isso, então, está longe de garantir uma alternativa habitacional digna.
Em nota, a prefeitura garante que “todo o processo de urbanização da área tem sido realizado a partir do diálogo com os moradores, com a realização de várias reuniões, incluindo uma apresentação do projeto na comunidade e, em duas outras ocasiões, na sede da Autarquia de Urbanização do Recife (URB)”. Moradoras e moradores, porém, dizem que esses encontros têm sido insuficientes e que muita gente na comunidade ainda não entende o processo.
Não bastassem as reiteradas promessas do prefeito Geraldo Julio de beneficiar a comunidade, há outra contradição do poder público municipal: a Prefeitura do Recife está oferecendo ajuda para que as famílias reformem suas casas em Caranguejo Tabaiares. O Parceria na Sua Casa é uma ação do programa Chegando Junto, que abarca uma série de projetos, com ações de assistência à população e apoio à geração de renda.
O objetivo é realizar pequenas reformas que custem até R$ 5 mil nas casas contempladas, após uma triagem, como, por exemplo, reparos nos telhados, banheiro, cozinha, reboco e piso das casas. As ações são feitas pelos próprios moradores com apoio técnico da prefeitura, que banca o material. Na justificativa da PCR, “o projeto também reforça o compromisso da gestão de ampliar as políticas públicas voltadas à habitação”.
A escolha da comunidade Caranguejo Tabaiares, relembra a própria prefeitura, foi deliberada em plenária no Fórum do Prezeis e o Parceria na Sua Casa é baseado na Lei nº 18.189/2015, que dispõe sobre o programa de melhoria habitacional daqueles que têm perfil socioeconômico para habitação de interesse social.
Atualizado em 23h35
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com