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“Antes da adaptação climática, vem uma adaptação de existência”, afirma Flora Rodrigues

Comunicadora e coordenadora da Rede Tumulto, coletivo de comunicação do Recife, reflete sobre participação da juventude negra no debate sobre adaptação climática na COP30

Jeniffer Oliveira / 21/11/2025
A imagem mostra uma jovem negra, com cabelos trançados presos, óculos de grau e um macacão vermelho, sentada falando ao microfone.

Crédito: Gabriela Conc/Voz das Comunidades

A 30ª edição da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, COP30, que mobilizou milhares de pessoas em Belém (PA), está sendo um local de debates importantes sobre adaptação e financiamento climático. A conferência foi dividida em duas grandes áreas, a blue zone, onde acontecem as negociações entre chefes de Estado e apenas pessoas credenciadas podem entrar, e a green zone, aberta ao público, voltada para a sociedade civil, instituições públicas, empresas e organizações não governamentais (ONGs).

Os movimentos populares também se organizaram para a COP30. Um exemplo dessa mobilização é a yellow zone, idealizada pela Coalizão COP das Baixadas. É nesse espaço que a juventude periférica de Belém dialoga com os visitantes a partir de suas vivências e perspectivas, ampliando o debate popular de forma descentralizada.

Jovens de todo Brasil estão nesses espaços de discussão para trazer a perspectivas dos seus territórios e para pensar na adaptação climática a partir deles. Durante o evento, Flora Rodrigues e Yane Mendes, integrantes da Rede Tumulto, um coletivo de comunicação popular do Recife, estiveram ocupando espaços para refletir sobre o impacto das mudanças climáticas nas periferias, a partir das suas vivências na capital pernambucana.

Flora, que aos 22 anos carrega uma bagagem de mobilização popular em seu território e também fora dele, conversou com a Marco Zero para falar um pouco sobre a importância de levantar esse debate em um espaço como a COP30.

Vocês, que desenvolvem um trabalho de mobilização junto com e comunicação muito forte no Recife, como enxergam estar ocupando esse espaço na COP30?

Sou uma das coordenadoras da Rede Tumulto, junto com quatro mulheres negras, que trabalham a democratização da comunicação, da justiça climática, fazendo a tradução dessas temáticas dentro das favelas do Recife, na qual a gente trabalha.

Estar na COP30 é um ato de reparação mesmo, de reparar esses danos históricos, porque nunca nos colocaram na centralidade desse debate. Então, vir de uma favela do Recife, estar na COP30, anuncia um ato de avanço, mas, sobretudo, é um espaço também que a gente vê o quanto as metodologias que a gente está desenvolvendo nos nossos territórios são metodologias que conseguem, sim, redirecionar um debate global sobre as mudanças climáticas.

Com soluções que fazem sentido, com soluções que, inclusive, são fazem com que o território se envolva, se sinta parte desse debate global. Então, acredito que estar na COP30, com essa conexão de comunicadores do Recife, de um coletivo de favela de comunicação do Recife, anuncia um ato de reparação, mas anuncia também um ato de reconstrução, de colocar a gente na centralidade desses debates climáticos.

Um estudo do Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC) alerta que eventos climáticos extremos aumentam as condições de vulnerabilidade das comunidades periféricas e rurais. Qual a importância de levar o olhar da periferia para o debate?

Eu acredito que levar o olhar da periferia para o debate é, sobretudo, racializar o debate. Quando a gente entende que levar a periferia é levar as pessoas afrodescendentes para a centralidade desse debate, porque hoje a gente vê que dentro da COP30 existe uma ausência histórica até da palavra afrodescendente nos documentos oficiais.

Então, acho que a gente está aqui, enquanto pessoas pretas, periféricas, é também racializar o debate climático, fazer com que esse debate climático faça sentido, sobretudo, para o maior grupo demográfico desse país, que são as mulheres negras. Não existe justiça climática se não forem as mulheres negras ocupando esse espaço oficial da COP30.

Essa é uma oportunidade de anunciar que as periferias têm cor, as periferias têm gênero e as periferias têm conhecimento para estar dentro de espaços como a COP30.

E como você avalia o papel da juventude negra no debate da adaptação climática?

A juventude negra, sobretudo a juventude negra periférica, vive um processo de adaptação de existência. Antes da adaptação climática, vem uma adaptação de existência. Porque a gente vive o tempo todo numa disputa política dos nossos corpos. O Estado disputa nossos corpos com a violência, com a falta de empregabilidade, com o calor extremo. Porque somos nós que estamos dentro da sala de aula com calor.

Então, acredito que a adaptação maior que a gente faz e a de querer existir com dignidade. E a adaptação climática dialoga diretamente com isso, porque a gente está falando sobre existir com dignidade. Então, acho que ser uma jovem negra nesse espaço é também reafirmar a humanidade das periferias e favelas, de nós, da juventude negra.

A juventude negra que, muitas vezes, nunca nem ouviu a palavra COP30, mas já vem sofrendo esses impactos diariamente nos seus territórios. A juventude negra, por exemplo, que é excluída quando a gente vai pensar a partir da perspectiva de empregos verdes. É a juventude negra que não tem acesso a essa ‘diplomacia’, que é construída a partir de outras juventudes, do que é ser ativista climático. Então, eu acredito que o ‘pirraia’ da minha rua, que está lá na minha favela, ele é, sim, um ativista climático.

E eu acho que quando nós, jovens negras, estamos dentro desse espaço da COP30, a gente consegue também tomar posse do sentido do que é construir uma luta climática no Brasil, mas, sobretudo, a partir das juventudes e das periferias. Entender que nós somos a juventude plural, mas que nós, juventude negra, temos singularidades, porque nunca, historicamente, fomos colocados para ocupar a COP30, nem que seja como observador.

Então, acho que isso também é um espaço político importante de reafirmação, de que a juventude negra sabe o que é melhor para ela, que a juventude negra tem um projeto de sociedade também muito nutrido, sobretudo, pelas nossas mais velhas, pelo movimento negro histórico, do movimento de favelas.

Estar aqui, enquanto uma jovem negra, também é ter essa certeza, ter essa afirmação que a intergeracionalidade nunca foi um problema para a gente, que a gente constrói com nossos mais velhos no território, a gente constrói com nossos mais velhos nos terreiros de candomblé. E eu acho que é isso que precisa estar na centralidade do debate quando a gente vai falar sobre juventudes e o que é que a juventude está propondo também para adiar o fim do mundo.

A imagem mostra um painel com quatro pessoas discutindo sobre juventude e governança energética. Ao fundo, uma tela verde exibe o tema do evento: “A transição energética só será justa se incluir as juventudes”. O ambiente é formal, com cadeiras para o público e materiais de divulgação no chão.

Como têm sido as discussões da COP30 voltadas para a periferia?

Os espaços voltados para a discussão das periferias na COP30, infelizmente, ainda não são esses espaços oficiais, como, por exemplo, a Blue Zone. A gente vê um debate muito potente sobre as periferias dentro da Green Zone, dentro das Yellow Zones, dentro da Black Zone também, que foi anunciada pelo movimento negro aqui de Belém. Mas dentro da Blue Zone, por exemplo, a gente ainda vê uma escassez muito grande dos debates periféricos, da periferia estar pautada dentro da centralidade. Compreendendo, sobretudo, os códigos que esses espaços colocam, como, por exemplo, a obrigatoriedade de passaporte para estar na Blue Zone.

Eu sou uma negra jovem que eu estou ocupando esses espaços, então estive também na Blue Zone, nos momentos oportunos, ecoando, sobretudo, junto com o movimento de mulheres negras, junto com o movimento negro. Os afrodescendentes precisam estar na centralidade dessas grandes negociações que são feitas, sobretudo, na Blue Zone.

A COP30 ser no Brasil oportuniza também que a gente consiga consolidar, por exemplo, outros tipos de espaços que vão debater o olhar da periferia que vai ser um mecanismo de advocacy, de incidência política. A COP também oportuniza que a gente tenha acesso a governantes, a pessoas que têm um papel importante na construção e na consolidação de políticas públicas para a gente.

No seu discurso na COP30, uma das suas provocações foi sobre radicalidade. O que é essa radicalidade e como colocá-la em prática como incidência política?

Nós, enquanto juventude negra, fomos empurrados a ser radical. A pacificidade nunca teve a nossa cor, nunca teve o nosso corre, a pacificidade nunca esteve no chão dos nossos territórios. Porque o Estado mostra o tempo todo para a gente quem tem o direito de viver e que tem o direito de morrer, sobretudo, quando a gente está falando sobre desastres climáticos e sobre crise ambiental.

Então, acredito que a radicalidade precisa ser incorporada quando a gente vai falar para o Estado brasileiro e para todos os líderes de governo que a gente sabe o que é melhor para a gente. Quando a gente está debatendo sobre um outro projeto de mundo, que é estruturante, é estratégico. A gente precisa compreender que a vontade política também é um ato que estrutura as relações.

Eu sinto que hoje existe uma não vontade política de fazer com que os avanços que estão sendo debatidos a partir das periferias, dos quilombos, das aldeias, sejam avanços que vão ser executados como solução para a crise climática, entende? Existe falta de vontade política de executar o que as periferias, os quilombos, as aldeias, vem anunciando como uma solução para adiar o fim do mundo. Então, o norte global reafirma isso, que não quer olhar para o sul global, que não quer olhar para esses territórios e que eles são os principais provocadores de todas as injustiças climáticas que a gente vem vivendo.

Então, acredito que a radicalidade é por uma existência digna, por uma narrativa que avance, que as pessoas possam nos escutar. Acho que essa COP30 também é um espaço que precisa deslocar a escuta para a atitude. Então, acho que a radicalidade também é pensar a partir desse movimento, dessa articulação. E eu acho que nós, mulheres negras, a gente nunca teve a escolha de ser pacífica.

A gente sempre teve a escolha de levantar, de organizar nosso território, de provocar mudança, de provocar transformação. Eu acho que é isso também que a gente anuncia para o mundo. Eu acho que o que vem acontecendo, por exemplo, na cúpula dos povos, o que vem acontecendo nas yellow zones, em debates importantes nas green zones, anuncia um novo modelo de sociedade.

Acho que as mulheres negras são as principais pessoas que estão narrando esse novo futuro. Que esse futuro tenha a ver com o presente, com o que a gente está vivendo agora, porque o futuro para a gente, muitas vezes, está num lugar de utopia. Porque a gente, infelizmente, vive um projeto de extermínio. Mas que a gente está reconstruindo caminhos para que a gente possa sobreviver com dignidade, existir com dignidade. Não sobreviver, mas existir com dignidade e bem viver.

E acho que a marcha de mulheres negras, que é um momento importante e que, inclusive, tem ligação pós essa COP30, e que vai acontecer no dia 25 de novembro, em Brasília, anuncia muito do que a gente, mulheres negras, construímos aqui, com muita radicalidade, na COP30.

A imagem mostra um grupo de pessoas reunidos, segurando faixas, com frases: Rede Tumulto, favelizando o clima Palmares, laboratório-ação e viver o poder da periferia.

Crédito: Yane Mendes/ Rede Tumulto

AUTOR
Foto Jeniffer Oliveira
Jeniffer Oliveira

Jornalista formada pelo Centro Universitário Aeso Barros Melo (UNIAESO), mestranda pelo Programa de Pós-graduação e Inovação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)/Campus Agreste. Contato: jeniffer@marcozero.org.