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Artistas que manifestarem conteúdo político no São João de Caruaru podem não receber cachê

Raíssa Ebrahim / 19/05/2022

Crédito: Flickr Fundarpe

Sem São João há dois anos por causa da pandemia de covid-19, a festa junina agora acontecerá em ano eleitoral. O edital para contratação de artistas em Caruaru, a “Capital do Forró”, no agreste de Pernambuco, veio com uma novidade este ano. Além de não serem contratados aqueles que expressem conteúdo discriminatório — como é de praxe e amparado por lei —, o item 9.3 do edital está com um adicional inédito: também não serão contratadas atrações artísticas e culturais que expressem conteúdo “político de qualquer natureza”.

Segundo a convocatória, quem não cumprir o estabelecido pode não receber cachê. Está no item 10.1.1: “O não cumprimento das exigências, contidas nos Anexo II, III e IV poderá acarretar na rejeição da Prestação de Contas e, consequentemente, o não pagamento da apresentação artística”. Confira aqui o edital e os anexos.

A grade com a programação dos selecionados começou a ser divulgada ao público na última terça-feira, 17 de maio, e os contratos estão em fase de assinatura. Grande parte dos artistas e produtores ouvidos pela Marco Zero leu a novidade como “censura prévia”. Alguns disseram que a redação da cláusula, na verdade, gerou dúvidas sobre o que realmente a Fundação de Cultura de Caruaru quer estabelecer.

Os que vão tocar na festa preferiram não ter o nome divulgado pela reportagem para não correr o risco de sofrerem sanções. Os trabalhadores da música, de integrantes da equipe técnica aos artistas, sobretudo de grupos menores, dependem dos cachês para sobreviver e muitos estão em situação financeira adversa após quase dois anos sem apresentações presenciais, diante de uma profunda crise financeira e do desmonte das políticas públicas de cultura.

Nas entrevistas, a maioria colocou em evidência que a existência de seus corpos, de seus discursos dentro e fora dos palcos e de sua arte já são por si só expressões políticas, o que deixa explícito o campo no qual transitam e militam. Apesar do descontentamento, também falaram da necessidade neste momento de uma saída que ocupe os espaços públicos de forma estratégica.

Fronteira entre showmício e liberdade de manifestação

Os showmícios são vedados pela legislação eleitoral, artistas não podem subir ao palco para fazer propaganda política, pedir voto para o candidato A ou B nem usar o espaço para fazer publicidade sobre as obras realizadas por um prefeito, por exemplo. Um acórdão recente do Supremo Tribunal Federal (STF), de outubro de 2021, traçou os limites dessa discussão, enfatizando a diferença entre fazer showmícios e se manifestar politicamente.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5970 diz que todo cidadão tem direito de manifestar o que pensa sobre qualquer candidato, o que contempla também artistas que escolhem expressar seu pensamento político por meio de seu trabalho, seja antes, durante ou depois do período eleitoral. “A proibição dos showmícios e eventos assemelhados não vulnera a liberdade de expressão”, diz o STF. A corte é explícita: o impedimento de propaganda eleitoral não pode ser confundido com a proibição da manifestação de opiniões.

Veja o trecho na íntegra:

“É também assegurado a todo cidadão manifestar seu apreço ou sua antipatia por qualquer candidato, garantia que, por óbvio, contempla os artistas que escolherem expressar, por meio de seu trabalho, um posicionamento político antes, durante ou depois do período eleitoral. A proibição dos showmícios e eventos assemelhados não vulnera a liberdade de expressão, já que a norma em questão não se traduz em uma censura prévia ou em proibição do engajamento político dos artistas, visto que dela não se extrai impedimento para que um artista manifeste seu posicionamento político em seus shows ou em suas apresentações. A norma em tela está a regular a forma com que a propaganda eleitoral pode ser feita, não se confundindo com a vedação de um conteúdo ou com o embaraço da capacidade de manifestação de opiniões políticas por parte de qualquer cidadão.”

O professor de direito constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Marcelo Labanca explica que o que não se pode é usar recurso público para maquiar propaganda eleitoral, transformando o artista em agente de propaganda. Ou seja, fazer campanha política travestida de atração artística. Mas ele frisa que existe uma fronteira entre o que é atividade político-partidária e o que é liberdade de expressão artística e livre manifestação, como estender uma bandeira ou pedir “Fora Bolsonaro” ou “Fora Lula”, por exemplo.

Na avaliação de Labanca, a determinação da Fundação de Cultura de Caruaru da forma como está escrita no edital é inconstitucional porque “fere a possibilidade de o artista se expressar”. “A finalidade (da legislação eleitoral) é evitar que administradores públicos façam contratações artísticas para ter aliados públicos fazendo campanha para eles. Isso seria injusto e desleal. O objetivo, portanto, é democrático, não é de calar a boca do artista quando ele está manifestando a sua opinião política”, detalha. O professor pontua ainda que a liberdade de expressão e opinião tem limites, ela não pode ser confundida com liberdade de agressão.

Labanca lembra ainda que, no direito, existe a chamada Interpretação Conforme a Constituição. É uma doutrina que o Supremo adota e interpreta que normas que aparentemente podem ter leitura incompatível com a constituição sejam lidas conforme as regras constitucionais.

Seguindo linha de raciocínio semelhante, o pesquisador de políticas públicas e doutor em antropologia Rafael Moura vê como “frágil” a redação no edital. “Leio como tentativa de se resguardar. Mas acho que a primeira leitura de censura previa é natural, sobretudo nesse momento que estamos vivendo, de tantos ataques contra artistas”, opina.

O caso Lollapalooza

Foi com base na ADI 5970 do STF que o ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Raul Araújo foi duramente criticado por ter acatado o pedido do PL, partido do presidente Jair Bolsonaro, de censura a manifestações político-eleitorais durante o Lollapalooza. O ministro tomou como propaganda eleitoral os episódios envolvendo Pabllo Vittar e Marina, que se manifestaram a favor de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e criticaram Bolsonaro. A decisão liminar de Araújo determinava multa de R$ 50 mil para a organização do festival caso outros artistas se manifestassem politicamente durante o evento. Após duras críticas, o ministro voltou atrás, aceitou o pedido do PL e arquivou a ação.

A liminar não chegou a produzir efeitos porque o TSE não conseguiu notificar a organização do Lollapalooza a tempo por conta de um erro de CNPJ. Na ocasião da revogação, o ministro Araújo contornou a situação afirmando que, quando concedeu a liminar, entendeu que a organização do festival é que estaria incentivando os artistas a se manifestarem politicamente. “Ressalto que a decisão anterior foi tomada com base na compreensão de que a organização do evento promovia propaganda política ostensiva estimulando os artistas — e não os artistas, individualmente, os quais têm garantida, pela Constituição Federal, a ampla liberdade de expressão”, escreveu.

O que diz a Fundação de Cultura de Caruaru

A reportagem conversou por telefone com o presidente da Fundação de Cultura de Caruaru, Rubens Júnior, no final da semana passada. Segundo ele, não havia chegado, até então, nenhuma contestação ao edital e os contratos ainda não haviam sido assinados porque a seleção ainda estava em curso. O que o edital do São João 2022 traz é, nas palavras dele, uma “precaução” quanto às contas públicas e uma “recomendação” aos artistas, não uma censura.

Frisando que deseja uma festa de paz e tranquilidade e que o edital recebeu propostas diversas de vários lugares do Brasil, o presidente não lê a cláusula como censura prévia nem discriminação a nenhuma atração e acredita que ela não tolhe a expressão artística de quem subir ao palco. Rubens disse estar “tranquilo”, inclusive porque “o edital é a maneira mais democrática de contratação”, que contrata no mínimo 60% das cerca de 800 atrações da festa junina na cidade.

“Nós estamos fazendo shows com recursos públicos num ano eleitoral”, diz, citando a possibilidade de uma eventual ação do Ministério Público caso as atitudes dos artistas no palco sejam lidas como infrações à legislação eleitoral ou showmícios. “A gente está dizendo que não fale de ninguém. Não estou pedindo para falar do meu e não falar do seu (candidato). Estou sugerindo. Na verdade, o edital sugere que não pode haver manifestação política. Eu estou pagando com dinheiro público.”

“O que que a gente está contratando não é a posição política do artista. Agora, se ele faz isso num teatro, as pessoas pagam para assistir ao show dele. Eu mesmo vou e bato palma quando é a meu favor e vaio quando é contra a minha posição política. Mas é um show privado. Um show com recursos públicos, a gente tem que ter essas precauções”, defende Rubens.

Rubens Jr. Crédito: Jorge Farias/Pref. de Caruaru

“Eu tenho copatrocínio do Governo Federal, do governo estadual e a prefeitura banca a maior parte da festa. São três posições políticas diferentes. Como é que eu resolvo isso? Eu resolvo dizendo assim ‘Olha, não se fala em política, porque o show não é para manifestação individual. O show é para manifestação individual artística’”, detalhou o presidente, que é aliado da ex-prefeita de Caruaru Raquel Lyra (PSDB).

No dia 31 de março, obedecendo a legislação eleitoral, Raquel Lyra renunciou ao seu segundo mandato e anunciou sua pré-candidatura ao Governo de Pernambuco. Quem assumiu foi o vice, Rodrigo Pinheiro (PSDB). A princípio, a escolha tucana era para a presidência da República seria João Dória (PSDB). Mas, rachado, o partido atualmente enfrenta algumas crises em torno do nome para ocupar a chamada terceira via.

Rubens, que em vários momentos da entrevista lembrou do delicado clima de acirramento político, da radicalização do país e do desejo de evitar confusão e violência, ainda arriscou: “Eu sou capaz de dizer que nenhum dos grandes artistas nacionais ou até os grandes artistas locais, os grandes nomes da música do São João, vão se apresentar defendendo nenhuma bandeira política, porque não é o papel deles”.

O presidente afirmou “respeitar muito quem pensa diferente”. “Quem pensar diferente tem duas alternativas: ou questiona ou não participa – e todas as duas são legais. Ou então nos procura para saber como é esse negócio, por que é assim”, complementou.

A Marco Zero procurou saber como ficou a redação final dos contratos. No final da tarde desta quinta-feira, 19 de maio, Rubens Júnior respondeu assegurando que “no contrato a questão não aparece”, e repetiu se tratar apenas de uma “recomendação do edital”

Grupo preferiu não seguir adiante com o edital

O grupo Em Canto e Poesia, do Sertão do Pajeú, não foi habilitado na fase documental e, segundo relataram os integrantes, poderiam ter pedido recurso, pois se tratava de uma questão documental simples. Porém, eles resolveram não ir à frente na seleção por conta da novidade do edital: “É censura prévia. Se não é para subir ao palco com o grito político também, a gente não sobe”. “Somos filhos da oralidade, da palavra, da poesia oral cantada, recitada. Então não nos basta só estar. A gente tem que dizer, verbalizar o como está”, detalharam. “Para não gerar aborrecimento nem constrangimento – até porque, para a gente ir, a gente gasta e poderia depois ser penalizado de alguma forma e não receber cachê – preferimos não ir”, decidiram, solicitando que esses posicionamento são coletivos, de todo o grupo.

Mas, diante da decisão, a Em Canto e Poesia faz uma ponderação: “Claro que, para muita gente, é mais difícil abrir mão disso, principalmente as manifestações da coletividade, da cultura popular, do folguedo, que esperam o ano inteiro por essa chegada, sobretudo depois de tanta pandemia e tanto prejuízo. Então não nos cabe julgar quem aceita, não estamos fazendo nenhum julgamento de quem aceitou a cláusula e vai cantar no São João de Caruaru. A luta é difícil, o ofício é difícil e a gente tem que trabalhar. Que todo mundo que queira cantar cante, que todo mundo que queira participar participe, porque só a presença já é um ato político”.

O produtor cultural e idealizador do festival Aurora Instrumental, Félix Aureliano, também se mostrou insatisfeito. Ele não está participando do edital este ano, mas deu a opinião dele: “Evidente que esse dispositivo no edital busca cercear a liberdade de expressão, constranger artistas, bandas e grupos com objetivo de dizer o que pode ou não pode. Se o artista perder a linha no palco, existe legislação na constituição que pode ser acionada. Não podemos retomar fantasmas e esqueletos da época da ditadura militar. Sei que o clima no país está beligerante e somos presididos por um presidente que faz apologia a tortura, mas, Caruaru não pode ir na contramão da história”.

ATUALIZAÇÃO: Prefeitura de Caruaru publica nota

Após repercussão desta reportagem da Marco Zero e da pressão da classe artística e também nas redes sociais, a prefeitura da cidade emitiu uma nota oficial afirmando “categoricamente que não há qualquer possibilidade de censura a artistas durante o São João do município”. A gestão diz ainda que o texto do edital foi “mal redigido, foi pensado por burocratas que buscavam evitar a politização de um evento que tem como finalidade o entretenimento, a valorização da cultura e a celebração religiosa das festas de junho”.

“Nosso compromisso é absoluto e irrestrito com a liberdade de expressão, essencial para assegurar a continuidade do processo democrático. Não haverá qualquer tipo de pena para quem se livre manifestar durante o evento. Queremos fazer uma festa vibrante, em que reine a paz e a união das pessoas, e que leve felicidade para o povo de Caruaru e aos nossos milhares de visitantes. Afinal, este será o São João do Reencontro”, diz o texto da prefeitura.

A gestão também divulgou que o edital de contratação das atrações artísticas e culturais será retificado em Diário Oficial.

Atualizado em 20/5/22, às 16h28

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AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com