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As comunidades católicas por trás do protesto contra aborto no Recife

Maria Carolina Santos / 18/08/2020

Católicos rezam em frente ao Cisam. Crédito: JÕnatas Campos/MZ Conteúdo

“Escravo da virgem Maria”

É como se apresentam nas redes sociais muitos dos que estiveram no protesto no domingo (16), no Recife, contra o aborto legal em uma criança de 10 anos. Ao lado de políticos evangélicos pentecostais, o protesto jogou luz sobre a atuação das comunidades católicas que disputam as mentes, corações e contas bancárias de fieis na internet. Engana-se quem pensa que a militância contra o aborto é a única pauta que une os dois grupos religiosos. Há mais semelhanças que divergências.

Antes da extremista Sara Giromini fazer uma live no YouTube clamando para que seus seguidores fossem até a porta do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), perfis católicos no Instagram exibiam stories com o mesmo intuito. Alguns inclusive já estavam no local, antes mesmo da chegada da criança.

Integrantes das comunidades Porta Fidei, Diante do Altar, Bento XVI – Maanaim e Deus Conosco foram protestar na porta do Cisam. Há quem diga que os católicos foram mais numerosos que os evangélicos. Entre os gritos de guerra ouvidos no protesto, estavam o de “assassino”, dirigido ao médico Olímpio Moraes, diretor do Cisam.

Até padres e freis participaram dos grotescos ataques. Em um canal de extrema direita, o padre Cícero Ferreira afirmou que “Pernambuco é um estado que abre as portas para matar crianças inocentes”. A posição contrária ao aborto é uma das pautas inegociáveis da Igreja Católica.

No começo da noite de domingo, Dom Fernando Saburido, arcebispo de Olinda e Recife, divulgou um vídeo de repúdio ao aborto. “Quero contestar inteiramente essa decisão. A igreja defende a vida em qualquer circunstância. Essa criança tem, sim, condições de sobreviver. Precisamos salvar a vida da mãe e do filho”, disse, fazendo uma comparação entre os profissionais que trabalharam na pandemia e os médicos do Cisam que, nas palavras de Saburido, estavam na “prática da morte”.

Há 11 anos, seu antecessor, Dom José Cardoso Sobrinho, foi mais incisivo. Por conta de um caso semelhante – aborto em uma criança de nove anos, estuprada pelo padrasto, grávida de gêmeos – excomungou a mãe da menina e os médicos que participaram do procedimento, inclusive Olímpio Moraes. Foi apenas um anúncio: pelo Direito Canônico a excomunhão é automática para quem faz ou participa de um aborto.

Na algazarra deste domingo, a comunidade Porta Fidei se destacou. Liderada pelo médico Rodrigo Cavalcanti Dias, conhecido como Rodriguinho, a comunidade fez várias postagens sobre o protesto. Muitos dos integrantes são ex-alunos do colégio Damas, assim como Rodriguinho, chamado de Fundador (assim mesmo, com maiúscula) ou até de “founder” (assim mesmo, em inglês). Nos perfis das redes sociais, foram vários os ataques ao grupo. As críticas à atitude do Porta Fidei foram tantas que a comunidade desativou os perfis no Instagram e no Facebook.

A comunidade católica Porta Fidei é formada majoritariamente por jovens brancos de classe média da zona norte recifense. Foi fundada em 2012 e desde 2016 tem como sede uma casa no bairro de Parnamirim. Defendem o celibato até o casamento e a submissão da mulher ao homem. Mas passam uma imagem pra frentex: a esposa de Rodriguinho, a também médica Bianca Victorino, já postou fotos indo para o Galo da Madrugada, por exemplo. O principal evento da comunidade é o Happy Day, quando fazem um dia com serviços e brincadeiras para crianças e idosos carentes.

Além do Recife, a comunidade marca presença em Petrolina e Arcoverde, no sertão pernambucano, e em Sumé, na Paraíba. No instagram, integrantes publicaram fotos juntos em passeatas pró-Bolsonaro. Em 2018, a Assembleia Legislativa de Pernambuco fez uma reunião solene em homenagem ao Movimento Pró-Vida, solicitada pelo deputado da bancada evangélica Joel da Harpa (PP), ex-policial militar que estava também ontem no protesto. Rodriguinho foi um dos homenageados. Na ocasião, ele e integrantes da comunidade posaram juntos com Dom Fernando Saburido.

Juridicamente, a Porte Fidei é uma associação católica com CNPJ desde 2016 para atividades de associações de defesa de direitos sociais, incluindo cultura e arte, educação profissional de nível técnico, ensino de esportes, entre outros.

Um abaixo-assinado pede que o grupo seja processado pelo protesto do domingo. Mais de 50 mil assinaturas foram coletadas. A Marco Zero ligou e enviou mensagens para vários integrantes da comunidade, mas ninguém quis se manifestar. Uma nota oficial da Porta Fidei deve ser emitida em breve.

Lavagem cerebral

Os bastidores da comunidade contrastam com os sorrisos alvos nas redes sociais. Durante a quaresma, integrantes têm que fazer longos jejuns, dormir no chão e alguns usam até pedras nos sapatos. Ex-membros falam de homofobia e racismo.

Um dos relatos foi publicado no Twitter pela publicitária e ex-aluna do Colégio Damas Brenda Albuquerque com base no testemunho de uma amiga que pediu anonimato. “Presenciei uma menina sendo duramente criticada pelo Fundador por estar passando por uma transição capilar. Lembro-me que, na época, ainda tão nova não consegui identificar aquilo como o que realmente era: racismo. Racismo por uma menina que tinha o cabelo crespo e queria assumi-lo”, lembrou a ex-integrante em um longo depoimento compartilhado com amigos.

Ela também afirmou que o Porta Fidei exigia que os integrantes – muitos adolescentes e morando com os pais – jogassem fora objetos de casa que remetessem a qualquer outra religião. “A comunidade é sim machista (muito!) e propõe que, para ser uma esposa verdadeiramente católica, a mulher deve saber cozinhar, lavar, passar e ser uma boa dona de casa”, conta. É o mesmo pensamento compartilhado abertamente nas redes de figuras pentecostais – incluindo a deputada Clarissa Tércio, casada com um pastor.

Ela diz que há padrões de vestimenta e exigência do pagamento de dízimo. “Membros com capacidade aquisitiva menor costumam ser menos acolhidos e muitas vezes trocam os pés pelas mãos para atender os padrões”, diz. Com quem tem mais dinheiro, a relação é diferente. “Costumam ser mais acolhidos e recebem muitas regalias. O Fundador logo os traz para seu ciclo íntimo”.

Brenda Albuquerque não chegou a ser integrante, mas frequentou algumas adorações da comunidade, onde tinha vários amigos e amigas. “Já tive que ouvir que eu era uma pessoa perdida por estar namorando a minha namorada. Durante a adoração, eles têm uma ‘mania’ de sentir o apelo de Deus para falar com outras pessoas (sim, essas palavras) e falam abertamente o que Deus quer falar para ela. No meu caso, Rodriguinho levantou a voz e falou ‘sinto que Deus me pede para falar com uma irmã que está perdida, se entregou aos desejos carnais, e está vivendo em pecado’. Como eu sempre soube da índole do grupo, só levantei e fui embora”, diz Brenda.

“Depois da thread que fiz uma galera veio me falar como se sente mal em ter feito parte do grupo, como sofreu opressão, como foi rebaixado. Uma amiga muito próxima sofre de ansiedade e crise de pânico por isso, sabe? É doloroso… Quando você para de prover dinheiro à comunidade, você se torna um zero à esquerda. Não consigo não ver como uma lavagem cerebral”, finaliza.

O que são as comunidades católicas?
As comunidades católicas não são novidade. Pesquisadores as consideram como um desdobramento da Renovação Carismática Católica, surgida no final dos anos 1960, mas é ampla a variedade de regras de comportamento e discurso religioso. Para a pesquisadora Cecília Mariz, “a igreja Católica possui dispositivos organizacionais que permitem o crescimento de movimentos e comunidades com tal autonomia que se constituem em quase-igrejas dentro da Igreja”.

As “novas comunidades” nascem de um conceito de “carisma”: um indivíduo escolhido por Deus, chamado de fundador, se junta a um pequeno grupo, o grupo fundacional, e estabelecem princípios e regras para o grupo. Depois, passam a evangelizar pessoas de fora, que posteriormente entram na comunidade. As comunidades costumam ter uma hierarquia rígida, com o fundador no controle.

Campo conservador unido

Para o cientista político da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Joanildo Burity, que trabalha com foco em religião e política, há uma união de cristãos conservadores, independentemente da denominação religiosa. “É algo que já acontece há alguns anos no Congresso, com as bancadas católica e evangélica votando juntas”, diz. “Quem espalhou a notícia foi a extremista Sara Winter e quem foi para a porta do hospital foram os católicos conservadores. Há uma conexão política também”, afirma.

Não há surpresa alguma que o protesto do domingo em frente ao Cisam tenha sido majoritariamente católico, diz ele. “Aborto é uma pauta muito forte do conservadorismo católico. Há muito tempo. É algo para o qual a Igreja Católica se mantém irredutível. Já temas ligados a questões LGBT estão mais na seara dos evangélicos”, diz.

O pesquisador vê, porém, uma tendência de radicalização na forma com que esses movimentos atuam. “Em países como os Estados Unidos é comum esse tipo de protesto nas portas de clínicas de aborto. Não que haja uma conexão direta entre os grupos daqui e os de lá, mas há um aprendizado. Nos últimos anos, com a eleição de Bolsonaro, esses grupos católicos também sentem a necessidade de se posicionar ideológica e politicamente. Há também o perigo da infiltração de figuras da extrema direita para radicalizar ainda mais e amplificar conflitos”, acrescenta. “É preciso que o campo progressista aprenda a debater com essas pessoas. É uma tarefa árdua, mas aprendemos na época da redemocratização que é um caminho possível”.

Sobre a fala de Dom Fernando Saburido, Burity considera que ela foi institucional. “Ele fez o que tinha que fazer. Ser contra o aborto é uma posição institucional da Igreja Católica”, diz. “Agora, é um contexto em que uma criança de 10 anos foi sistematicamente estuprada por quatro anos. Em contraponto à Igreja Católica, a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito fez um posicionamento forte contra o protesto e em solidariedade à criança”, comentou.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com