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Prefeito eleito João Campos aposta na agenda das "grandes marcas" promovidas pelo PSB. Crédito: Twitter João Campos
Em meio a promessas de “ampliar o que está dando certo”, como foi bastante repetido na campanha, manter os hospitais da mulher e do idoso e ainda abrir o hospital da criança, o prefeito eleito do Recife, João Campos (PSB), terá, pelo menos, três grandes e importantes desafios na área da saúde: garantir verba para cumprir o que prometeu, fortalecer a atenção básica – que, em alguns pontos, afirmam médicos e especialistas, não está dando tão certo assim – e ainda articular a rede para uma futura vacina contra a Covid-19. Tudo isso em meio ao cenário de retração de recursos e de pandemia, que não deve arrefecer em 2021 no Brasil.
Em um contexto de provável redução de recursos, João Campos aposta num equipamento exclusivo para as crianças, no Ibura, zona sul, enquanto somente metade da cidade está coberta por uma unidade de saúde da família e o acesso a hospitais referenciados têm a atenção básica como porta de entrada. Para entender o peso desses grandes hospitais no orçamento da saúde, o Hospital da Mulher, gerido por uma Organização Social (OS), a Sociedade Pernambucana de Combate ao Câncer, consumiu, em 2019, R$40 milhões, enquanto toda a manutenção da rede básica de saúde custou R$ 52 milhões.
A manutenção da rede básica implica na distribuição de recursos para uma extensa lista de programas importantes: o Programa de Saúde da Família, as Unidades Básicas Tradicionais, a Academia da Cidade, equipes e insumos para a rede de saúde bucal, o Programa Agente Comunitário de Saúde, as práticas integrativas, o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), a população em situação de rua e o Mãe Coruja.
João Campos tem um problema concreto para resolver. Ele comandará a primeira gestão após a mudança na política de financiamento da atenção básica anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Em vez de o dinheiro federal chegar aos municípios de acordo com a quantidade de habitantes, ele será repassado com base na quantidade de pessoas inscritas no sistema, com matrícula, cartão do SUS e vínculo com uma equipe de saúde da família. Porém, com uma cobertura de apenas 50% na capital, a conta das promessas corre o risco de não fechar.
Quando a medida foi promulgada, em 2019, a prefeitura correu para cadastrar o máximo de recifenses. Mas aí veio a pandemia e essa missão ficou comprometida. Para tornar ainda mais complexa a situação, a prefeitura resolveu mudar o sistema de cadastro, tendo que capacitar os trabalhadores, e, segundo quem atua na rede, não está havendo acompanhamento efetivo da gestão, que está distante dos distritos sanitários. Também não há Agentes Comunitários de Saúde (ACSs) suficientes para cumprir a missão.
“Estou passando por uma reterritorialização da unidade em que trabalho por que eu e uma companheira médica imploramos porque os dados do e-SUS não correspondem à realidade. Os cadastros estão defasados e dependemos disso para que o financiamento não seja cortado em janeiro. E ninguém está falando nisso”, desabafa uma médica de saúde da família que preferiu não ser identificada.
“Nosso mapa de território de abrangência é absolutamente desconhecido pela prefeitura, cuja base de dados é de 2014. Então estamos tentando, a partir dos cadastros do e-SUS alimentados pelos ACSs, definir a quantidade de pessoas por equipe”, detalha, lamentando também a falta de planejamento, acompanhamento e conhecimento específico na área porque muitos cargos gerenciais estão ocupados por comissionados. “Tem Agente Comunitário de Saúde que tem 80 pessoas cadastradas quando deveria ter 600”, contabiliza a médica reforçando que não há quem cobre.
“Os ACSs ainda estão em capacitação para uso dos tablets, muitos não sabem nem criar um e-mail, então é demorado. Hoje eles fazem o cadastro em uma ficha e passam para um computador. Alguns mandam para o distrito, que tem um digitador. O ano é 2020 e ainda estamos trabalhando com a possibilidade de um digitador”, acrescenta.
Numa cidade em que equipes de saúde da família chegam a cobrir 4,5 mil pessoas, há um “colapso gerencial” na atenção básica do Recife, define o médico do SUS e professor de saúde da família na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Rodrigo Cariri. Para o doutorando na Fiocruz Pernambuco, há um enorme desafio estrutural, num cenário de desmantelamento do SUS e ausência de retaguarda federal.
Com uma demanda reprimida enorme por conta dos atendimentos eletivos que pararam na pandemia, Cariri afirma também que “a gestão perdeu o contato com trabalhadores junto a suas equipes”. “Em 2020, as equipes de saúde da família abandonaram todas as metas. Na minha equipe, fomos fazer exame de citologia oncótica no mês passado porque eu insisti. Mas, ainda assim, fazemos somente de cinco a 10 exames por semana numa população de mil mulheres que estão há um ano sem fazer o exame anual”, relata.
Na saúde mental, contabiliza Cariri, já são seis meses sem atendimento. “Os Caps (Centro de Atenção Psicossocial) não estão admitindo ninguém, nem o ambulatório. Só há a emergência do Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano, com um movimento grande”, diz o professor. A preocupação se agrava ainda mais por conta da proximidade de João Campos com a ala evangélica que defende as comunidades terapêuticas e com a notícia de que o governo Bolsonaro pretende revogar uma série de portarias que estruturam a política de saúde mental no Brasil, em vigor desde a década de 1990.
Filho do ex-governador Eduardo Campos e bisneto do ex-governador Miguel Arraes, João Campos disse na campanha que pretende, além de construir o hospital da criança, expandir a atenção básica construindo novas Upinhas, priorizando territórios que ainda têm um vazio na atenção básica e piores indicadores. O atual prefeito Geraldo Julio (PSB) prometeu erguer 20 Upinhas, mas só entregou 15.
Especialistas e parte da oposição avaliam que o projeto de saúde de Geraldo Julio, que João Campos prometeu continuar, é insustentável financeiramente, além de ter um grande problema: com uma cobertura de saúde da família que não contempla a todos, quem não está cadastrado também não consegue acessar os hospitais referenciados.
Um exemplo concreto é Passarinho, na zona norte, que, descoberto de referência, não entra nas estáticas. Uma mulher do bairro não consegue, por exemplo, acessar o Hospital da Mulher. Sendo a atenção básica a porta de entrada, cria-se assim uma pirâmide invertida, com estruturas de excelência no topo, mas uma base estreita de acesso.
Na avaliação da médica sanitarista, professora do Centro de Ciências Médicas da UFPE e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Bernadete Perez, João Campos deixou evidente que a estratégia será novamente a de “apostar em grandes marcas”.
Ela, que também faz parte da Rede Solidária em Defesa da Vida, grupo multidisciplinar criado na pandemia, critica a falta de apostas em equipamentos como os hospitais pediátricos Helena Moura – que nunca teve o investimento merecido, nem na gestão PT -, localizado na Tamarineira, zona norte, e o Cravo Gama, fechado e que tem projeto pronto em parceria com o estado. Seriam possibilidades de investir na pediatria com equipamentos existentes, sobretudo para atenção hospitalar e urgência e emergência. Isso sem contar com Barão de Lucena, Imip, Hospital de Areias e Barros Lima.
“Investir em atenção básica é reduzir a demanda para média e alta complexidade. Se ampliar de forma resolutiva a capacidade de resolver problemas nos territórios, você diminui a necessidade de internação, sobretudo de crianças”, mostra.
A impressão que Bernadete teve na campanha é que a aposta de João Campos para a atenção básica são as Upinha, que, de acordo com ela, não têm sustentabilidade financeira porque custam mais sem ter uma alta resolutividade. São 24h, mas não contam, por exemplo, com apoio diagnóstico, terapêutico e leito de retaguarda. “É uma lógica que parte do gerencialismo, não há continuidade”, avalia.
A médica aposta que a resolutividade da Unidade de Saúde da Família, se houvesse uma melhor estrutura, com equipes completas e de retaguarda, conseguiria solucionar o que as UPAs fazem, a exemplos de sutura, drenagem de abscesso, raio x, exames de coleta, leitos de observação, inserção de DIU e pequenos procedimentos.
A médica defende que o trabalho deveria ser apostar numa garantia de cobertura de pelo menos 80%, com ampliação a partir de áreas de maior risco, garantindo acesso e continuidade, com a inauguração de serviços novos a partir da atenção básica tendo uma vigilância integrada das pessoas nos territórios.
O assessor parlamentar do mandato do vereador de Ivan Moraes (Psol) André Araripe tece críticas semelhantes, com foco nos recursos que podem diminuir, uma vez que a atenção básica, para receber mais do governo federal, precisaria de expansão. Porém o dinheiro municipal deverá com João Campos continuar seguindo para as grandes obras, que custam mais para serem erguidas e também mantidas.
Araripe lembra ainda que os hospitais da mulher, do idoso e da criança não existem no modelo do SUS como caracterização da atenção básica. São feitos com os cofres municipais. As Upinhas, por sua vez, são uma criação do PSB e também não existem no SUS, que, lembra o assessor, deveria ser igual do Oiapoque ao Chuí. A prefeitura do Recife investe 17% em saúde, mais do que os 15% exigidos. É uma das capitais que mais investem em saúde percentualmente.
“Mas com o quê?”, provoca. “Com mega obras que consomem muito dinheiro do município, mas não abrangem a todos”. “Essa é uma crítica muito difícil de ser feita, parece ir de encontro a um hospital para crianças. Mas no fim das contas, é um plano que aumenta a desigualdade”, observa.
Na pandemia, o Recife, aponta o médico e professor Rodrigo Cariri, fez mapeamento de zona quente com drones e outros “fetiches tecnológicos”, mas não tem como ir para a rua andar e analisar a situação no chão. “O paciente faz o teste, recebe o resultado e tchau”, resume. Não há vigilância efetiva nem rastreio de contatos. Na avaliação dele, isso tem a ver com o modelo de gestão “gerencialista focal”, que prioriza algumas áreas em detrimento da micropolítica nos territórios.
“Eles (o PSB) vendem que são empresariais, gerenciais e não fazem aparelhamento político. O resultado é o distanciamento dos trabalhadores e da população. A gestão se comunica com os trabalhadores via WhatsApp”, informa comentando que recentemente a prefeitura lançou a Mostra de Saúde da Família Municipal e foi pelo app que os profissionais ficaram sabendo.
A questão da vigilância é um ponto fraco da gestão PSB no Recife e que se agravou com a pandemia. “Estamos vendo muitos pacientes circulando quando deveriam estar em isolamento. Sabemos disso porque estamos dentro da comunidade. Tem a ver com a vigilância que não está sendo efetiva e nós não conseguimos fazê-la porque não está bem integrada”, explica um médico do distrito sanitário IV, que abarca parte da zona oeste.
A prefeitura utiliza o sistema Atende em Casa, exclusivo para Covid-19, mas que não dialoga com o sistema e-SUS, que estrutura as informações da atenção básica. Isso complica ainda mais o acesso ao histórico e o acompanhamento dos pacientes. “Se o paciente foi atendido, por exemplo, em outro município ou pelo estado, em uma UPA, não há convergência das informações. Isso dificulta o monitoramento dos pacientes e dos contactantes”, detalha o profissional. Como o próprio SUS coloca, “a qualificação da gestão da informação é fundamental para ampliar a qualidade no atendimento à população”.
O médico exemplifica na prática: recentemente ele atendeu, na unidade em que trabalha, uma mulher com problema de saúde que não era Covid-19. Ela estava acompanhada na recepção de uma familiar que estava com o vírus, havia sido atendida numa Upinha, mas estava circulando por não estar mais com os sintomas naquele momento. Alguns dias depois, o profissional ficou sintomático e, na mesma semana, recebeu por WhatsApp a informação de que a paciente que ele atendeu também havia positivado.
“As pessoas são atendidas num ambiente em que não existe continuidade e não se conhece a família. A gente não tem telefone para fazer os atendimentos remotos a que fomos orientados. O que funciona mais é o WhatsApp mesmo”, complementa o médico dizendo que a prefeitura orientou o trabalho remoto, mas não deu condições para isso. Alguns médicos compraram um chip e colocaram num aparelho exclusivo para essa finalidade, para não misturar com o pessoal.
Outro ponto tem sido o relaxamento das medidas de biossegurança: “Está havendo muita dupla entrada nos serviços (sem separação de pacientes suspeitos de Covid-19), misturando o negócio. E aí há um desafio: mostrar que a pandemia ainda está aí inclusive para o pessoal da própria saúde. As pessoas estão cansadas, os protocolos estão sendo quebrados. Já começamos a ter infecção cruzada dentro dos serviços, como foi o meu caso. Se houver o repique, isso terá que ser reestruturado”.
A Marco Zero Conteúdo procurou a assessoria de imprensa de João Campos no dia 4 de dezembro para ouvir o novo prefeito eleito. Porém, até o momento a reportagem não recebeu retorno. Deixamos aos nossos leitores a lista de perguntas enviadas:
A Marco Zero Conteúdo também procurou a Secretaria de Saúde do Recife através da assessoria de imprensa. Igualmente não teve retorno até o fechamento desta matéria. A reportagem deixa aqui a lista de perguntas que ficaram sem respostas:
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Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com