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Avenida Dezessete de Agosto, 2069, Poço da Panela: monumento à derrota nossa de cada dia

Marco Zero Conteúdo / 09/10/2020

Crédito: Cristiano Borba

Por Cristiano Borba *

O percurso entre Casa Forte e Monteiro, ao longo da Avenida Dezessete de Agosto, nunca me foi um caminho estranho. Desde criança, a margem sul da avenida – ou seja, a borda mais “urbana” do Poço da Panela – tem sido uma das linhas de calçada em que mais pisei ao longo da vida.

Justamente neste passeio, pouco depois da Rua dos Arcos, pouco antes da Fundação Joaquim Nabuco – e do seu Museu do Homem do Nordeste – esquadrinhado pela Avenida Doutor Seixas (esta, sem calçamento ou calçadas) e o Beco do Capitão (vulgo Rua Luiz Guimarães), fica o generoso terreno de mais de 1 hectare onde antes existia a Casa de Saúde São José.

O casarão e o conjunto hospitalar não eram edifícios luxuosos. Provavelmente, sumiam diante de seus vizinhos mais pujantes – estes que ainda hoje estão de pé no bairro, formalmente protegidos por lei ou pelo interesse de quem os possui. Não sei bem como a Casa funcionava enquanto equipamento de saúde, mas, certamente, não atendia às necessidades práticas dos novos casafortenses – chegados à região nas últimas duas décadas do século passado e, hoje, maioria dos moradores dos espigões ao redor.

Talvez, por isso, em 7 de outubro de 2009, quando o terreno foi limpo das construções da Casa de Saúde, ninguém chorou o novo vazio como uma perda significativa. O motivo da demolição era pouco certo, mas os boatos indicavam a chegada de um supermercado de marca multinacional. Naquele tempo ainda não havia sido dado o abraço na Tamarineira nem existia o Ocupe Estelita; muito menos o Jardim Secreto do Poço. Contudo, a sociedade casafortense-pocense já tinha à disposição a Lei de Imóveis Especiais de Preservação e também já havia – ironicamente – vencido a luta contra os altos gabaritos de novos espigões com a Lei dos Doze Bairros. Anos antes, pouco longe dali, no Centro, o prédio do colégio Marista já tinha sido melancolicamente demolido e dado lugar a mais uma grande loja de uma robusta rede atacadista local.

Portanto, se não fizemos nada quanto ao caso da Casa de Saúde, foi porque fomos ignorantes; ou porque fomos omissos. Se não, fomos somente mal-intencionados – ou simplesmente cruéis – com aquilo que não nos servia enquanto classe privilegiada. Em uma única tarde, os edifícios da Casa de Saúde foram ao chão; para tanto, bastaram tão somente uma retroescavadeira para pisotear os tijolos e algumas faixas listradas para isolar a obra e não deixar entrar nenhum transeunte mais curioso. Mas nem precisou tanto esforço, pois nem plateia houve para assistir ao suplício naquela calçada – nada de moradores das ruas laterais, nada de profissionais dos escritórios pŕoximos nem muito menos de funcionários públicos dos órgãos vizinhos. Os entulhos demoraram mais tempo para serem retirados do que durou o próprio ato de destruição.

A demolição da Casa de Saúde São José. Crédito: Cristiano Borba

A bem da verdade, em pouco tempo vieram manifestações de desagrado de moradores próximos que, provavelmente, viram tudo do alto de suas varandas. Preocupados com a paz e o silêncio que julgavam ter por direito, organizaram-se algumas reuniões junto à paróquia local e, de modo raro, os contestantes tiveram capital político suficiente para arrefecer este primeiro impulso empreendedor: o supermercado, misteriosamente, não veio. Assim também, não veio nenhuma outra ocupação do terreno, por qualquer motivo que fosse – nem de protesto, nem de necessidade. Em quase onze anos, a vegetação cresceu; árvores caíram após noites de chuva intensa de inverno e derrubaram partes dos muros – que rapidamente foram reerguidos pelos seus proprietários – sempre vigilantes, mas pouco visíveis. Na cidade, tivemos as justa batalhas pela Tamarineira, pelo Estelita, por casas modernistas e até contra colégios. Vieram projetos para um parque linear ao longo do Capibaribe e novos empreendimentos “urbanisticamente amigáveis” no Poço da Panela – tudo ao longo de três mandatos de dois prefeitos diferentes.

Otimisticamente, algumas especulações em trabalhos de conclusão dos cursos de arquitetura e urbanismo se arriscaram a sonhar algo diferente para o lugar – propostas de habitação, biblioteca, centro cultural. Ao final, nada de concreto vindo “do lado bom da força” foi posto em marcha. Porém, isso nunca se deu por falta de ciência do latente risco de uma transformação não desejada – os boatos de que algo grande viria pousar por ali a qualquer dia nunca pararam. Impossível não conjecturar: será que a hipótese de desapropriação pelos poderes públicos chegou a ser levantada, em algum momento, em alguma reunião de gabinete?

Crédito: Cristiano Borba

Agora, estamos nós em 2020, ano de plena distopia em tempos de pandemia e – enfim – o boato mais recente e mais provável toma corpo: a mesma rede atacadista que substituiu o colégio Marista, mais de quinze anos depois, volta a anunciar uma nova loja no nosso famoso terreno do Poço. Nos últimos tempos, a empresa tornou-se um ícone da cultura pop recifense – tem até uma fábrica de memes para as redes sociais. E ninguém pode acusar surpresa ou falta de aviso.

O projeto do edifício atual é apresentado corrigindo a falta de tato dos seus irmãos predecessores: além de pouca altura e recuos bastante razoáveis, promete não só a preservação da vegetação de grande porte ainda existente, mas também uma “relação responsável” com a rua – o café-lanchonete virá em forma de quiosque e, sendo externo ao grande corpo principal do monobloco, vai estar situado quase na esquina da Dezessete de Agosto com a Doutor Seixas (virão também as calçadas e o calçamento como pacote de mitigação?).

Nas suas defesas mais friamente racionais, a empresa proponente fala em geração de empregos; a Prefeitura, fervorosa aderente à proposta, aponta atendimento à legislação; e o senso comum, preguiçoso como de costume, retorna ao argumento de que é sempre melhor ocupar solo urbano com algo produtivo do que mantê-lo sem função “social”.

Democraticamente, contudo, é de se festejar que tenham emergido também as opiniões dissonantes e contrárias, ainda que tardias. Sem julgar aqui as motivações íntimas de cada ator desta “tragédia” que hoje se posiciona na oposição ao projeto, cabe igualmente ponderar sobre cada argumentação. Notamos que os mais passionais se arvoram no papel de protetores do “espírito do lugar” e consideram a chegada de um grande edifício comercial como uma mácula irreparável na pureza bucólica do bairro. Entrincheiram-se contra o invasor como se defendessem não um eventual interesse coletivo, mas a concepção pessoal que têm sobre os seus próprios quintais. Curiosamente, muitos desses, parecem nunca ter se importado com nenhuma questão semelhante que estivesse a acontecer em outros lugares da cidade, nem a qualquer outro concidadão; agora, porém, bradam: “não no meu quintal!”.

Por outro lado, os que escolhem a mesma linha racional dos proponentes-empreendedores apontam que, apesar dos seus direitos de livre iniciativa, e da parcela de verdade das suas falas desenvolvimentistas, trata-se aqui de um ente com inegável atratividade de demandas e de fluxos – principalmente os motorizados. O volume de carros particulares circulando, entrando e saindo, trará, sem dúvidas, um impacto danoso à cidade como um todo – já que essas coisas nunca são restritas a só um só quarteirão. Mesmo se equacionadas todas as demandas naturais de um grande centro de compras – lixo, esgoto, consumo energético, drenagem, déficit de carbono – sabe-se que essa tendência obviamente carregará consigo todas as externalidades negativas que já conhecemos quanto ao esgotamento das infraestruturas.

Ainda, como provável efeito colateral – e lembrando da experiência que já acumulamos sobre as nossas “queridas” e numerosas farmácias de rua – não é improvável imaginar que as partes restantes e “preservadas” do terreno – todas as superfícies de solo natural do projeto – poderão vir a se transformar rapidamente em grandes estacionamentos. É claro que essa tendência só se efetiva se nem a municipalidade e nem nós mesmos exercermos nosso dever de fiscalização nas etapas de luta que teremos pela frente. E aí é que está o cerne do nosso drama: queremos assumir essa responsabilidade de dar continuidade à guerra mesmo que a batalha seja perdida e o empreendimento seja construído?

O exercício cotidiano da urbanidade não é exatamente nosso maior predicado. Todos nós – técnicos, cidadãos, gestores – parecemos ter uma vocação natural para o esquecimento seletivo do que é do dia a dia, do ordinário. Somos atraídos pela chance de desempenhar os papéis dos grandes personagens – magos iluminados que, no último momento do desafio, quando tudo já está perdido e não há mais argumentos para qualquer volta, tiram uma carta da manga (que nem fazia parte do jogo) e chamam atenção mais para o gesto espetacular do que para os seus resultados práticos e reais. Eu, você e a grande maioria dos nossos conterrâneos somos até competentes em reconhecer e proteger aquilo que já é de notável consenso e que, muitas vezes, já está emotiva e institucionalmente assegurado. Mas, que pena: somos péssimos em nos antecipar e cuidar do que temos coletivamente logo aqui, do nosso lado, quando ainda temos tempo – e quando não é necessariamente no nosso quintal.

Diferentemente do Cais José Estelita ou do Hospital da Tamarineira – bens que, por menos interesse econômico que tivessem, ainda funcionam em alguma parcela – a Casa de Saúde São José foi totalmente perdida naquela tarde de outubro de 2009. Sobraram 1 hectare de solo, um punhado de árvores e a boa chance de aprendermos algo com a dor de mais uma perda não evitada a tempo. Mas essa oportunidade se diluiu na década seguintes, até aqui.

Considerando o histórico e a experiência, é quase certo que o que virá a ser edificado no terreno número 2069 da Avenida Dezessete de Agosto, Poço da Panela, agradará muito a alguns, e quase nada a outros. Tomara, porém, que, com mais peso e significado do que qualquer monumento ou bem tombado, esse novo objeto sirva para alguma coisa. Independente do abrigar e do nome que ganhar o novo edifício, proponho que seja já considerado como um bem ainda inédito no Recife: o Memorial da Eterna Busca pelo Tempo Perdido por Todos Nós – nós que, mais uma vez, choramos porque deixamos a cidade servir menos a quem a respeita e aprecia e muito mais a quem dela se aproveita.

Epílogo
No dia da destruição, ordinariamente, eu fazia aquele mesmo percurso de sempre – sentido cidade-subúrbio, retornando do almoço para meu, até então, ainda novo emprego. A nuvem de poeira subindo do terreno da Casa de Saúde São José me chamou a atenção. A morte anunciada estava em curso. Sem nem ter tempo de saber muito bem o porquê, tirei do bolso meu Nokia N95 e, de onde foi possível, fiz as fotos e o vídeo que acompanham esse texto. Na memória, a imagem que ficou foi menos dos tijolos e mais das paredes internas dos blocos hospitalares, então expostas, cheias de desenhos de personagens de revistas em quadrinhos ingenuamente mal copiados. Elas foram postas abaixo com muito mais facilidade e em bem menos tempo do que o que deve ter sido necessário para se fazerem aqueles desenhos.

Agradecimentos a Sylvia Couceiro e a Túlio Velho Barreto

* Arquiteto e urbanista, doutor em desenvolvimento urbano, pesquisador, professor e servidor público. Foi membro fundador do grupo Direitos Urbanos e conselheiro nos Conselho de Desenvolvimento Urbano e Conselho da Cidade do Recife, e no Docomomo Brasil. Colabora frequentemente em publicações e em produções audiovisuais com temas ligados à cidade e à arquitetura.

AUTOR
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