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Carlos do Rego Maciel, Anísio Teixeira e a ditadura

Marco Zero Conteúdo / 02/08/2021

Crédito: Cedoc/Arquivo Central UnB

por Evson Malaquias de Moraes Santos*

Começo dizendo que Anísio Teixeira foi duplamente vítima da ditadura: cassado nas instituições que dirigia e, provavelmente, assassinado pela ditadura. Mais adiante voltarei a esse ponto.

Propaga-se nos “corredores” (das redes sociais), timidamente, um discurso em defesa da permanência do nome do interventor do MCP, atual denominação do auditório do Centro de Educação (CE), associando-o a laços com o grande educador e democrata Anísio Teixeira. Ampliou-se esse discurso quando a Marco Zero Conteúdo, pela escrita de Inácio França, corretamente, informou que havia uma troca de cartas entre Anísio e Maciel. O setor conservador do CE adorou tal divulgação, pois, em seu entendimento, reforçava o discurso do “corredor” para a permanência do nome.

Estou dando ênfase ao “corredor”, pois tal discurso não é assumido publicamente. Curiosamente, aqueles docentes que resistem à mudança, discurso que precisamos de mais pesquisas, estudos e debates, não produzem um texto para o público. Silêncio profundo.

A reflexão aqui proposta é um esclarecimento na tentativa de demonstrar a improcedência na associação do nome de Carlos Maciel a Anísio Teixeira, tendo em vista a finalidade acima exposta, pois é de natureza teórico-política diferente. Ademais, o que é mais importante: Anísio foi vítima da ditadura e Carlos Maciel aderiu facilmente ao golpe.

Antes de demonstrar a grandeza de Anísio Teixeira no campo teórico, gostaria de chamar a atenção de que há uma dimensão inconsciente nessa argumentação: a dificuldade de defender um nome da ditadura, apela-se para um recurso que não identifica qualidades no seu objeto de defesa, mas na qualidade que o cerca (ou seja, Anísio).

Logo, Carlos Maciel não vale por ele mesmo, mas sim pelo valor de Anísio. Outro aspecto a destacar é que, talvez, se esteja inconscientemente valorizando a distinção do intelectual: acima de todos os mortais. Podem ser interventores, pois há algo diferencial em vocês.

Anísio Teixeira sempre foi um democrata em seus princípios filosóficos. Era um defensor da intervenção estatal, como Paulo Freire, mas municipalista, pois defendia a descentralização. Ambos lutavam por uma “universidade autêntica”. Tanto a intelectualidade de esquerda quanto a de direita defendiam intervenções estatais. Acreditavam que com a industrialização seriam abertas possibilidades democráticas – as da direita não, pois era um intervencionismo modernizante e anticomunista. A pesquisadora Vera Canuto classifica o modelo da ditadura na Universidade do Recife (hoje, UFPE) de “burocrático-autoritário” e o de João Alfredo “democrático-modernizante”. Gadiel Perruci identifica na Universidade do Recife uma “oligarquia” com aspirações democráticas a partir da criação da Adufepe (1979).

Anísio mantinha contatos com Gilberto Freyre, docentes da USP, fundadores da Anpae (fundada em 1961, hoje, Associação Nacional de Política e Administração da Educação). Entre aqueles fundadores da Anpae, prof. Carlos Mascaro foi braço direito da Secretária de Educação de São Paulo, e Ester Ferraz, posteriormente, Ministra da Educação (1979-85), no governo João Batista Figueiredo. Contudo, Anísio nunca apoiou a ditadura, cujo modelo era verticalizado, centralizado e autoritário.

Anísio sempre manteve contato com várias forças intelectuais, pois ele era um homem público. Presidente da Associação Brasileira de Educação na década de 30, também foi o criador da Universidade do Distrito Federal, sendo o seu primeiro reitor. Em 1946, vivendo em Londres e Paris, tornou-se conselheiro de educação superior da recém-criada Unesco, órgão das Nações Unidas voltado para a educação, ciência e cultura. Em 1955 criou o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e os Centros Regionais de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco. De 1952 a 1964, Anísio Teixeira foi diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Anísio nunca foi um revolucionário. Acreditava nas instituições burguesas, apesar de sua desconfiança com a experiência brasileira.

Não se pode esquecer que dias após o golpe da ditadura civil militar, em abril, Anísio Teixeira, reitor da Universidade de Brasília (junho de 1963 a abril de 1964) – fundador da Universidade de Brasília, juntamente com Almir de Castro, sendo seu vice-reitor, e diretor-geral do INEP (3 de junho de 1952 a 27 de abril de 1964), foi afastado das suas funções. Luiz Antonio Cunha informou, no livro A universidade reformada: o golpe de 1964 e a modernização do ensino superior, que todo o Conselho da Fundação da Universidade de Brasília foi afastado por decreto presidencial. Constava uma lista de professores que deveriam ser presos, entre eles Oscar Niemeyer. O professor Zeferino Vaz, primeiro reitor dessa universidade na ditadura, assumiu a reitoria e demitiu imediatamente 13 docentes. Na Comissão da Verdade da UnB (2015), Anísio Teixeira foi “referido nos documentos [órgãos de informação], por exemplo, como um intelectual comunista e má influência para alunos e professores”.

A Anpae foi criada no dia 11 de fevereiro de 1961, durante o I Simpósio Brasileiro de Administração Escolar. Anísio Teixeira participou dele com um texto que tinha como título “O que é administração escolar”. O texto tratava sobre como não deve ser a escola, como é o caso da atual: burocrática, hierárquica e cumpridora das normas hierárquicas da educação proferidas pelos superiores (como foi na ditadura). O texto alertava para a situação do Brasil e fazia uma comparação com os EUA, apresentando uma dualidade: “Ou nos organizamos a ponto de criar uma espécie de cérebro coletivo das organizações, ou as iremos mecanizar, num grau que talvez nem a América do Norte as tenha mecanizado”. Anísio abominava o modelo norte-americano. A ditadura foi beneficiada com o modelo norte-americano.

Dominava um imaginário social na época para uma parcela de “democratas”, uma crença na industrialização. O nacionalismo casava bem com o industrialismo e a democracia. O problema era que o Brasil se encontrava em “transição” (não se esquecer de JK e seu slogan “50 anos em 5” e da “Guerra Fria” em seus inícios, pós-Segunda Guerra Mundial), raciocinava Anísio Teixeira. Ele observava que “mais fortes, no comando do Brasil, são as forças autoritárias ou as forças desaparelhadas de doutrina do nacionalismo”, já que a “nascente classe média, cuja doutrina do indivíduo, da competição individual e do pluralismo econômico, político e social poderia servir de lastro ideológico ao movimento, não tem conseguido exercer influência que se possa considerar importante”. A sua referência era o liberalismo e o nacionalismo, mas já que seu senso crítico era aguçado, reconhecia que a burguesia, pela sua história no Brasil, não seria a guardiã dos esteios democráticos e nem a responsável pela massificação e qualidade da educação.

Sobre a democracia, argumentava que sua tarefa era “salvaguarda[r] a sua relativa independência individual”. Esta “passou a ser também a sua luta por uma organização do trabalho, em que não se veja transformado em engrenagem pura e simples de uma máquina econômica”. Em críticas ao socialismo (Estado) e ao capitalismo (Trabalho), e em defesa de um liberalismo democrático, ele sugeria que devia se evitar essas “organizações monstruosas” (o que foi a ditadura), “aberrantes da dignidade humana, […] ou só permiti-las se e quando não ponham em perigo essa imprescritível qualidade de respeito pelo indivíduo, que é a marca de tôda saudável organização humana”. Era adepto do pensador John Dewey, que tinha na democracia e liberdade suas referências.

Em 1967, publicou outro texto denominado “Aspectos da Reconstrução da Universidade Latino-Americana”, que discute a autonomia das universidades latino-americanas. Tudo o que a ditadura não permitia.

Apesar de defender o desenvolvimentismo, a ciência e o progresso, Anísio Teixeira não abandonou a democracia de sua teoria ou noções analíticas em nome desses ideais, mas andou simultaneamente junto com eles, alimentando-os mutuamente e, ao mesmo tempo, mantendo a autonomia de cada um deles.

Anísio Teixeira, pela sua trajetória profissional e política, se assemelhava muito mais a Paulo Freire do que a Carlos Maciel. Ambos não tinham semelhanças alguma. Carlos Maciel nunca se preocupou com discussões sobre democracia, autonomia, liberdade de criação. Ele se preocupava, entre quais, com política educacionais macro para implantação das políticas dos governos – em particular a do segundo grau. Carlos Mascaro da Anpae também. Ele, Anísio, nunca deixou de se comunicar com todos.

Ora, a função de Carlos Maciel no Movimento de Cultura Popular foi fazer uma “limpeza”. Ele não estava lá por que tinha um Currículo Lattes (o terror dos docentes e estudantes) ou passou por concurso. Anísio Teixeira foi vítima dessa limpeza.

O golpista civil deputado João Calmom defendeu que a “limpeza no país tem que ser total” (DP, 04/04/64, p.1). O Diario, em seu editorial, clamou pela “Operaçao limpeza:… cumpre agora proceder a higienização da vida pública”. O Diario invocou o governador Paulo Guerra para fazer a limpeza na Secretaria de Educação, no MCP e em vários outros órgãos que eram “ninhos de agitação a serviço da cubanização” (DP, 04/04/64, p. 4). Um outro editorial do Diario classificou o MCP como um “cancro pestilento” (DP, 07/04/64, p.4). A Delegacia do Trabalho (IAPI) também sofreu da “Operação limpeza” (DP, 04/04/64, p.5). Até então, do dia 01/04 ao 4/04, 20 órgãos sindicais estavam sob intervenções (DP, 04/04/64, p.5). O MCP foi acusado de receber milhões e pagar uma ninharia às professoras (DP, 07/04/64, p. 7), e de ter comprado máquinas de costuras para fabricar “fardas” para comemoração comunista (DP, 08/04/64, 7). Em sua posse, Carlos Maciel destilou seu ódio aos “comunistas”: “Aqui – acentuou – se destilava o álcool ideológico, o veneno ideológico que vinha impestando a atmosfera que respiramos. Nosso programa é o de restaurara densidade administrativa fazendo uma política realmente democrática. […] venho disposto a fazer nesta casa uma democratização da cultura e a democratização da educação” (DP, 08/04/64). A campanha contra o MCP era fortíssima antes e aumentou muito após o golpe em seus primeiros dias. O seu discurso na posse indicou o caminho em consonância à ditadura.

Como bem disse a Comissão de Direitos Humanos da UFPE em defesa da retirada do nome do auditório e em determinada passagem dos seus argumentos, “a Universidade do Recife, hoje UFPE, os seus quadros profissionais e estudantis, foi duramente atingida pelo golpe e intervenções. Começando pelo prefeito e professor dessa universidade, Pelópidas Silveiras, destituído da prefeitura, considerada “vaga” pela câmara dos Vereadores, assumindo em seu lugar, o seu vice, Augusto Lucena”. Docentes, servidores e estudantes da Universidade do Recife (hoje, HFPE) foram vítimas desses governos sucessivos que ele apoiou e ajudou. Sete estudantes da UFPE foram assassinados pela ditadura.

Anísio Teixeira perdeu mais do que os cargos dos quais foi afastado. Foi provavelmente assassinado pela ditadura de 64 que Carlos Maciel serviu. Anísio Teixeira foi uma de suas vítimas, conforme diz a página de Documentos Revelados:

Durante as buscas, a família e os amigos depararam-se com uma notícia preocupante: Anísio estava detido em dependências da Aeronáutica. A informação chegara, de forma separada, a dois amigos do educador: o escritor e ex-governador da Bahia Luiz Viana Filho e o poeta mineiro Abgar Renault. A fonte: o general Syzeno Sarmento, citado por Renault.

Na época, o comandante da Aeronáutica no Rio era o brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, aquele que em 1968 tinha planejado explodir o gasômetro na hora do rush e culpar “os comunistas” pela mortandade. Menos de dois meses antes do sumiço de Anísio, o ex-deputado Rubens Paiva havia sido levado para a Aeronáutica e entrado para o rol de desaparecidos políticos. Como Rubens Paiva, Anísio incomodava a ditadura.

Dois dias depois do desaparecimento, o corpo de Anísio foi encontrado no poço do elevador do edifício onde deveria ter comparecido para o almoço. A suspeita é que ele tenha sido levado para o local, depois de sequestrado a caminho do edifício e morrido na tortura. Desde o primeiro momento, no entanto, a polícia tratou a morte como “acidente”.

Uma das evidências contrárias à versão de acidente é que o corpo não poderia ter caído do alto, pois não passaria entre duas vigas separadas entre si por cerca de 20 centímetros. Entre os que estudaram e contestaram o caso está o professor João Augusto de Lima Rocha, da Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia, autor do livro “Anísio em Movimento”.

A Comissão da Verdade Anísio Teixeira (2015), da UnB, relata que:

O acadêmico Afrânio Coutinho e os médicos Domingos De Paula e Francisco Duarte Guimarães Neto presenciaram a necropsia do corpo de Anísio e relataram que o legista descreveu “duas grandes lesões traumáticas no crânio e na região supra clavicular, que seriam incompatíveis com a queda” e que poderiam ter sido causadas por “um eventual instrumento cilíndrico, provavelmente de madeira”. A autópsia teria sido interrompida por dois policiais que chegaram ao local afirmando que o educador havia morrido em decorrência de acidente no elevador (p. 293, 294).

Várias outras situações reforçam, e as quais não irei expor aqui, a grande possibilidade de Anísio Teixeira ter sido assassinado. O professor e pesquisador João Augusto de Lima Rocha lançou pela Edufba, a Editora da Universidade Federal da Bahia, a obra intitulada Breve história da vida e morte de Anísio Teixeira – Desmontada a farsa da queda no fosso do elevador.

Portanto, em sua memória, é uma afronta compará-lo a Carlos Frederico Maciel por simples referência a cartas amigáveis e profissionais de um homem público e atuante como ele. Aqueles que defendem a manutenção do nome, recorram a argumentos sólidos, honestos e convincentes. Não fiquem atirando para todos lados com o objetivo de que alguma bala acerte o alvo.

*Professor Titular do Departamento de Administração Escolar e Planejamento Educacional do Centro de Educação da UFPE. Formado em História pela UNICAP e doutor em Sociologia pela UFPE

AUTOR
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