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Celebrações e inquietações dos 30 anos do ECA

Marco Zero Conteúdo / 16/07/2020

Crédito: Raoni Libório/Unicef

por Evaldo Rodrigues de Araújo* e Gisele Vicente Meneses do Vale**

Há exatos 30 anos, no dia 13 de julho de 1990, entrou em vigor a Lei 8.069/1990, o nosso querido aniversariante Estatuto da Criança e do Adolescente. Apesar das grandes dificuldades e desafios enfrentados ao longo deste tempo e que ainda persistem neste momento, sobretudo neste contexto de pandemia, não temos a menor dúvida de que é um dia para celebrar, mas também para refletir de forma crítica e propositiva.

Nesse contexto, o Estatuto, comumente chamado de ECA, não nasceu do acaso, ele é fruto de lutas da sociedade civil organizada, juristas, militantes e estudiosos das mais diversas áreas, organizações e instituições de Estado, Ministério Público, Conselhos Tutelares, entre outras instituições e organizações. Desde a década de 70 e com mais força na década de 80, num contexto de ditadura militar e, portanto, negação de direitos, movimentos em defesa da infância buscavam e lutavam por direitos. Vale destacar o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, o qual teve um papel histórico e fundamental na construção do nosso atual arcabouço jurídico, sendo bastante marcante o encontro em Brasília.

Na onda e ímpeto redemocratizantes dos anos 80 do século passado, pela mobilização e força da sociedade civil organizada, foi possível, já na Constituição de 1988, a “Carta Cidadã” introduzir o artigo 227: “Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão“.

Tal artigo retro mencionado é norteador de toda legislação nacional dos direitos da criança e adolescente e tem total convergência com a Convenção da ONU sobre os Direitos das Crianças e com o vindouro Estatuto da Criança e do Adolescente.

Não há dúvidas que o ECA trouxe novos paradigmas, princípios essenciais para garantia dos direitos do público infanto-juvenil. Diferentemente do Código de Menores (1979) e legislações anteriores, o atual Estatuto passou a enxergar as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, detentores de todas as garantias constitucionais.

Trocando em miúdos, o Estatuto da Criança e do Adolescente, seguindo a perspectiva internacional, visou romper com esse espectro, seguindo, inclusive, o espírito constitucional de restauração de princípios democráticos e de expurgo autoritário, sendo inspirado no desejo de restabelecimento de leis e instituições democráticas e dos direitos do cidadão.

Paradoxalmente, porém, o número de adolescentes privados de liberdade cresce:de acordo com dados do Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), realizado em 2018, o país tem mais de 26 mil adolescentes em unidades de restrição e privação de liberdade. Desse total, os delitos de roubo e tráfico de drogas são as principais causas de internação.

Notadamente, a medida de internação é a principal ferramenta de resposta à prática de atos infracionais, isso ocorre porque as práticas autoritárias atuais derivam de um ranço da cultura tutelar – menorista que ainda insiste em perdurar.

Não obstante isso, o ECA reconheceu as crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento, demandando, portanto, políticas públicas e garantias específicas por sua peculiar situação de pessoa em desenvolvimento e não como “adultos em miniatura” como era a perspectiva anterior. Insta pontuar o paradigma da proteção integral, ponto central do ECA, esculpido em seu artigo 1º “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”.

Com o advento das citadas legislações e vigência de novos paradigmas e realidades jurídicas, urge a necessidade de efetivação desses direitos. Neste intuito, o Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda) editou a Resolução nº 113/2006 cujo objetivo trata da institucionalização e fortalecimento do sistema de garantias de Direitos da Criança e do Adolescente. Em suma, tal resolução visa articular e integrar as instâncias públicas e a sociedade civil, ou seja, sistematizar e dar efetivação ao arcabouço jurídico da proteção integral.

Diante do exposto, podemos concluir que o Estatuto da Criança e do Adolescente é uma conquista democrática de toda a sociedade brasileira e, assim, faz-se necessário e imprescindível comemorar seus 30 anos. Mesmo diante de todas as dificuldades vividas diariamente e intensificadas de forma exponencial com a pandemia, precisamos refletir e buscar a construção de um caminho que nos leve à efetivação e garantia de direitos evocadas ao longo de todo o texto desse marco legal.

A pandemia do novo coronavírus, trouxe à baila as desigualdades sociais de nosso país e expôs a dura realidade das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Praticamente todos os índices de violência e violações de direitos cresceram, assim como diminuiu o número de denúncias, revelando, portanto, a sistemática diminuição ou até mesmo esvaziamento de políticas públicas. Nesse quesito, as denúncias de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes cresceram, todavia as políticas de prevenção e combate encontram-se ainda mais restritas e incapazes de sanar essa problemática.

Outrossim, a pandemia e as insuficientes e ineficazes medidas adotadas pelo Estado brasileiro, o desemprego e a acentuada queda na renda acirra ainda mais os conflitos familiares e, por conseguinte, quem sofre mais são as crianças e adolescentes, dadas suas especificidades e demandas.

E mais: o cenário já era negativo antes da pandemia. Em 2016, a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, passou a restringir o investimento público e assim o será pelos próximos 20 anos. Evidentemente, áreas como, educação, saúde e assistência social sofreram e sofrerão cortes orçamentários significativos, o que afeta o desenvolvimento das crianças e adolescentes de forma certeira.

Salienta-se, ainda, o princípio essencial e norteador dos direitos da criança e do adolescente, isto é, o da prioridade absoluta, segundo o qual toda política de Estado, deve ter esta área e público como prioritários na definição e execução de suas políticas e, portanto, na definição e destinação de seus recursos. É de se lamentar, que desde 2016 e de forma mais acentuada no atual governo, que os recursos estão sendo cortados nas áreas relacionadas à infância e juventude e toda assistência social.

Caso esse quadro continue, e isso é provável, faltarão recursos aos municípios para a execução de serviços elementares e programas de atendimento. Vale lembrar que o atual Presidente da República, já afirmou categoricamente, ao arrepio da lei, que o ECA deveria ser ‘rasgado e jogado na latrina’.

Nesse sentido, invariavelmente, o quadro pós pandemia será de desemprego, crescimento da informalidade no mercado de trabalho e uma desigualdade social mais profunda. Desse modo, é imperativo o investimento público e como dito, deve ser prioridade a garantia de recursos para execução de políticas públicas para promoção dos direitos das crianças e adolescentes.

Por fim, sublinhamos que é essencial celebrarmos este dia e semana em que o ECA completa 30 anos. Não obstante, é urgente refletirmos e lutarmos contra todo tipo de violação de direitos e pela efetivação e garantia da proteção integral, sem nenhum direito a menos, tampouco retrocesso.

O ECA é uma norma legal que aponta para o tipo de sociedade que queremos e por isso não podemos abrir mão de sua defesa e efetivação. Hoje é o dia de exaltar a cidadania de nossas crianças e adolescentes e, sobretudo, lutar por direitos!

*Evaldo Rodrigues de Araújo é advogado, membro da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/PE, pesquisador e membro do Grupo de Pesquisa “Direito, Economia e Política” da UFPE.

**Gisele Vicente Meneses do Vale é advogada, pesquisadora em Criminologia Crítica, mediadora extrajudicial

AUTOR
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