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Censura? Caixa Cultural cancela espetáculo infantil no Recife

Maria Carolina Santos / 09/09/2019

Foto: Divulgação

Faltavam cinco minutos para levantar a cortina da segunda sessão do espetáculo infantil Abrazo no sábado passado (7), da companhia potiguar Clowns de Shakespeare, quando funcionários da Caixa Cultural do Recife informaram aos artistas que a peça estava cancelada. A decisão, foram informados, havia vindo “de cima”. Atônitos, os oito integrantes da companhia que fazem parte do espetáculo ainda esperaram algumas horas até que um representante do jurídico da Caixa aparecesse e desse uma desculpa genérica para o cancelamento: quebra de contrato.

Lá fora, uma fila de adultos e crianças. Sem explicar os motivos a quem estava na fila, a produção da Caixa Cultural do Recife apenas devolveu o dinheiro dos ingressos. Quem insistiu em uma explicação, ouviu que foi por conta da “logística”. A peça, que teve apenas uma sessão, seguida de uma roda de conversa, é baseada no Livro dos Abraços, de Eduardo Galeano e tem roteiro assinado por César Ferrario.

Em vídeos e textos publicados nas redes sociais, o diretor do espetáculo, Marco França, classificou o cancelamento como censura. “Uma censura travestida com argumentos jurídicos. Vivemos um momento de barbárie no país, onde a verba pública para pesquisa e educação são cortadas, onde livros são censurados, onde artistas estão sendo perseguidos e tendo suas obras censuradas. Não nos calarão. Enquanto houver espaço para falar, estaremos aqui, denunciando”, afirmou.

Em nota divulgada hoje, a companhia Clowns de Shakespeare evita falar em censura. Isso porque a mesma desculpa genérica dada no dia do cancelamento, se repetiu em comunicado divulgado à imprensa pela Caixa e também ao grupo nesta segunda-feira (9). Passados dois dias do cancelamento, a Caixa simplesmente não deu mais informações. “Falaram em quebra de contato, mas não nos disseram o motivo. Teoricamente, tudo transcorreu normalmente. Após a primeira sessão, houve uma roda de conversa (com o público), com perguntas de ordem técnica e do conteúdo do espetáculo. Falamos sobre o momento que estamos vivendo no Brasil. Não houve nada fora do contexto”, explicou em entrevista à Marco Zero um dos fundadores da companhia, Fernando Yamamoto.

O grupo afirma na nota que solicitou à Caixa Econômica o parecer jurídico e a decisão administrativa relativos à rescisão, “com detalhamento para que possamos analisar e nos posicionar apropriadamente sobre o caso”.

O espetáculo Abrazo
A sinopse diz que “num lugar em que não é permitido abraçar, personagens atravessam um quadrado contando histórias de encontros, despedidas, opressão, exílio e, porque não, de afeto e liberdade”.

Não há nenhuma fala no espetáculo. A história é narrada por meio de uma trilha sonora especialmente composta para as cenas e com o vídeo de animação, além do trabalho dos três atores em cena. “É a segunda parte da trilogia que compõe o projeto de pesquisa latino-americano, que trata de repressão, de ditadura e censura, concebida no contexto do golpe militar de 1964”, explica Yamamoto.

Além das três sessões que foram canceladas, o grupo também faria uma oficina no próximo final de semana. No primeiro semestre, a Caixa Cultural nãorecebeu espetáculos. Abrazo, que tinhaindicação livre, foi o terceiro do ano. “Peças lúdicas, com uma pesquisa e que mexem com questões simbólicas, raramente são encenadas noRecife. O que me deixa enraivecida é que meu filho tinha criado expectativa para ver a peça, eu queria ter a oportunidade de discutir as questões do espetáculo com ele, e esse nosso debate foi negado. Alguém viu a peça e censurou. Se fosse conteúdo para adulto, já seria péssimo, mas conteúdo para criança é muito pior. É interferência na formação das crianças”, critica a professora universitária Mariana Nepomuceno, que levou no domingo o filho de quatro anos para ver o espetáculo cancelado.

Desde o final do ano passado, a Caixa Cultural sofre com atrasos nos pagamentos aos produtores e atraso também nos editais. De acordo com a Associação Brasileira de Gestão Cultural, quando questionada sobre os atrasos nos pagamentos, a Caixa enviava aos produtores um e-mail padrão que afirmava apenas que a instituição “está em processo de definição do Plano Integrado de Comunicação, Marketing e Patrocínio para 2019, os contratos novos estão temporariamente suspensos”.

O resultado para ocupação em 2019 foi divulgado apenas no final de julho. Foram selecionados 150 projetos artísticos entre 4.554 inscritos. Além do Recife, a peça Abrazoseria apresentada na Caixa Cultural de Curitiba, no mês de dezembro. Pelo edital, as produções arcam com custos como transporte, alimentação e hospedagem, mas a Caixa reembolsa os produtores em parcelas. Geralmente, as parcelas são pagas no decorrer da temporada. O primeiro reembolso é feito dez dias depois da estreia.

Para conseguir levar a peça para o teatro da Caixa Cultural, o grupo Clowns de Shakespeare participou do edital de ocupação. Foram enviados sinopse e ficha técnica da peça, além de fotos e vídeos com trechos da encenação. O grupo receberia R$ 220 mil pelas apresentações e oficinas no Recife e em Curitiba. O investimento total da Caixa com o edital de 2019 seria de R$ 17,6 milhões.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com