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Chegou a vez de Salvador enfrentar as sombras dos espigões à beira mar

Novonor, antiga Odebrecht, quer construir três torres na charmosa praia do Buracão

Marco Zero Conteúdo / 01/03/2024
Foto colorida de um grupo de pessoas em uma manifestação ao ar livre. Elas estão vestidas predominantemente de branco e segurando um grande banner que diz: “ESPIGÕES? AQUI NÃO! SOS BURACÃO”. As pessoas estão protestando em uma rua arborizada com edifícios ao fundo. A imagem é iluminada pelo sol.

Crédito: Kléber Silva

por Júlia Moa

“Não construir prédios em lugares de preservação ambiental, é sobre isso que fala [no trecho da música Lucro] a especulação imobiliária, é bem mais simples do que parece. Temos que ficar com os olhos abertos. Pelo direito da nossa cidade. Não faremos carnaval debaixo de prédios e sim na frente do mar. Tirem as construções da minha praia, eu não consigo respirar”, foi o discurso fervoroso de Russo Passupuso minutos antes de agitar uma multidão em volta do trio elétrico Navio Pirata, da Baiana System, na folia deste ano. 

No mesmo local, o nobre Largo do Campo Grande, região central de Salvador, só que nos idos de 1980, outra figura provocadora também expressou críticas em relação ao assunto. A arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, conhecida por diversos projetos na cidade, sugeriu a um repórter que os espigões (prédios altos) erroneamente erguidos ali, que ainda hoje obstruem a vista do mar e bloqueiam a circulação do ar, deveriam ser demolidos.

A indignação de Russo veio a calhar. Um pouco antes dos ritos carnavalescos ecoarem pelas ruas, a prefeitura municipal abriu um leilão para vender 40 terrenos de áreas verdes, distribuídos por quase 10 bairros da cidade, com lances iniciais de R$ 10 milhões. Pessoas ligadas ao ativismo urbano-ambiental tentam barrar rapidamente os eventos que estão previstos para acontecer entre os dias 7 e 15 de março.

A discussão, quando o assunto é a resistência dos moradores contra a indústria da destruição que há décadas tenta instaurar na capital a verticalização predatória em diversas localidades, não finda. Numa mesma receita de bolo – grandes construtoras envolvidas, interesses econômicos e políticos declarados, e nomes de figuras públicas comprometidas – a fatia indigesta vai para a população que precisa mover estratégias para tentar frear a máquina de lucro. A mesma engenhoca presente na canção de Passapusso quando ele ironiza: “[Salvador], você pra mim é lucro”.

A dor de cabeça atual parece até o roteiro do filme Aquarius, dirigido pelo cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho. Acompanhem: na mesma época em que Bo Bardi cutucava o poder público soteropolitano com suas opiniões embasadas, lá no final da década de 1980, uma pacata rua sem saída, a Barro Vermelho, no boêmio bairro Rio Vermelho, encantava os residentes com a vista para o mar. De lá para cá, tudo mudou. A pequena e charmosa praia do Buracão começou a atrair não apenas turistas, mas estabelecimentos comerciais com seus altos decibéis, que tiram o sossego dos vizinhos além de causar tumulto no tráfego, e a construtora Novonor (anteriormente conhecida como Odebrecht). O plano deles é erguer três torres entre 16 e 18 andares em dois terrenos de frente para a praia, desrespeitando diversas leis.

Projeção do sombreamento sobre a praia do Buracão. Crédito: Reprodução

O economista Miguel Seheb conta que, inicialmente, havia somente casas residenciais ao lado da praia e edifícios no outro lado da rua. Então, surgiu um prédio com três andares para cima e três para baixo, respeitando os limites de nove metros de altura a partir do cordão da calçada. Mais tarde, outro prédio no final da rua começou a ser edificado, fechando o acesso à praia aos moradores e frequentadores dos bairros vizinhos. Com essas novas edificações e o risco da verticalização irregular dando as caras no ambiente, foi formada há dez anos a Associação dos Moradores do Barro Vermelho, que hoje totaliza atualmente 334 pessoas.

Sempre com os radares ligados, em 2023, a turma da Associação decidiu investigar por conta própria uma movimentação suspeita. Foi descoberta a venda (por aproximadamente 16 milhões) de três terrenos, dois unificados, nos quais as casas ali erguidas teriam sido propositalmente degradadas para obter vantagens nos índices de construção permitidos. Ou seja, uma nítida intenção de não cumprir os padrões estabelecidos pela legislação para regular e controlar aspectos específicos relacionados à implantação de edifícios em determinadas áreas.

Em duas certidões de ônus reais acessadas pela reportagem, é possível verificar os detalhes dos imóveis, assim como a venda e compra. Não foi difícil para os moradores verificarem que o endereço do comprador é o escritório da Novonor em Salvador.

“É um absurdo o que está ocorrendo, eles nunca nos procuraram para conversar. Estamos muito preocupados. Trata-se de uma empresa com um sério histórico de corrupção e que é a mesma por trás da mineradora Braskem, envolvida no enorme desastre ambiental em Maceió, que prejudicou centenas de famílias ao deixá-las sem ter onde morar”, desabafa Miguel ao relembrar o histórico de falta de responsabilidade e consideração do grupo empresarial. Alarmados com o fato, os integrantes da associação de moradores criaram uma nova frente, o movimento apartidário SOS Buracão, que visa reunir todos os interessados na proteção da vizinhança.

A ruína da praia

Daniel Passos, artista visual e especialista em Gestão e Urbanismo Sustentável pela Universidade Erasmus de Rotterdam, nos Países Baixos, é figura assídua no Buracão há 20 anos. Para ele, a construção dos espigões significa a ruína da praia, que possui um ótimo potencial para a realização de atos culturais e esportivos, além de fomentar o comércio local. Outro ponto que Daniel destaca é a relutância do prefeito Bruno Reis (União Brasil) em executar a revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), que atua junto com a Lei Orgânica do Município, uma atitude estranha diante das conjunturas. Lembrando que em breve ocorrerão as eleições municipais.

“É neste instrumento que obtemos informações sobre o que, como e onde se pode construir. Considero fundamental ao PDDU que exista a participação pública, como a que o SOS Buracão faz. A confusão se dá quando temos uma população engajada e participativa, procurando diálogo e tentando sistematicamente fazer essas pontes de conversa, enquanto os órgãos institucionais permanecem com uma cortina de fumaça e ausência de respostas diretas”, explica Daniel.

O que se sabe até agora é de um empreendimento da Novonor que está em vias de ser validado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur). Entretanto, por qual PDDU? O atual, ultrapassado, ou o novo, que ainda não existe?

Caso fosse feita a revisão, garante Passos, uma equipe organizada como o SOS Buracão iria participar ativamente das audiências públicas para limitar o gabarito dos terrenos. Outro tópico seria a criação dos portais de transparência para que os cidadãos possam ficar cientes das transformações urbanas que virão dos empreendimentos. Sem essa clareza, o debate e defesa dos interesses coletivos na cidade se mantêm desiguais e o poder público, junto ao privado, passam a atuar com os próprios interesses. “É dessa forma que as possíveis 54 unidades habitacionais de luxo poderão destruir uma praia utilizada por mais de mil pessoas e comerciantes com décadas de atuação”, avalia Passos.

O movimento SOS Buracão, em quase um ano de existência, já promoveu três manifestações, participou de quatro audiências públicas e contabiliza mais de 6 mil assinaturas na petição para arquivar esse esquema prejudicial. O presidente da Câmara Municipal, vereador Carlos Muniz (PSDB), criou um projeto de lei que torna de utilidade pública os dois terrenos onde a Novonor pretende firmar as três torres imobiliárias. É dele a autoria do PL n.º 318/2023, que pretende conceber um estacionamento público para permitir melhor frequência à praia e a implantação de uma praça onde todos possam contemplar a bela paisagem. Resta a aprovação.

Impactos ambientais do sombreamento

Os prejuízos ambientais que a construção dos espigões acarreta são vastos. A especialista em meio ambiente, Socorro Colen, antecipa que as máquinas e equipamentos pesados trabalhando numa rua estreita e sem saída podem gerar poluição sonora e trepidação do solo. Isso causa desequilíbrio ao ambiente marinho, pois no Buracão aparecem com frequência baleias jubartes, tartarugas para fazer a desova e variadas espécies de peixes. Tal mudança no ecossistema talvez não seja possível recuperar.

“Construir prédios altos e luxuosos às margens da praia, colados na areia, resulta em zonas de sombreamento na areia com consequente geração de doenças ocasionadas por microorganismos que, se tivessem luz solar, seriam dizimados. A areia seca contaminada por fezes de animais (cães e gatos) é capaz de transmitir parasitas e larvas, como o bicho geográfico. Ao revolver a areia e expor ao sol, eliminam-se os microorganismos. Doenças como diarreias, gastroenterites, alergias na pele, parasitoses e viroses são eliminadas pelos raios solares”, demonstra Socorro.

Outro problema é que os edifícios altos interferem nas correntes marítimas que fazem a regulação térmica de Salvador, além de saturar os sistemas de água e esgoto, bem como provocar o desequilíbrio no ecossistema. E o vento, aliado para refrescar o calor tropical, será barrado, chegando com dificuldade aos habitantes que ficam atrás, aumentando a sensação térmica.

Dados de uma análise feita pelo MapBiomas em 2021, a partir de imagens de satélite, mostram que entre 1985 e 2020, mais de 12 mil hectares foram perdidos para a construção de empreendimentos, diminuindo as paisagens litorâneas no Brasil. Esse valor equivale à área de 30 Copacabanas – o bairro carioca contém 410 hectares.

Moradores do bairro Stella Maris igualmente aderiram às causas coletivas. A briga é para impedir a instauração de um paredão com 8 torres de até 18 andares à beira-mar. “Temos o receio de que Salvador se transforme numa cidade insuportável em termos de temperatura, mobilidade, segurança, ecologicamente insustentável, com maior desigualdade social e étnica. Além do risco de perder a ventilação natural, a vista para o mar, e que invasões de áreas públicas e privatizações tomem conta da cidade”, alega Isabel Perez, assistente social e integrante do Coletivo Stella Maris.

Empreiteira diz querer diálogo

Em entrevista para o veículo Correio 24h no início do ano, o CEO da OR, incorporadora do grupo Novonor, Eduardo Pedreira, disse que gostaria de conversar com o povo a respeito do empreendimento na Praia do Buracão. Contudo, ele sequer tocou a campainha de alguém da rua Barro Vermelho. Todos os seus argumentos expostos na conversa com a grande mídia, as benfeitorias que o investimento desse porte poderia proporcionar para a singela rua, são refutados pelo SOS Buracão. Ao contrário da Novonor, que contratou estudiosos de São Paulo para lidar com as demandas baianas, o movimento tratou de consultar aliados experientes nas questões que abarcam a complexidade do território e demais polos nordestinos. Ninguém do SOS gostaria de enxergar em Salvador alguma semelhança com o que foi feito, diante da ganância da especulação imobiliária, na orla de Balneário Camboriú, em Santa Catarina.

“Seu Eduardo, estamos à disposição para dialogar. Venha nos procurar”, convida Miguel Seheb.

Na visão do arquiteto e urbanista Neilton Dórea, a cidade precisa ser planejada e ter uma legislação que seja discutida por todos. Só que a cada gestor, tais normas passam por procedimentos feitos numa espécie de balcão de negócios, deixando de ser menos restritiva para ser mais voraz à paisagem da cidade. Substituindo áreas abertas públicas e verdes por edificações que extrapolam alturas e proximidade entre as mesmas. Dórea crê que o motivo é simplesmente satisfazer acordos econômicos e financeiros entre os poderes (político e do mercado), excluindo a comunidade. Essa, por infeliz consequência, acaba tendo uma baixa qualidade de vida.

“O Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia (CAU/BA) pediu audiência na época do ACM Neto (UB) e duas vezes ao atual prefeito para discutir a cidade. Não tivemos nenhuma resposta, é uma autarquia federal. Imagine só com as associações de bairros”, assegura Dórea.

O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema/BA), a SEDUR e a Novonor foram contatados pela reportagem e não se manifestaram .

A vereadora Martha Rodrigues (PT) presta todo o apoio aos movimentos que se posicionam contra a invasão dos empreendimentos imobiliários em Salvador e busca dar visibilidade ao SOS Buracão, ouvindo a sua vivência e colocando-os em contato com os agentes públicos e políticos que têm a atribuição de fiscalizar as pautas ambientais e urbanísticas da cidade, como o Ministério Público.

Daniel Colina, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento da Bahia (IAB), confirma que o PDDU não é um problema exclusivo de Salvador e que o órgão vai nacionalizar o debate, entendendo que em todos os municípios é necessário promover a participação da comunidade, sendo que as periferias, territórios de exclusão, são prioridade.

“A cidade que queremos tem que estar incorporada no PDDU e pautar aqueles políticos que queiram nos representar”, discorre Colina.

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Marco Zero Conteúdo

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