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Com verba da Assistência Social, gestão João Campos financia entidades até 205 km longe do Recife

Jorge Cavalcanti / 25/04/2024
Foto de João Campos, homem jovem, branco de pele muito clara, cabelos loiros e olhos claros, usando uma camisa branca, sentado em frente a uma mesa onde há alguns papéis espalhados, tendo ao fundo uma parede branca.

Crédito: Rodolfo Loepert/PCR

A gestão João Campos (PSB) quer transferir recursos públicos às comunidades terapêuticas para a contratação de vagas para o acolhimento de pessoas maiores de idade em uso abusivo de álcool e outras drogas, como cocaína fumada (crack). Apesar do nome do programa, Acolhe Vida Recife, a prefeitura poderá financiar com R$ 2,7 milhões entidades privadas ou religiosas localizadas até 205 quilômetros da capital pernambucana. Para se ter ideia, Pesqueira, último município do Agreste, está a 203 quilômetros em linha reta no sentido interior do estado pela BR-232. O Conselho Nacional de Assistência Social não reconhece as comunidades terapêuticas como parte do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

Na prática, há poucas instalações de abrigamento dessas entidades na capital do estado, seja pela dificuldade de encontrar imóvel adequado ou por causa dos valores de aluguel e custeio, seja pelo modelo de funcionamento dessas organizações, que preferem se estabelecer em pontos mais afastados dos centros urbanos, como áreas rurais de municípios do Grande Recife e interior.

O edital de chamamento público nº 002/2024 foi divulgado no Diário Oficial do município de 13 de abril, nas páginas 43 a 52. O comunicado prevê o financiamento de 150 vagas para acolhimento voluntário. Entidades interessadas têm até 28 de maio para enviar proposta.

Profissionais dos serviços de assistência social e saúde ouvidos pela reportagem destacam o fato do total de vagas que poderão ser contratadas fora dos limites do Recife ser mais do que o triplo do tamanho da rede que o município dispõe para o acolhimento residencial e transitório. Atualmente, a capital pernambucana tem três unidades. Cada uma com 15 leitos, somando 45 vagas.

“Essas leitos da Rede de Atenção Psicossocial do Recife são sempre procurados. A unidade de acolhimento Jandira Mansur, a única para mulheres, fica no bairro de Campo Grande, Distrito Sanitário II, e está funcionando abaixo da capacidade porque precisa de uma melhoria no imóvel”, conta um servidor. As outras duas unidades de acolhimento adulto da cidade são a Celeste Aida Chaves, no Cordeiro, e professor Antônio Nery, na Imbiribeira.

“As comunidades terapêuticas acabam tomando o vazio deixado pela falta de uma maior rede de acompanhamento terapêutico e protetivo. Mas como um morador do bairro da Várzea, por exemplo, vai buscar cuidado a centenas de quilômetros dos laços afetivos que podem ajudar no tratamento?”, questiona outro profissional da rede municipal de saúde. Curiosamente, um dos objetivos específicos do edital é o reestabelecimento dos vínculos familiares e comunitários da pessoa em uso abusivo de substâncias.

As 150 vagas previstas no edital são para o atendimento da população recifense. Mas profissionais dos serviços têm receio que, na prática, esses leitos sejam ocupados por moradores de outros municípios, sujeitos à influência e usufruto das relações políticas. O encaminhamento às comunidades terapêuticas se dará pela secretaria-executiva de Políticas sobre Drogas (Sepod) da prefeitura, e não pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

Prefeitura aumenta valor e raio de abrangência

O aviso que foi agora publicado havia sido divulgado no ano passado, em 7 de outubro. Porém, uma portaria no Diário Oficial de 30 de novembro tornou sem efeito a proposta. Já em 2024, o atual edital ganhou publicidade em 20 de janeiro. Para reforçar a iniciativa, a gestão o publicou novamente em 13 de abril. Leia aqui:

https://dome.recife.pe.gov.br/dome/doDia.php?dataEdicao=2024-04-13

Há duas alterações relevantes entre o edital cancelado e o que agora está aberto: o custo do município com a parceria com as comunidades terapêuticas, que subiu de R$ 2.44 milhões para R$ 2.71 milhões, e a distância máxima das entidades que podem ser homologadas: de 150 para 205 quilômetros.

O monitoramento acima é do vereador Ivan Moraes (PSOL). “Há um aumento do preço na diária paga que impacta o valor total do edital. Tenho dito que esse tipo de iniciativa é um equívoco da prefeitura, que alega que essa verba não vem da Secretaria de Saúde, mas da pasta da assistência social. É preciso que se diga que isso é uma escolha política, não uma questão orçamentária. Esse mesmo dinheiro poderia estar fortalecendo a RAPS. Bastava uma canetada”.

O fundo de R$ 2,7 milhões prevê até nove projetos financiados. Cinco deles – com 20 vagas cada – para o gênero masculino a partir dos 18 anos, ao valor de R$ 50 a diária. Duas propostas são voltadas ao gênero feminino, 20 vagas cada uma e diária de R$ 50. Outros dois projetos poderão somar até 10 vagas para mulheres acompanhadas de seus bebês, com diária de R$ 55.

Essa é a segunda vez que a gestão João Campos valida edital de financiamento direto para comunidades terapêuticas. A primeira foi em março de 2022. Três foram habilitadas à época: Instituto Acolher (no município de São Lourenço da Mata), São Miguel Arcanjo (em Caruaru) e Associação Oásis da Liberdade. Esta última, sediada no bairro de Jardim São Paulo, zona oeste da capital, é ligada ao vereador Luiz Eustáquio. Veterano na Câmara Municipal do Recife, ele é filiado ao PSB, mesmo partido do prefeito.

Foto de Luiz Eustáquio discursando no púlpito da Câmara Municipal do Recife. Ele é um homem negro, idoso, de bigode grisalhos e cabelos crespos e curtos, usando paletó cinza, camisa branca e gravata vermelho escuro. À sua frente, há um buquê de flores brancas e follhas verdes.
Crédito: Instagram @luizeustaquio

PCR responde, mas não detalha o porquê das alterações

“O edital de 2022 foi atualizado, ampliando o raio de abrangência para que novas organizações pudessem participar. A secretaria reforça que oferece acolhimento e orientação no 6º andar do edifício-sede da prefeitura. Este serviço conta com triagem e, quando necessário, encaminhamento para Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas. Existe ainda o trabalho de prevenção feito de forma itinerante em bairros, escolas e eventos diversos”, limitou-se a responder.

A Sepod é gerida pela advogada Edna Gomes, que trocou o PP pelo PV. Vice-prefeita do Cabo de Santo Agostinho, no Grande Recife, na gestão de Vado da Farmácia, ela já fazia parte da gestão João Campos até ser nomeada para um cargo mais alto em maio do ano passado, por indicação do deputado federal Clodoaldo Magalhães.

Apesar da presença no alto escalão da capital pernambucana, a secretária mantém atividades relacionadas à atuação política no município do Cabo. Em agosto do ano passado, ela integrou a comitiva do prefeito Keko do Armazém (PP) em viagem a Brasília.

Na estrutura administrativa da prefeitura, a secretaria-executiva de Políticas sobre Drogas é vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos, Juventude e Políticas sobre Drogas. A titular da pasta é a assistente social Ana Rita Suassuna. Ela exerce a função desde o início da gestão do PSB no Recife, em 2013, primeiro dos oito anos do governo Geraldo Julio (PSB).

Conselho de Políticas sobre Drogas foi contra

De caráter consultivo e formado com paridade entre representações da sociedade civil e governamentais, o Conselho Municipal de Políticas sobre Álcool e Outras Drogas (Compad-Recife) se posicionou contrário ao objeto do edital. Por maioria de votos, o colegiado reprovou a proposta. O único que votou a favor da iniciativa foi o indicado da Sepod para compor o grupo. A reunião foi realizada no dia 25 de outubro de 2023. Mesmo assim, o posicionamento do Conselho foi ignorado e o edital foi lançado.

Edital ignora pessoas trans e travestis e não exige laicidade

Outro ponto de crítica de conselheiros do Compad é a não previsão de pessoas trans e a não exigência de atuação laica por parte das comunidades terapêuticas. “Há um jogo social que empurra as pessoas trans e travestis para a exclusão. Muitas vezes começa na família e se consolida na falta de empregabilidade no mercado de trabalho. A atuação de determinadas lideranças ditas religiosas consolida e perpetua esse estigma”, avalia Júlia Bueno, psicóloga, doutoranda e mulher trans.

Dado da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) aponta para 90% das pessoas dessa população ter como única possibilidade de renda a troca de sexo por dinheiro. “A prostituição, tanto de pessoas trans quanto de pessoas cisgêneras, é um fator que pode elevar a exposição e o risco ao uso de drogas lícitas e ilícitas. Portanto, é necessário que os serviços de cuidado cheguem a esse grupo, ainda mais quando financiado com dinheiro público”.

Para a pesquisadora, esse tipo de iniciativa proposta pela prefeitura em edital fragiliza os Sistemas Único de Saúde e de Assistência Social (SUS e SUAS). “Que são, justamente, ambientes que possuem protocolo de atendimento a essas populações.”

AUTOR
Foto Jorge Cavalcanti
Jorge Cavalcanti

Com 19 anos de atuação profissional, tem especial interesse na política e em narrativas de defesa e promoção dos direitos humanos e segurança cidadã.