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Como a bancada da bíblia se profissionalizou para acabar com o aborto legal no Brasil

Débora Britto / 15/09/2020

Crédito: Ana Carolina Porto

Em agosto, o Brasil assistiu às cenas de barbárie protagonizada por fundamentalistas religiosos que protestaram tentado que uma menina de 10 anos, grávida depois de ser vítima de estupro, realizasse o aborto legal em Recife.  

A tentativa de impedir um direito garantido por lei em uma situação grave como é a de uma mulher vítima de estupro pode até chocar, mas não se engane, pois as ameaças ao direito ao aborto legal no Brasil não começaram agora. 

A mais recente investida em forma de portaria, publicada pelo Ministério da Saúde exatamente 12 dias após a realização do aborto legal da menina levada do Espírito Santo para Pernambuco, faz parte de uma estratégia maior e mais antiga para para retirar das mulheres brasileiras todas as possibilidades de ter acesso a esse direito. 

No Brasil, país com mais de 200 milhões de pessoas, onde 51% da população é de mulheres, existem 40 serviços de saúde que realizam o atendimento e procedimento de aborto legal. São mais de 104,772 milhões de mulheres que podem vir, um dia, a precisar de atendimento nos três casos em que o aborto é legal: quando são vítimas de estupro, quando a gravidez oferece risco de vida à mulher ou quando o feto é anencéfalo (isto é, quando não há formação do cérebro).

Até 28 de agosto de 2020, qualquer mulher que estivesse em uma das situações permitidas por lei, em especial após ter sido estuprada, não precisava ir à delegacia ou pedir autorização à Justiça para ser atendida e ter acesso a um direito garantido desde 1940. Hoje, no entanto, depois da publicação da Portaria Nº 2.282, que torna obrigatória a notificação à polícia pela equipe médica, quando há indícios ou confirmação de estupro, a mulher vítima precisa enfrentar uma via crucis para realizar o procedimento. 

Portaria é grave ameaça

Uma análise elaborada pelo Cfemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria) sobre o conteúdo da Portaria Nº 2.282, conclui que, na prática, a determinação dificultaria o acesso de mulheres ao procedimento do aborto legal. O aumento da burocracia e a obrigação na notificação policial colocam em risco a saúde das mulheres.

Para Masra Abreu, assessora técnica do Cfemea, a portaria não deve ser entendida apenas como uma reação ao caso da criança capixaba ter tido o direito garantido, apesar dos esforços de fundamentalistas no Espírito Santo e em Pernambuco. Ela percebe uma articulação mais ampla. “Toda nosso papel e reflexão vem de um acumulado de não só ver os projetos de lei, mas também de ver como isso se efetiva em política pública ou não. “Uma vez que teve um grande apelo midiático para garantir o direito da menina e as instituições agiram contra a investida do Governo Federal – a gente está falando da justiça local, procuradoria, de alguns servidores públicos que atuaram diretamente no caso para garantir o direito da criança – eu acho que a portaria é uma ação orquestrada. Foi também uma reação porque não conseguiram coagir no caso da menina, mas nitidamente é uma tentativa de dificultar, de reverter as leis que estão em vigor, de pôr um pé na porta dos serviços de aborto legal e impedir, retroceder no direito das mulheres e, no caso que vimos em agosto, no direito das crianças, das meninas”, argumenta.

Pela portaria, quando uma mulher chegar no centro médico e houver indícios de estupro, os profissionais de saúde devem “manter os indícios do crime”. Ou seja, a mulher que deveria ser acolhida e encaminhada aos procedimentos de contracepção e medicação contra doenças teria que esperar a chegada da polícia.

Além disso, a portaria prevê que a mulher terá que passar por quatro fases para realização do aborto legal que mudam as regras em vigência até então, que são baseadas no acolhimento e escuta de mulheres que sofreram violências sexuais. 

Um grave alerta feito por organizações é a previsão de que, a partir de agora, a equipe médica “deverá informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada”. Sobre esse ponto, a análise do Cfemea destaca que “essa possibilidade consta no caput de uma dezena de PLs que propõem retiradas de direitos para o atendimento as vitimas de violência sexual, e neste caso, impõe a mulher constrangimento e violência psicológica, lidando de forma perversa com um momento de extrema vulnerabilidade e sofrimento pelos quais as mulheres estão passando”. 

Na terceira fase estabelecida pela portaria, cuja redação diz que é necessária “a assinatura da gestante no Termo de Responsabilidade ou, se for incapaz, também de seu representante legal, e esse termo conterá advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal) e de aborto (art. 124 do Código Penal), caso não tenha sido vítima do crime de estupro”, estabelece mais um obstáculo para a mulher. 

Cai por terra, portanto, o entendimento construído ao longo de anos sobre como amparar vítimas de violência sexual. “É uma ação coordenada da agenda política conservadora e fundamentalista desse governo de acabar com os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres que já estão legalmente garantidos”, afirma Abreu.

Segundo ela, apesar de a portaria representar um grave retrocesso, juridicamente ela é insustentável. “Ela retrocede em várias normativas que foram conquistadas nas últimas décadas no atendimento ao aborto legal. Entre elas a Lei nº 12.845/2013, do governo Dilma, que estabelece o atendimento às mulheres vitimas de violência com todo procedimento acordado e discutido com o movimento de mulheres, com servidores que entendiam a situação e as necessidades das mulheres que chegavam no serviço, não que chegavam no serviço precisando de um delegado de polícia”.

Reação no Congresso

A Bancada Feminista Antirracista e parlamentares entraram com Projetos de Decreto Legislativo (PDLs) para revogar a portaria na Câmara Federal e organizações de classe entraram com ações para que o Superior Tribunal Federal (STF) julgue a inconstitucionalidade da questão. A expectativa que o presidente da Câmara Federal, Rodrigo Mais (DEM), coloque em pauta e vote o PDL o quanto antes, já que no entendimento de organizações que defendem o direito ao aborto legal e a descriminalização das mulheres, essa é apenas uma ação de uma agenda política conservadora e fundamentalista.

Depois de votado e aprovado no Congresso o PDL ainda vai para votação no Senado. “Tem um caminho que é longo e de várias amarras políticas e pressões políticas. Quando mais tempo passa e não acontece, mais difícil fica ter força de sustar a portaria”, alerta. 

“A mulher tem que passar por uma via crucis dentro do serviço de saúde que a gente já sabe que é muito difícil. Quando um ministério cria esses procedimentos, empurra demanda para a clandestinidade. A maioria das mulheres já não chegam aos serviços de saúde porque passam por várias violências dentro desse serviço. Essa portaria não sendo revogada, sustada, a gente vai ter um aumento em casos de aborto ilegal, clandestino e consequentemente o aumento do número de mortes, se situações de risco para as mulheres”, explica.

Foto: Agência Brasil/Fernando Frazão.

Os dados sobre aborto e suas complicações (incluindo a morte de mulheres) são incompletos no Brasil. A partir de cruzamento de dados dos Sistemas de Informação sobre Mortalidade (SIM), Nascidos Vivos (Sinasc) e Internação Hospitalar (SIH) no intervalo de dez anos – de 2006 a 2015, uma pesquisa chegou ao número de 770 óbitos maternos registrados como tendo o aborto como causa oficial. Contudo, se considerassem as fichas que mencionam o aborto mas apresentam outras razões de morte, o número poderia ser 29% maior, ou seja, de 993 vítimas nesse período. Tudo isso sem levar em conta as subnotificações.

Fundamentalistas no Congresso Nacional

A profissionalização e complexidade dos projetos e tentativas de retirar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres vem acontecendo pelo menos há dez anos no Congresso, de acordo com a análise de Masra Abreu. Desde o início da década de 2000, o Cfemea estuda e alerta como a ação fundamentalista vinha de organizando e institucionalizando. Ela aponta 2007 como um marco, pois foi  quando o Governo Lula firmou o Tratado do Vaticano com a Igreja Católica, que garantia condições especiais à comunidade católica no Brasil.

“O revés disso foi toda uma investida de pastores como Silas Malafaia, Edir Macedo, querendo equiparação para a comunidade evangélica. Então, nesse momento histórico você tem o início de uma configuração de uma forca política conservadora dentro do Congresso para garantir questões deles. Isso foi se configurando como o que a gente chama hoje de Bancada da Bíblica”, explica Abreu.

A organização da comunidade evangélica para exigir concessões e intensificar a atuação e o modo de agir no Congresso é uma das origens da formatação da chamada bancada da Bíblia. “Ela foi se estruturando ideologicamente em projetos morais, que dizem ser em defesa da família, da vida. A partir disso a gente vê, de lá para cá, um aumento grande de números de projetos de lei que tentam criminalizar o direito da mulher ao aborto legal”, conta. 

Há também uma mudança significativa do modelo dessas tentativas: as ações antes isoladas e fracas passaram a ser feitas com qualidade por profissionais. “Antes disso a gente tinha deputados fundamentalistas que apresentavam projetos dessa agenda. Mas, a partir do início desta década, a gente percebe uma estrutura institucional que apresenta projetos qualificados e cada vez mais fortes politicamente”, explica. 

Um exemplo são as PECs (Propostas de Emenda à Constituição) que tentam alterar a Constituição Federal para inserir a ideia de já existe vida desde a concepção de fetos – o que acabaria com o direito ao aborto legal mesmo em casos de estupro.

Foi assim que figuras como Damares Alves, atual ministra do governo Bolsonaro, se forjaram e conheceram profundamente as engrenagens e funcionamento do Congresso Nacional.


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Dos bastidores para o ministério

Para Masra Abreu, as ações e palavras de Damares não têm nada de aleatórias, nem as ações encabeçadas por ela são meras cortinas de fumaça. “A ação de Damares é um pilar desse governo. E o tempo que ela teve de Congresso confere a ela muito status de leitura do timing e da costura política que tem que se fazer para aprovar uma lei que retrocede direitos. Ela, por exemplo, trabalhou mais de 20 anos no Congresso fazendo assessoria para a bancada cristã fundamentalista”, explica. 

Durante todo esse período, a bancada fundamentalista não só cresceu, como passava sem críticas ou opositores fortes no Congresso ou Governo. “Isso não começou com Bolsonaro. Damares está há 20 anos no Congresso fazendo assessoria parlamentar para projetos fundamentalistas que ela defende hoje. Bolsonaro era da base do governo Lula, do governo Dilma. Ele sempre foi um deputado idiota, mas nunca ninguém o tirou de lá. Ele foi alavancado, inclusive socialmente, por essa pauta”, analisa Abreu.

Para ela, portanto, é preciso enxergar o perigo da portaria para além de uma ação de resposta. Ela chama atenção para o desmonte silencioso que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, aliado a outros ministérios, tem feito com políticas públicas que garantiam proteção e direitos às mulheres. “Há uma devassidão principalmente nas políticas de combate à violência contra a mulher, desmonte dentro do ministério da saúde, onde a gente tinha politicas publicas sérias na questão da Aids e DST, na questão da saúde da mulher. Está tudo interligado”, alerta.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.