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Como está a cabeça de quem enfrenta o coronavírus na linha de frente

Marco Zero Conteúdo / 28/08/2020

Crédito: Tatiana Fortes/Gov. do CE

por Wilfred Gadêlha*

O infectologista Bruno Ishigami, 30 anos, chegava ao Hospital Universitário Oswaldo Cruz, em Santo Amaro, na região central do Recife, para mais um plantão na UTI destinada aos pacientes com covid-19 quando se deparou com uma cena que o marcou: uma técnica de enfermagem estava passando mal. Ela também tinha acabado de iniciar sua jornada de trabalho quando soube que um colega de profissão havia perdido a luta contra o coronavírus.

“Ela estava tendo uma crise de ansiedade. Uma profissional que estava fragilizada. Eu reuni os colegas e conversei com a equipe que aquela era uma situação que iríamos vivenciar mais vezes. Pra gente que está na linha de frente, são muitos sentimentos – tristeza pelos que estavam indo, que muitas vezes abriram mão de estar com as famílias para cumprir seu papel e, por isso, adoeceram e faleceram. É um impacto que não temos como medir”, relembra o médico, que já atuou no sistema prisional e também esteve um dos hospitais de campanha montados pela prefeitura do Recife durante a pandemia.

Situações como essa relatada por Ishigami não são isoladas. Elas acontecem diariamente e revelam outro aspecto da pandemia: a saúde mental dos que enfrentam o coronavírus cotidianamente. E também lançam luz para a atuação dos psicólogos que dão suporte às equipes.

De acordo com a presidente do Conselho Regional de Psicologia de Pernambuco (CRP-PE), Alda Roberta Campos, a carga emocional a que esses profissionais da linha de frente estão sendo submetidos é muito grande. “As equipes têm muito medo, estão sofrendo com as perdas, lidam com a frustração diretamente. É uma mudança muito grande da rotina. É preciso que esse profissional tenha direito a viver o sofrimento porque ele é vítima da pandemia também. Como uma colega diz, é uma doença perturbadora: impacta quem está doente e quem não está”, complementa. Para Alda, médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem são atingidos de maneira distinta. “Os profissionais não têm a possibilidade de expressar seu medo. Eles se transformam em acolhedores do medo das outras.”

Alda Campos, presidente do CRP-PE, diz que luto deve ser vivido

O protocolo para questões de morte de pacientes estipula que é o médico que deve dar a notícia do óbito. “A comunicação de morte é dada pelo médico. É necessário um suporte externo de supervisão para que esse momento seja o menos traumático. E isso não existe.” Bruno Ishigami conta que, em alguns momentos, se faz necessária a presença de um profissional de psicologia. “No hospital de campanha, tinha uma equipe de psicologia para lidar com os pacientes. A comunicação do óbito é o médico que dá, mas, dependendo do contexto, a gente precisa de um psicólogo junto.”.

Os relatos se multiplicam e o resultado, na avaliação de Alda Campos, é uma negação da dor de grupo. “Como se o profissional fosse uma máquina, o luto é abafado. Isso vai se revelar num adoecimento mais à frente. O luto precisa ser experienciado, vivido, trabalhado para que seja superado.”

“Muitas vezes vemos um técnico em enfermagem e constatamos como eles não são valorizados. Ainda mais sabendo que ganham muito pouco por plantão. Qual o valor que a gente dá a esse cara? É ainda mais triste. Esse técnico é quem está mais próximo do paciente, dando comida, dando banho, com mais chance de se contaminar”, retoma Bruno Ishigami. “Gera na gente um sentimento de revolta e de impotência. Porque a gente continua na luta, se arriscando, com medo de se expor. Sei que é inevitável que a gente vá se expor a infecções. Mas ver a população começando a relaxar, a falta de atuação do Governo Federal…”, desabafa Ishigami.

O que tem acontecido, na prática, entre os profissionais da linha de frente é uma explosão de sintomas de problemas como ansiedade, depressão e síndromes do pânico e de burn out (termo em inglês para o esgotamento provocado por altos níveis de estresse). O que faz com que o papel do psicólogo dentro da equipe ganhe ainda mais relevância. “A psicóloga deveria também estar no papel de sentir o luto. Mas ela fica responsável por acolher depressão, irritabilidade e outras manifestações do esgotamento da equipe”, destaca Alda.

Terapia é a opção

Nos momentos mais difíceis, é o profissional de psicologia que atua para acalmar ou estabilizar os colegas de linha de frente. É o que tem feito Wania Leite, psicóloga de 53 anos que trabalha na policlínica Agamenon Magalhães, em Afogados. O atendimento ambulatorial de psicologia da unidade municipal foi suspenso com o início da pandemia. Mas os profissionais – incluindo Jaciara Silvéria da Silva, 54 anos, que morreu de covid-19 em junho – foram convocados para dar suporte a quem estava na vanguarda.

“Nós fazemos esse trabalho em grupo, mantendo a distância, obviamente. Não eram muitas pessoas. Na roda de conversa, os profissionais falavam das angústias, das dificuldades de lidar com um vírus que a gente só sabia que matava”, explica Wania. “Se identificarmos alguém em uma situação mais delicada, atuamos individualmente”, completa. “Até mesmo com minha amiga Jaciara eu tive que atuar como profissional em uma ocasião.”

Um aspecto que Alda Campos faz questão de enfatizar é o mito de que o profissional de saúde, nesse momento de enfrentamento, é um super-herói. “Essa associação com heróis tem um duplo efeito. Claro que é gratificante ser parabenizada, ter o agradecimento. Mas o herói fica acima das questões da humanidade. A Mulher Maravilha não é um ser humano. Onde eu coloco a minha humanidade? Ótimo que sejamos reconhecidos, mas não como super-heróis”, acrescenta.

Bruno Ishigami voltou a fazer terapia

“Muitos colegas estão negligenciando a sua saúde mental. Eu fazia terapia antes da pandemia. No início, eu parei e pensei: ‘Vou segurar sozinho’. Mas, no meio de maio, eu estava mais estressado e irritado, com sono ruim. E resolvi voltar online”, diz Ishigami, indiretamente ilustrando a fala da presidente do CRP-PE.

Ele continua: “Todo mundo vai sair com uma marca. É como o transtorno pós-traumático. Depois, é que vem o impacto. Com o tempo, vamos perdendo o medo de nos contaminar e vamos naturalizando. Isso vai mexer com a gente mais pra frente”.

E como as pessoas vão superar esses traumas? “Não há um prazo. Depende das condições de cada pessoa.É como uma cicatrização. Cada um tem tempo diferente. Um vai ficar sem nem marca. Outro vai ter uma queloide”, diz Alda Campos.

O presidente do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), Mário Lins, faz um alerta: “Recomendamos que os médicos que estão na linha de frente procurem cuidar da saúde mental. Já estamos vendo as consequências: muitos colegas com depressão, e ansiedade”.

*Especial para Marco Zero Conteúdo

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Marco Zero Conteúdo

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