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Como funciona e o que pode melhorar na rede de abrigos para mulheres vítimas de violência

Mariama Correia / 25/11/2019

Arte: Thyko

Depois de 13 anos suportando as agressões e ameaças de morte do
ex-marido, a pernambucana Rebeca, 30 anos, encontrou segurança para ela e
para seus três filhos em uma casa abrigo. Esses espaços públicos
oferecem acolhimento gratuito a mulheres vítimas de violência doméstica
ameaçadas de morte e aos seus filhos menores de idade. O refúgio
provisório é essencial, tanto à sobrevivência quanto por dar os suportes
psicológicos, sociais e jurídicos para que elas saiam da situação de
vulnerabilidade.

Rebeca já passou por duas casas abrigo. A primeira vez, em 2012, durou sete meses, embora a lei estadual
determine um o prazo máximo de abrigamento 120 dias. Depois de três
anos separada do agressor, ela terminou voltando para o relacionamento
e, e em abril deste ano, precisou ser abrigada novamente por quase 60
dias. A trajetória dela no serviço ajuda a tanto entender importância
desses espaços de acolhimento quanto a perceber as razões pelas quais
essa rede pode e deve melhorar.

O Brasil, que tem a quinta maior taxa de
feminicídio (assassinatos de mulheres cometidos em razão do gênero) do
mundo, conta com 134 casas abrigo, de acordo com o IBGE (2018). A
localização delas é mantida em sigilo por segurança, assim como fizemos
com o verdadeiro nome de Rebeca. Atualmente Pernambuco tem quatro casas
abrigo em funcionamento, apesar de ter 185 municípios. Já chegou a ter
seis unidades, mas o número foi reduzido depois que a rede passou à
competência estadual.

Juntas, as quatro casas abrigo em
funcionamento conseguem atender 120 mulheres simultaneamente. A
secretaria da Mulher de Pernambuco garante que isso é suficiente para
atender a demanda atual – de 40 a 60 novas usuárias por mês – porque o
fluxo de saídas compensa, já que existe um prazo máximo de abrigamento e
o tempo de permanência das usuárias é de 30 a 45 dias úteis.

O governo estadual sustenta que não há
justificativa para a abertura de novas casa abrigo, nem ampliação das
atuais. Isso mesmo com o aumento de casos de de violência doméstica
contra a mulher no estado (veja o gráfico abaixo). Somente no ano
passado foram quase 40 mil registros, segundo a secretaria de Defesa
Social (SDS), e, até outubro deste ano, 34 mil casos já tinham sido
contabilizados. Para se ter ideia, os 74 feminicídios  notificados pela
SDS no ano passado, em Pernambuco, representaram 32,5% dos homicídios de
mulheres no estado, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

“Os dados mostram que a quantidade de casas abrigo no estado não é
suficiente. Se as mulheres não estão chegando ao serviço é porque a
demanda está sendo reprimida em alguma etapa do acolhimento”, analisa
Carmen Silva, do Instituto Feminista para a Democracia – SOS Corpo. Ela
explica que o encaminhamento das mulheres em risco de morte aos abrigos é
feito pela rede de acolhimento. Pode ser, por exemplo, uma delegacia ou
um hospital, como no caso de Rebeca. “Estava socorrendo nosso filho
mais velho, de nove anos, porque meu ‘ex’ tinha batido tanto no menino,
que ele ficou com febre. Pedi socorro aos médicos. Ele já tinha me
espancado no dia anterior”, lembra Rebeca.

Os médicos a orientaram a prestar queixa na
delegacia. Como em Olinda, onde morava, não há uma delegacia da mulher,
que é especializada nesses casos, ela recorreu a uma unidade comum da
polícia, onde o atendimento deixou a desejar. “Ouvi do delegado que isso
era briga de casal”, conta. A quantidade ainda insuficiente de
delegacias da especializadas é um gargalo para o acolhimento das
mulheres vítimas de violência. São apenas 11 no estado. O ideal seria,
pelo menos, 26 delegacias da mulher, de acordo com a própria a diretora
de enfrentamento de gênero da secretaria estadual da Mulher, Bianca
Rocha. “Para cobrir todas as 26 áreas integradas de segurança, que é uma
divisão estratégica do território.”

Mesmo sem uma delegacia especializada em cada município, Bianca garante que “qualquer unidade de polícia está capacitada para atender mulheres vítimas de violência e em risco de morte a uma casa abrigo”. Mas o fato de não haver um atendimento especializado próximo da mulher “pode ser um desestímulo para que ela registre a queixa”, observa Carmen Silva do SOS Corpo. Vale lembrar que mais de 20% das mulheres vítimas de violência não registram queixa por vergonha e 30% porque acreditam não existir punição, segundo dados do DataSenado (2017).

Abrigadas

Natália Cordeiro é coordenadora do Fórum de Mulheres de Pernambuco.Ela trabalhou como educadora social em uma casa abrigo do estado, em 2013, e escreveu uma dissertação de mestrado sobre a política de abrigamento em 2018. A primeira consideração dela sobre a rede é: “quem realmente depende do Estado para sair do ciclo de violência são mulheres pobres e negras. Ou seja, o público mais vulnerável.” Dados mostram que as mulheres negras são as principais vítimas de violência doméstica no Brasil.
Durante sua experiência como educadora social, Natália percebeu que os contextos de vida das usuárias das casas abrigo são muito diferentes. Isso é um desafio. “Nesses espaços há jovens convivendo com idosas, lésbicas com evangélicas. Muitas vezes essa diversidade gera conflitos”, considera. Segundo a pesquisadora, é comum que as famílias dividam quartos por falta de estrutura das casas. A secretaria da Mulher disse que isso deixou de acontecer porque a estrutura das casas em funcionamento no estado foi melhorada desde 2013, quando Natália trabalhou no serviço. Duas delas, inclusive, são tidas como modelo nacional. A reportagem da Marco Zero não conseguiu autorização do governo do estado para visitar os espaços.
Do ponto de vista de uma ex-usuária, o acolhimento oferecido pelas casas abrigo é satisfatório. “Fui muito bem tratada, era tudo organizado”, recorda Rebeca. O único incômodo dela era mesmo a privação de liberdade.  Isso porque há regras para o acesso às casas abrigo. Uma delas é que a usuária precisa ser privada da liberdade para garantir sua proteção. Durante os dois períodos em que ficou abrigada, Rebeca não podia sair da casa ou ter contato com amigos e/ou familiares, nem usar o celular. Por outro lado tinha apoio psicológico, assistências diversas e seis refeições diárias para ela e seus filhos. “Por isso mesmo esse tipo de acolhimento é considerado uma medida extrema, aplicada apenas quando não há outra alternativa, e apenas por um tempo determinado”, explicou a diretora Bianca Rocha.
Quando fala dos pontos a serem melhorados no serviço, a pesquisadora Natália enfatiza o desfalque de pessoal. “O ideal é ter sempre mais de uma educadora social de plantão por casa para qualquer demanda emergencial, só que isso não acontece”, aponta.  Ela observa que muitas casas operam sem psicóloga ou sem assistente social. Bianca Rocha admite que há carência de equipe técnica (psicólogos e assistentes sociais).
“O ideal seria termos dois técnicos por casa. Operamos atualmente com um psicólogo e um assistente social por unidade”, detalha. O entrave, ela explica, é o orçamento estadual. Acontece que novas contratações não podem ser realizadas porque o governo está no limite de gastos da folha salarial. “Os novos contratos são liberados apenas para áreas prioritárias, como segurança e saúde”, argumenta.

Depois do abrigo 

O abrigamento pode ser o ponto de partida
para um recomeço na vida da mulher vítima de violência. Mas o caminho de
recuperação é árduo. Quando deixa a casa abrigo, a ex-usuária do
serviço continua recebendo assistências do Estado, como atendimento
psicólogo e jurídico, por até um ano. Elas também têm direito a um
auxílio de até R$ 250, pago em parcela única, para ajudar com gastos
emergenciais de transferência domiciliar.

Rebeca, no entanto, diz que nunca recebeu o
auxílio. A secretaria da Mulher contesta. Diz que ela recebeu o valor
no primeiro abrigamento e que, como já utilizou o serviço, não tinha
direito a receber novamente, mesmo considerando as graves dificuldades
financeiras que ela enfrenta. Ela ainda não conseguiu emprego. Faz sete
meses que a ex-abrigada vive apenas com a ajuda dos parentes e do Bolsa
Família. “As ações de acolhimento precisam ser articuladas, incluindo
programas de emprego e renda, para que a mulher não volte a uma situação
de vulnerabilidade”, considera Natália Cordeiro.

A dependência financeira deixa muitas
mulheres presas aos agressores, aponta Fabiana Leite, presidente da
comissão da mulher da Ordem dos Advogados de Pernambuco (OAB-PE).
“É o fator apontado por 30% das mulheres que não denunciaram a
violência”, ressalta, argumentando que o Estado ainda pode melhorar a
articulação de políticas de educação e capacitação desse público.
“A crença de que não haverá punição e a preocupação com a criação dos
filhos também são barreiras para as denúncias. Mas o que mais silencia
as vítimas de violência ainda é o medo,” observa.

Os dispositivos legais, como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio,
foram conquistas importantes para coibir a violência doméstica no
Brasil, mas ainda a impunidade ainda é um problema. Um exemplo: o
processo que corre na Justiça contra o agressor de Rebeca ainda não foi
concluído. A liberdade dele é uma ameaça constante para ela. “Tenho medo
porque ele ameaçava me matar e matar meus familiares”, conta. Na última
audiência, o agressor pediu que a Justiça concedesse o direito dele
visitar os filhos. A mãe teme que ele volte a agredi-los. “Quando fiz a
denúncia, também pedi proteção para os meninos. Parece que isso não foi
registrado direito, não consigo entender”, conta.

A reportagem pediu o levantamento dos dados
do caso dela à secretaria da Mulher. Por telefone, a secretária Bianca
informou que “o agressor tem o direito de fazer esse tipo de pedido à
Justiça. “Mas é o juiz quem vai decidir sobre isso. Cada situação é
diferente. Mesmo que seja concedido, ela pode recorrer se avaliar que
representaria um risco para ela e para as crianças.”

Rebeca está morando na casa dos pais com os
três filhos, em um município distante de Olinda, onde vivia
originalmente. Conseguiu matricular as crianças em uma escola próxima da
residência dos avós, com auxílio do conselho tutelar municipal, mas
toda a rotina da família foi reconfigurada. De certo modo, ela ainda se
sente isolada da própria vida. “Acho injusto. Eu perdi minha liberdade,
enquanto ele ficou solto”, confessa.

A ex-abrigada nunca fez faculdade. Sua única experiência
profissional, como vendedora, foi adquirida durante os três anos em
que esteve separada do agressor, entre um abrigamento e o outro. Com
suporte da secretaria da Mulher, ela voltou a estudar. Está fazendo o
EJA (Educação de Jovens e Adultos) para recuperar o tempo perdido.

Nesta sexta-feira (29), movimentos sociais promoverão uma vigília no Recife pelo fim da violência contra as mulheres. A concentração acontece às 17h na praça Oswaldo Cruz, bairro da Boa Vista.

AUTOR
Foto Mariama Correia
Mariama Correia

Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).