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Como Juazeiro, na Bahia, se tornou a 10ª cidade mais violenta do Brasil

Marco Zero Conteúdo / 29/04/2024
Fotografia aérea de Juazeiro durante o pôr do sol. O céu está pintado com tons quentes de laranja e amarelo, indicando o momento mágico do pôr do sol. A cidade é composta principalmente por edifícios baixos, mas há um ou dois prédios mais altos que se destacam. Um estacionamento está visível, repleto de carros estacionados. Uma estrada movimentada serpenteia ao longo da borda da água. O corpo d’água é calmo e expansivo, com algumas pequenas embarcações flutuando suavemente.

Crédito: Google Maps

por Cássio Costa, Glícia Barbosa e Jéssica Pacheco*

Quinta-feira, 17 de novembro de 2023, em Simões Filho (BA), a 28 quilômetros de Salvador, uma noite que ficaria marcada pela escuridão que se abateu sobre o Quilombo Pitanga dos Palmares. A líder, Maria Bernadete Pacífico, 72 anos, conhecida carinhosamente comoMãe Bernadete, foi brutalmente assassinada com 12 tiros.O crime ocorreu na própria residência da matriarca, um santuário de resistência e luta pela preservação do quilombo e das terras ancestrais que ocupava. Seis anos antes, a Ialorixá perdeu seu filho, também assassinado.​

Dez dias após a morte de Mãe Bernardete, outro quilombola também foi assassinado. Dessa vez, a voz negra calada foi a do jovemJosé William, morador doQuilombo Alagadiço, em Juazeiro, norte baiano. Um sonho interrompido pelas mãos de quem deveria garantir proteção à população. A Polícia Militar, segundo o Conselho de Promoção da Igualdade Racial (Compir), alvejou o jovem com três disparos de arma de fogo pelas costas. Moradores afirmaram que após a morte de William, a PM sumiu com o corpo por quase uma hora.

A comoção tomou conta da população do Alagadiço. Uma onda de revolta, misturada com dor e indignação varreu a comunidade. Entidades negras, defensoras dos direitos humanos e moradores uniram forças, erguendo vozes em um coro de exigência por justiça. José William não seria apenas mais um número estatístico de violência policial. Sua morte seria o catalisador de uma busca incansável por responsabilização.

Mapa do Google maps com uma grossa linha azul indicando o trajeto da comunidade quilombola do Alagadiço até o Hospital Regional no centro de Juazeiro.
Crédito: Reprodução/Google Maps

Um jovem negro ser alvo da polícia é muito comum na Bahia

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, pessoas negras é maioria no grupo vitimado pela violência.O percentual de mortes chega a 83,1% de intervenções policiais.

​Ser preto na Bahia pode ser um motivo a mais para a decisão de puxar o gatilho da arma policial, isso porque historicamente, a população negra é marginalizada. As minorias étnicas são as mais impactadas por abordagens truculentas.

​Para o sociólogo Cláudio de Almeida, o Brasil utilizou quase 400 anos de tortura pública com o período escravista, além de atravessar regimes totalitários, consolidando a violência como principal ferramenta de controle social incisivamente com relação às minorias. O pesquisador ressalta que a violência policial acomete, inquestionavelmente, as populações invisibilizadas, ou seja, ascomunidades negras,quilombolas e rurais: “a violência policial chega com maior força naqueles setores que já foram estereotipados como lugares em que a violência está presente. Jovens, do sexo masculino, negros, entre 15 e 21 anos, é o tipo de corpo que é mortificado tanto por parte da polícia, quanto por parte da criminalidade organizada”.

Da riqueza natural à violência alarmante

Juazeiro, a 500 km da capital Salvador, é uma cidade que se destaca às margens do Rio São Francisco e sempre foi conhecida pela riqueza natural e cultural. Com uma população de 235.816 habitantes (Censo IBGE/2022), é um importante centro urbano no estado da Bahia. Estende-se sobre o Rio São Francisco, fazendo divisa com Petrolina, em Pernambuco.​

A principal fonte econômica é a agricultura. As terras férteis e o clima propício fazem da região um dos maiores polos produtores de frutas tropicais do país. A manga, a uva, a melancia, o coco e outras culturas prosperam nessa área, impulsionando uma indústria agrícola significativa. Apesar disso, a desigualdade social é um fator alarmante. Segundo dados do CadÚnico, no ano de 2023, cerca de 42 mil famílias cadastradas estavam em situação de pobreza e aproximadamente 11 mil em situação de baixa renda.​

Em julho de 2023, Juazeiro se tornou manchete não por suas belezas naturais ou tradições culturais, mas por um motivo sombrio:é a décima cidade mais violenta do Brasil, com um registro de 68,3 homicídios por 100 mil habitantes.A classificação se baseia na categoria de Mortes Violentas Intencionais (MVI), que inclui homicídios dolosos (quando há intenção de matar), latrocínios (roubo seguido de morte), lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais em serviço e fora de serviço.A alarmante estatística alarmante apresentada no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 aponta para um cenário de violência extrema.

O tráfico de drogas, as facções e o poder paralelo

Em Juazeiro, as condições socioeconômicas retratam uma realidade desafiadora. Os trabalhadores sazonais representam uma parcela considerável da força de trabalho na região, vindo de diferentes lugares, sobretudo de cidades menores, circunvizinhas, em busca de oportunidades temporárias durante as colheitas.​

Muitos chegam visando oportunidades na agricultura, porém, enfrentam condições de vida precárias. Segundo a professora e pesquisadora da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), Luzania Barreto, a falta de empregos regulares perpetua uma dinâmica de trabalho informal, limitando as perspectivas econômicas e o acesso a serviços básicos para esses trabalhadores e esse pode ser um dos fatores determinante para o incremento do mercado ilegal como o tráfico de drogas, roubo e prostituição.​

No cenário urbano de Juazeiro e em muitas outras regiões, a sombra do tráfico de drogas se estende, delineando não apenas um comércio ilícito, mas também um intrincado labirinto de violência e poder.

Para a professora Luzania Barreto, que pesquisa política de drogas, otráfico de entorpecentes não pode mais ser dissociado das facções criminosas. A venda de entorpecentes está diretamente conectada às estruturas de poder desses grupos, e tornaram-se comuns comerciantes precisarem de autorização das facções para manter suas empresas funcionando, impulsionando um ciclo de violência entre as forças policiais e o crime organizado. “Na verdade, toda droga está ligada à venda, e esta, por sua vez, está associada às facções criminosas. A polícia aborda o tráfico de forma violenta, e a resposta a essa violência se torna inevitavelmente violenta também. É um ciclo sem começo ou fim claro”, afirma a professora.​

A imagem captura um momento de protesto ou manifestação. Duas pessoas estão segurando uma faixa grande; uma pessoa está à esquerda e a outra à direita. O texto na faixa está em português, escrito em cores vibrantes. O ambiente é ao ar livre, com edifícios visíveis ao fundo sob um céu claro. Há uma sensação de urgência ou importância associada à mensagem na faixa. O texto na faixa diz: “JUSTIÇA p/ WILLIAM M., MAS um QUILOMBOLA ASSASSINADO!”

Imagens da manifestação por justiça por José Willian, um mês após sua morte.

Crédito: Vinícius Coutinho

A disputa entre as facções por territórios também é um incentivador da violência. Organizações criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC), maior grupo do crime organizado do Brasil, com atuação principalmente no estado de São Paulo, e o Comando Vermelho disputam territórios não apenas entre si, mas também com facções locais, intensificando um cenário de rivalidade e conflito constante.

Atualmente, oito facções lideram o crime organizado na Bahia. Entre elas está a Bonde do Maluco ou BDM, organização criminosa que surgiu em 2015, no Complexo Prisional da Mata Escura, em Salvador, e atua em várias cidades do território baiano, além da capital. Também atua na Bahia o Comando Vermelho, um dos principais rivais do BDM, entre outros grupos criminosos.

A violência institucionalizada que recebe honrarias

A história do Brasil está intrinsecamente alicerçada na violência. A chegada dos colonizadores portugueses, em 1500, marca o início do Brasil, enquanto entidade política. O processo que envolveu a colonização das terras habitadas por povos indígenas foi frequentemente acompanhado de conflitos violentos, expulsões da população local e do genocídio de grupos étnicos que mais tarde se tornariam tradição nacional. Muita gente sabe onde essa história começa, mas é cada vez menos possível imaginar onde ou quando termina.​

O Brasil dos dias atuais não só flerta com a violência do passado, como é retroalimentado por uma base bastante consistente que a instituiu enquanto modelo político e, paradoxalmente, de produção da vida.Há centenas de anos, populações marginalizadas dão – literalmente – a vida em conflitos armados, como nas lutas pela independência, no século XIX, contra a escravização de africanos e indígenas e os conflitos regionais que marcaram a história do país.

É nesse contexto que se fabricaram as polícias, aparelhos que devem servir para a proteção da população, além de funcionar como um equipamento de manutenção da “ordem”.

No entanto, o que se percebe na relação entre a população e essas forças do Estado é justamente um sentimento contrário ao de proteção, como sugereEduardo Ribeiro, especialista em Gestão Estratégica de Políticas Públicas, membro do Conselho Estadual de Segurança Pública e Defesa Social da Bahia (Conesp-BA) e diretor executivo da organizaçãoIniciativa Negra. Oespecialista considera que existe uma crise no modelo de segurança pública e que essepercurso tem a ver diretamente com as opções do Estado. “Temos um modelo baseado no militarismo, que reforça a lógica de produção de guerra, que não se afeta pelas ideias de democracia, porque isso funciona na parte da lógica da hierarquia que não coloca a defesa dos Direitos Humanos como parte fundamental da sua atuação”, explica Ribeiro.

Pele alva epele alvo

Em julho de 2023, o estado da Bahia, ultrapassou o Rio de Janeiro no título de polícia que mais mata no Brasil. De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o feito histórico foi cravado apósas polícias baianas terem provocado a morte de 1.464 pessoas em 2022, alcançando a média de quatro assassinatos por dia.​

Não, coincidentemente, esses dois estados brasileiros despontam no topo do ranking de letalidade policial. A Bahia é o estado com maior percentual de população negra do país. São 80,8% de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).​

O boletim Pele alvo: a bala não erra o negro, publicação anual daRede de Observatórios da Segurança,verificou que das4.219 pessoas mortasem intervenções policiais em 2022 no Brasil,2.770 eram negras. Os dados chamam ainda mais atenção: a Bahia concentrou quase metade do total de pessoas negras mortas pelas polícias no país, ao alcançar a marca de 1.121 vítimas fatais, decorrentes de operações policiais no estado.​

Este é um gráfico de barras verticais que compara o número de tiroteios e mortos em 2022 e 2023. Aqui estão os detalhes: O gráfico tem duas categorias principais: “Tiroteios” e “Mortos”. As barras vermelhas representam os tiroteios, enquanto as barras pretas representam o número de mortos. Em 2022 houve cerca de 500 tiroteios (representados pela barra vermelha). O número de mortos foi aproximadamente metade do número de tiroteios, ou seja, cerca de 250 (representados pela barra preta). Em 2023: o número de tiroteios aumentou drasticamente para cerca de 1.750 (barra vermelha). O número de mortos também aumentou, chegando a cerca de 1.250 (barra preta). O gráfico possui linhas horizontais marcando intervalos de contagem a cada quinhentos até dois mil no lado esquerdo. Na parte inferior do gráfico, está escrito: “Fonte: Instituto Fogo Cruzado (2023)”.

Entre julho e novembro de 2023, oInstituto Fogo Cruzado, que monitora tiroteios em centros urbanos do Brasil, documentou a escalada da violência da Bahia, especialmente em Salvador e região metropolitana. Os dados revelam um aumento substancial no número de tiroteios no intervalo de um ano. Veja o gráfico a seguir:

Os dados revelam que 2023 teve um aumento de 159% no número de mortos em relação ao ano anterior.Para Eduardo Ribeiro, o cenário aponta para um aparelho do Estado que não só está à frente da segurança pública do país, como tem produzido um número significativo de casos de violências dentro das comunidades brasileiras.”A lógica da segurança pública deve serevitar o tiro. Não é possível a gente conjugar letalidade com eficiência e eficácia”, afirma Ribeiro.​

O sentimento de insegurança provocado pelo número elevado de mortes em operações policiais vai além e se transforma em um sentimento de medo. Para o especialista em Gestão Estratégica de Políticas Públicas, este medo é fundado em experiências passadas: “parte significativa da população, sobretudo a população negra e as populações periféricas têm uma experiência de convivência com as forças de segurança que é a partir da violência. Independentemente de estarem relacionados ou não com atividades ilícitas, as pessoas sofrem com a presença ostensiva do Estado nos seus territórios”.

As políticas proibicionistas e os caminhos para solução

O debate sobre a proibição de drogas anda lado a lado com a discussão acerca das políticas públicas voltadas ao combate do tráfico. O antropólogo José Hermógenes Moura da Costa, que pesquisa as substâncias psicoativas e identidade social do usuário de drogas, destaca a complexidade desse debate, indo além da perspectiva do consumo de substâncias psicoativas.

Para o pesquisador, a visão de que a presença de drogas resulta automaticamente em violência é simplista e ressalta a importância de compreender os contextos mais amplos que propiciam o surgimento das facções e a rentabilidade do tráfico de drogas: “é como se essa coisa chamada droga fosse uma entidade com vida própria, capaz de destruir pessoas, grupos e sociedades. No entanto, nunca existiu uma sociedade sem drogas. Elas sempre estiveram presentes e foram consumidas dentro de contextos sociais complexos, muito diferentes do estigma contemporâneo de uso abusivo”.

É a partir dessa perspectiva que a proibição de drogas não se sustenta. A preocupação não é com a saúde pública e segurança da população, mas se escora em motivos religiosos, morais, políticos, sociais e econômicos. O debate em torno do modelo proibicionista se estende para além das drogas ilícitas, mas mergulha no universo das substâncias legalizadas, como o álcool.

A discussão sobre a Lei Seca, que restringiu a venda de álcool nos Estados Unidos na década de 1920, é um exemplo histórico. A proibição de bebidas alcoólicas não apenas criou um mercado lucrativo para o crime, mas também aumentou a violência e a corrupção policial.

O antropólogo destaca a necessidade de repensar o discurso punitivista, trazendo para o âmbito da saúde pública e da educação.”a falha está em não retirar esse tema do discurso jurídico-policial e situá-lo no contexto da saúde pública e educação. O restante é administrativo, permitindo que a polícia concentre-se em questões realmente cruciais”, ressalta José Hermógenes.​

A proibição não diminui o consumo, mas aumenta os riscos para a saúde pública.Para o pesquisador,”não aprendemos com exemplos históricos como a Lei Seca. Continuamos repetindo padrões, perpetuando modelos ineficazes que não solucionam o cerne do problema.”Ele ressalta que o uso abusivo de drogas é apenas um sintoma, não a causa de uma série de problemas que vão desde questões materiais até aspectos afetivos e coletivos.​

Soluções eficazes para o combate ao tráfico de drogas e a violência vão muitoalém da abordagem policial. Intervenções estruturais, incluindo investimentos em saneamento, infraestrutura urbana e programas educacionais são consideradas cruciais para enfrentar a raiz do problema.

  • A reportagem foi produzida para a disciplina Redação Jornalística em Multimeios, do curso de Comunicação Social da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), com dados e gráficos de Jéssica Cardoso e Ana Luísa Rocha e sob a orientação e supervisão da professora Teresa Leonel. 
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Marco Zero Conteúdo

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