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Como vai funcionar a única escola cívico-militar de Pernambuco?

Maria Carolina Santos / 02/01/2020

Escola Natividade Saldanha. Foto: Matheus Britto/Prefeitura do Jaboatão

Uma das poucas promessas da campanha do hoje presidente Jair Bolsonaro, as escolas cívico-militares deverão se tornar uma realidade neste ano. Lançado em setembro, o programa, que vai atingir 54 escolas em 23 estados e no Distrito Federal, vai receber um aporte de R$ 54 milhões.

Segundo o governo federal, R$ 28 milhões são para o Ministério da Defesa arcar com os pagamentos dos militares da reserva das Forças Armadas e R$ 26 milhões para prefeituras ou estados investirem em infraestrutura e reformas nas escolas, todas já selecionadas. Até 2023, a meta do governo é ter 206 dessas escolas pelo Brasil. Mas o que, afinal, são escolas cívico-militares?

Para esta pergunta, parece ainda não haver uma resposta definitiva. A grosso modo, o governo se inspirou no modelo das cerca de 60 escolas cívico-militares criadas desde 1998 pelo estado de Goiás: escolas da rede pública que foram entregues para administração de militares, mas com professores civis, vinculados às secretarias de educação.

Na primeira chamada para o edital das escolas cívico-militares, aberto para os estados, o governo de Pernambuco não quis participar. Quando abriu para prefeituras, Jaboatão dos Guararapes se candidatou e a escola Natividade Saldanha, no bairro de Cajueiro Seco, foi selecionada pelo Ministério da Educação. Entre os quesitos que renderam pontos estavam o baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e a vulnerabilidade social. Com 965 alunos matriculados, a escola municipal Natividade Saldanha tem Ideb de 4.4 (2017) no ensino fundamental, abaixo da meta proposta de 5.1.

A mudança na escola não vai ser sentida assim que o ano letivo começar. Há várias definições que ainda precisam ser feitas. Não se sabe, por exemplo, que militares irão para a escola: se das Forças Armadas ou da Polícia Militar/Bombeiros. Também ainda não foi estabelecido quantos novos funcionários a escola terá, nem quais reformas serão feitas. Previsto na portaria 2015 de 20 de novembro de 2019, que criou o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares – Pecim para 2020, o Manual das Escolas Cívico-Militares ainda não foi apresentado.

A secretária municipal de educação de Jaboatão dos Guararapes, Ivaneide Dantas, participou na segunda quinzena de dezembro de uma formação com gestores de todo o Brasil sobre as Ecim, em Brasília. Depois, foi conhecer o modelo goiano, que é duramente criticado por elitizar o ensino público. Segundo ela, somente em março o Ministério da Educação vai fornecer o treinamento para os militares da reserva que serão escolhidos – pelo MEC – para a escola. A expectativa é que os militares passem a atuar na escola somente em abril ou maio.

As reformas também só devem estar prontas mais ou menos nessa época. A escola deverá ser climatizada e terá salas para práticas psicopedagógicas. Ainda vai ser feito um levantamento de que outros equipamentos serão necessários. Depois, essas reformas serão apresentadas pela prefeitura em forma de projetos para o Plano de Ações Articuladas – PAR, que serão submetidos ao Conselho Deliberativo do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE.

De acordo com Ivaneide, o modelo goiano não vai ser totalmente replicado em Jaboatão. “Lá, vi escolas em que os diretores eram militares. Fiquei preocupada, mas no que foi apresentado na formação do MEC os militares serão subordinados ao diretor da escola, um civil. Os militares não deverão entrar em sala de aula, mas cuidar da parte da disciplina. Eles já vão chegar na escola sabendo disso”, afirma.

Um dos fatores que contribuíram para a elitização das escolas cívico-militares em Goiás foi a “contribuição voluntária” dos alunos. Há escolas que sugerem uma taxa de R$ 60, outras até de R$ 100. Há também o peso do gasto com o fardamento, que em alguns casos chega a sete tipos diferentes de uniformes. Isso fez com que alunos originais das escolas que viraram cívico-militares, localizadas em bairros pobres, abandonassem as unidades, sendo substituídos por alunos de classe média. Por um tempo, foram realizadas seleções para a entrada dos alunos. Hoje, é por sorteio.

A secretária Ivaneide Dantas afirma que essas características do modelo goiano não serão implementadas em Jaboatão. “De jeito nenhum vai haver contribuição voluntária dos pais. O que podemos tentar é ir atrás de dinheiro externo, do comércio local. Não tem perigo de pedir dinheiro aos pais”, afirma.

Quanto às fardas, elas serão compradas pela prefeitura. “O fardamento é realmente diferenciado, mas cada município pode escolher a cor que quiser. Por exemplo, nos apresentaram várias opções de boina. Tem uma que é mais cara, mas tem um quepe mais barato. Vamos depois ver se as meninas vão preferir usar saia ou calça. O fardamento não pode entrar na verba federal, então vai ter que ser arcado pela prefeitura”, afirma. “Também estamos em construção com os professores para ver se vão usar jaleco na sala de aula. Não é algo que o programa obrigue, mas muitos querem usar. São pequenas coisas que vão ter um custo adicional, e o município vai pagar”, afirmou.

Algumas mudanças já começaram. A escola, por exemplo, não abriu matrícula para 2020 no dia 16 de dezembro, como aconteceu com todas as outras da rede municipal de Jaboatão dos Guararapes. Nem para o ano inicial e o ano final. A resposta da secretária é de que, como ainda não sabe exatamente como vai ser o modelo cívico-militar adotado, preferiu deixar somente os alunos que já estão lá. “Iremos avaliar depois se iremos abrir matrícula para novos alunos em 2020”, diz.

O modelo de sorteio não será adotado e a matrícula, quando abrir, será online, como as demais escolas da rede municipal.

Disciplina é a palavra de ordem

“Alguns bairros tiveram votação e não aceitaram. Me desculpa, tem que aceitar não, tem que impor. Se aquela garotada tá na quinta série, na nona série e não sabe uma regra de três simples, não sabe interpretar um texto, não responde uma pergunta básica de ciência. Me desculpa, não tem que perguntar ao pai, irresponsável nessa questão, se ele quer ou não uma escola com uma militarização. Tem que impor”.

Foi com as palavras acima que Jair Bolsonaro apresentou o programa de escolas cívico-militares em setembro de 2019. Apesar de o presidente dizer que seria uma imposição, a comunidade escolar pôde escolher se queria ou não o modelo. Na Natividade Saldanha, alunos com mais de 16 anos e pais e responsáveis puderam votar. A escolha pela militarização foi por aclamação. “É um bairro que tem violência e, por mais que os professores façam seu trabalho, sempre tem alguém no muro para tentar aliciar os alunos para o tráfico. A presença de militares na escola vai ajudar inclusive no entorno, porque as pessoas vão saber que tem militares por ali”, avalia a secretária de educação.

Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG) e uma estudiosa do modelo cívico-militar, Miriam Fábia Alves afirma que as escolas do tipo conseguem resultados melhores em índices escolares não pela tão propagada disciplina dos alunos, mas pela diferenciação que recebem da rede pública. “Há mais verbas, mais funcionários, mais equipamentos e mais dinheiro para investir em infraestrutura. Enquanto isso há um abandono majoritário de toda a rede de educação”, critica.

A narrativa de que há uma separação entre o trabalho dos militares e o dos professores dentro da escola também é rebatida pela pesquisadora. “A gente precisa entender a natureza do trabalho pedagógico. Não há como separar o que é administração e o que é pedagogia. Uma escola não é uma montadora de carro, onde cada peça é feita separadamente. O processo de formação de um estudante engloba também como ele entra na escola, o espaço por onde ele pode ou não pode andar. Esse argumento que há uma separação entre o que os professores fazem e o que os militares fazem precisa ser duramente combatido. Não somos robôs reprodutores de conteúdo, o trabalho do docente é muito maior do que isso. Há um equívoco nessa portaria e que tem sido reiterado pela imprensa que é de que a escola cívico-militar é segura e o professor pode trabalhar. A escola é um espaço educador, não punitivo”, diz.

Como nas escolas públicas há dificuldades burocráticas em expulsar alunos por indisciplina, as Ecim de Goiás adotam uma série de punições, que frequentemente envolvem suspensões por vários dias. Não ir com o fardamento adequado, por exemplo, é passível de punição. Não estar com o corte de cabelo militar também. “Além disso, é muito difícil para os responsáveis pelos alunos denunciar qualquer irregularidade na escola, afinal estamos lidando com a polícia. As pessoas têm medo. É uma educação sem espaço para diálogo, com um regimento interno que delimita o modo de caminhar, onde há um controle abusivo do corpo”, enumera a professora.

Apesar do discurso oficial reforçar uma separação entre administração e pedagogia, a portaria 2015 é absolutamente clara ao informar que os militares também poderão atuar no ensino: “Os militares desempenharão, nas Ecim, tarefas nas áreas da gestão educacional, administrativa e didático-pedagógica”, diz o artigo 19. Quanto a isso, a expectativa gerada no curso de formação realizado pelo MEC é de que as Ecim adotem uma disciplina a mais no currículo escolar: a volta da moral e cívica.

Mais recursos para as cívico-militares

Oficialmente, as Ecim recebem os mesmos recursos das escolas estaduais em Goiás. Na prática, não é bem assim. Não há, de fato, uma verba extra, mas há maior número de funcionários, diferenciação nos salários dos gestores militares e uma vantagem subjetiva na aprovação de projetos.

“As escolas públicas de gestão de profissionais da educação têm dificuldade para todo tipo de burocracia. Os militares têm trânsito livre nos gabinetes, com soluções muito mais rápidas para problemas que as outras escolas não conseguem com tanta facilidade. Os diretores também ganham um valor bem inferior ao que ganha o comandante das escolas militarizadas, que têm até 20 pessoas para cuidar da segurança, da alimentação, das licitações. Isso tem um impacto, do ponto de vista de pessoal. Há ainda as contribuições ‘voluntárias’ dos responsáveis pelos alunos. Em uma escola com mil alunos, se cada um der R$ 100 por mês isso tem um impacto na gestão escolar. E isso também causa a quebra da gratuidade do ensino público”, critica Miriam Alves.

Tanto a pesquisadora quanto a secretária de educação de Jaboatão citaram um fenômeno que ocorreu nas escolas de Goiás. Com o passar dos anos, os alunos deixaram de chegar a pé à escola e passaram a chegar de carro. Ou seja, o perfil econômico dos alunos das Ecim mudou. “Nem todo mundo pode pagar a contribuição ou o fardamento”, lembra Miriam.

Quando se faz a comparação com escolas militares, a discrepância de investimento é ainda maior. No Brasil, há 13 escolas das Forças Armadas. Cada uma delas, de acordo com levantamento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), custa R$ 923 mil por ano ao Ministério da Defesa. Escolas públicas estaduais, de acordo com o mesmo levantamento, custam em média R$ 112 mil.

Para a pesquisadora, investir tempo e recursos financeiros em escolas cívico-militares é um erro. “É uma aberração o governo federal fazer isso. Um país que tem complexidades tão grande nos estados e nos municípios olhar para o que Goiás faz e dizer que isso dá certo é um absurdo. Lamento muito que o governo federal assuma essa posição. A rede pública responde por 84% do total de matrículas feitas no Brasil, o que são 54 escolas neste universo? Isto é um equívoco histórico, é uma irresponsabilidade enorme”, afirma.

AUTOR
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Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com