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Crédito: Vivian Cardoso/ Ocorre Diário
Da redação do Ocorre Diário
Dezenas de famílias de pescadores e agricultores que ocupam uma área da União na praia Barra Grande, no município de Cajueiro da Praia, a 357 quilômetros, de Teresina (PI), e a utilizam para plantar roças há várias gerações, foram acusadas pelo Ministério Público Federal e Polícia Federal de pertencerem a uma quadrilha de estelionatários e abrir uma associação para camuflar a grilagem do terreno.
Os moradores negam e não se conformam com as acusações. Para eles, empresários, políticos, policiais e servidores públicos tentam incriminá-los para ficarem com a área. Essa seria apenas mais uma das investidas do progresso predatório do turismo e da especulação imobiliária, que vêm expulsando comunidades tradicionais de pescadores e agricultores em Cajueiro da Praia.
A cada semana, novos e intensos capítulos envolvem decretos que permitem a devastação de áreas nativas, ações da Polícia Federal e derrubada de casas, destruição de pesqueiras, canoas, roças e outros artifícios. Áreas como Morro Branco, Ponta do Socó e a Área de Proteção Ambiental (APA) do Delta também foram invadidas por grileiros.
O caso da Nova Barra Grande, comunidade tradicional de agricultores e pescadores, tomou uma proporção maior devido a ação da Polícia Federal que prendeu dez integrantes da comunidade na operação Terra Prometida.
“Só falta agora matarem um de nós, o que pode acontecer se o Estado não interferir para proteger os povos nativos daqui”, fala o presidente da Associação de Projeto de Assentamento da Nova Barra Grande, Demétrio Oliveira, sobre as ameaças que sofrem.
A associação foi criada em 2022, sob orientação de órgãos públicos para que a comunidade pudesse lutar de forma legítima por seus direitos. A comunidade conta que no passado existiu uma outra associação, que esteve envolvida em vendas de terrenos, no entanto, segundo Demétrio ela não é reconhecida pelos moradores tradicionais.
Os conflitos ficaram cada vez mais frequentes na área até que, na madrugada do dia 13 de novembro 2023, 150 policiais federais entraram na comunidade e realizaram a prisão de moradores e a destruição de casas e roças na área da Nova Barra Grande sob a justificativa de que os moradores ali seriam grileiros.
Ao contrário, a comunidade diz usar a terra alvo da operação para sua subsistência. “A mesma mão que pega o peixe no mar, semeia a terra para ter a farinha de comer com o peixe”, resumiu o pescador Edvar Alves, ao explicar porque precisam da área para plantar alimentos.
É importante observar que na operação apenas foram presos e investigados os atores comunitários, de mais baixa renda e mais vulneráveis.
Demétrio, nativo de Cajueiro da Praia, filho e neto de pescador, diz que realiza atividades agrícolas na área reivindicada desde a primeira infância, na década de 1980. “Querem nos tirar do mapa, não respeitam as comunidades tradicionais”, acusa, rebatendo aqueles que os acusam de atraírem famílias de fora da comunidade para camuflar a comercialização de terrenos. “Não vendemos terras, muito menos em duplicidade, se investigarem vão descobrir quem está por trás e tenta nos incriminar”.
Para a comunidade, o mentor das ameaças não faz questão de anonimato. “Ele não se esconde, vem pessoalmente ameaçar os posseiros, sempre acompanhado por jagunços”, diz o pescador Antônio Carlos Araújo, que morava em uma casinha simples, com o quintal rico em frutas como maracujá, banana, coco, macaxeira e legumes. “Os policiais não deixaram nada em pé, destruíram tudo”. Desolado e sem teto, o pescador foi conduzido a situação vexatória. Passou a morar de favor de favor com seu filho e fica a maior parte dos seus dias na rua em situação de adoecimento e tristeza.
Márcia Marques, 23 anos, mãe de duas crianças pequenas, conta que os policiais arrombaram a porta de sua casa e apontaram arma para sua cabeça. Ela explica que ficaram das 5h da manhã às 16h da tarde trancados em casa, pois ninguém era permitido entrar ou sair da área até que a operação acabasse. “Quando eles chegaram ficamos assustados. Pedimos misericórdia porque não tínhamos para onde ir”.
Dona Rita Oliveira conta que seus nervos não pararam mais de tremer que os policiais prenderam seu marido, o pescador Bernardo Oliveira – conhecido como seu Jandaia – durante a operação. Ele ficou tão abalado depois de ficar preso cinco dias que não conseguia sair nem até a calçada de casa, contou a esposa. “O pior mesmo foi ser acusado daquilo que você não fez”, completa seu Jandaia.
As tensões na Nova Barra Grande são consideradas complexas pelas autoridades envolvidas como a Superintendência de Patrimônio da União (SPU), Prefeitura de Cajueiro da Praia, ICMBio, Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União e Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado do Piauí (Semarh).
O território do município de Cajueiro da Praia está fincado em terras da União. Segundo o Secretário de Governo da Prefeitura de Cajueiro, Thiago Ribeiro, não existe delimitação entre as áreas que pertencem ao município e à União, assim, o território fica sob a sob a tutela da SPU. Neste caso, a prefeitura afirma que se encontra impossibilitada de resolver a situação, já que não tem autoridade sobre a área.
O empresário Fábio Jupi é um dos envolvidos nos diversos conflitos espalhados pelo município. Além da sua presença na Nova Barra Grande, ele é acusado pelo Ministério Público Federal de se apropriar de duas áreas em território da União: 18 hectares na Área de Proteção Ambiental do Delta do Parnaíba (APA) e de, aproximadamente, dois mil metros quadrados na região da Praia do Socó. Nesses casos o Ministério Público Federal embargou e multou o empresário.
No último dia 20 de janeiro a Defensoria Pública da União (DPU), representada pelo defensor José Rômulo Plácido Sales, realizou reunião com as comunidades de Cajueiro da Praia que passam por conflitos. Na ocasião foram discutidas as situações da área denominada de Nova Barra Grande e também sobre o povoado Morro Branco, dentre outras. Sob um barracão improvisado, o encontro contou com mais de 100 pessoas da comunidade.
Indagada pelo Defensor sobre onde estavam no dia da operação da PF, Esmeraldina Alves, pescadora e agricultora relata: “No dia que vieram fazer a ação para derrubar a minha casa eu estava pescando. Eu venho pra roça e também eu vou pescar! Só que infelizmente a gente tem medo de vir [para roça]. Meu tio teve um revólver na cabeça tem 15 dias. Eu saí para pescar 1h da manhã. Eu ia saber que eles iam chegar 5h da manhã?”, questiona.
Ao depoimento de Esmeraldina se juntam outros agricultores que tiveram suas casas destruídas, pois também tinham saído para trabalhar no dia da operação. Outros relatos mencionam ameaças de mortes por homens não identificados, antes e depois da operação policial, a quem vai nas roças plantar ou colher.
Após o encontro, o defensor público Rômulo Sales explica que “a reunião foi para mapear os problemas e também identificar a forma de resolução destes. Na área em que houve a operação da Polícia Federal, nós iremos propor tanto à SPU quanto ao Ministério Público Federal, que a gente faça levantamento das pessoas que moram lá para dar solução à moradia dessas pessoas, seja na área, ou seja incluindo em programa de habitação do estado ou da prefeitura”, afirma.
O defensor acrescenta que irá observar a questão das áreas de roças. “Nós também iremos propor à SPU e ao MPF que a gente faça um mapeamento da situação e um levantamento socioeconômico dessas famílias para que a gente possa tentar viabilizar o desenvolvimento dessas atividades, até para prevenir que elas sejam objeto de invasão por outras pessoas para cometimento de crimes ambientais ou outra destinação”.
Presente na reunião, Liliana Sousa, presidenta da Comissão Ilha Ativa, ONG que vem prestando apoio à comunidade, afirma que já entraram com vários pedidos de regularização fundiária desde 2021. Além disso, realizaram denúncias – tais como destruição de pesqueiras (palhoças à beira-mar usando como ponto de apoio), desmatamento de mangues, violação de direitos humanos – e solicitaram Termo de Autorização de Uso (TAUS), documento que garante às comunidades utilizarem o território para a realização de suas atividades tradicionais de pesca, cultivo, entre outras. No entanto, segundo ela, os processos se encontram parados.
Sobre o caso de Nova Barra Grande, Liliana acrescenta: “Recentemente recebemos uma manifestação da SPU dizendo que a associação atende aos requisitos básicos para a regularização. No entanto, a gente questiona quais são os cadastros que estão na área e não temos respostas em relação a isso, pois tem outras pessoas que pedem regularizações particulares e que, neste processo, a gente considera que não cabe, pois entendemos que o interesse público deve se sobressair ao interesse particular”, argumenta.
Moradores do povoado Morro Branco, outra comunidade também situada em Cajueiro da Praia, tiveram a oportunidade de apresentar suas queixas durante a reunião com a DPU. Nesta localidade, a população reclama de derrubada de roças, devastação de mata nativa, destruição de mangues e construção de megaempreendimentos. O secretário de Governo, Tiago Ribeiro, informou que os empresários que estão construindo na área se sustentam por um RIP (Registro Imobiliário Patrimonial) datado de 1943 e por isso a prefeitura emitiu decreto permitindo o início das obras.
Manuel Silva, presidente da Associação de moradores do Morro Branco, relata que teve sua luz cortada como forma de intimidação para sair do local, mas resistiu morando no local por três anos. No entanto, “eu tive que me afastar, pois ameaçaram passar com o trator por cima de mim. Tem, inclusive, processo no Ministério Público. Hoje moro de favor porque os proprietários de RIP vem nos derrubar”, conta.
É também Manoel quem questiona a justificativa usando a própria lei que tem sido usada para garantir a derrubada das matas, memórias e histórias. Em sua análise o RIP pode ser cancelado em favor da comunidade “instrução normativa nº 4, de 14 de agosto de 2018. Se você olhar ela, o quê que ela diz? Que você tem que ocupar toda a área do RIP ou 80%. Será que esse rapaz aí ocupa 80% da área desse RIP? O decreto de 1943 disse que se no fim de três anos você não ocupar toda a área do RIP ou 80%, você sabe o que acontece? O RIP é extinto. Então cadê esse RIP se você não ocupa? Se você não plantou nada aqui, se você não fez nada?”, argumenta.
No que diz respeito à esta área do Morro Branco, Rômulo Sales responde que “vamos fazer o levantamento dos empreendimentos que lá existem, do amparo legal deles e também ver como eles afetam a comunidade e quais são as pessoas, quais as comunidades tradicionais que são afetadas por esses empreendimentos e quais especificamente a pretensão delas. Será outro levantamento que faremos a partir do contato, novamente, com a SPU e com o Ministério Público Federal, para saber a real situação legal e fática da região”.
Procurada por nossa equipe, a Polícia Federal emitiu a seguinte nota “A Polícia Federal informa que todas as suas investigações e ações são pautadas no princípio da legalidade, bem como no respeito e preservação dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos brasileiros”.
Já a Superintendência de Patrimônio da União respondeu confirmando o recebimento da solicitação de reportagem e informando que “estamos no aguardo da posição do Órgão Central referente a autorização para a entrevista”.
Na último dia 26, o governador Rafael Fonteles, convocou reunião com SPU, Incra, Instituto da Regularização Fundiária e do Patrimônio Imobiliário do Estado do Piauí (Interpi), secretarias estaduais de Planejamento e de Administração e Investe Piauí para agilizar regularização fundiária no litoral, principalmente nos municípios Luís Correia e Cajueiro da Praia. De acordo com o site Cidade Verde, na reunião, foi mencionado que a meta é distribuir mais de 10 mil títulos de terra até o final deste ano para reduzir os conflitos na região. Na ocasião, o superintendente do Patrimônio da União (SPU), João Martins Neto, confirmou nesta quinta-feira (25) que acionou a Polícia Federal para investigar atuação de “milícias” acirrando o conflito de terras no litoral do estado”. Martins não detalhou quem seriam os integrantes das tais “milícias”.
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