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Da arte de Debret aos mamíferos da Parmalat, o que as imagens da branquitude têm a ver com Pablo Marçal

Marco Zero Conteúdo / 07/10/2024
A pintura mostra uma cena com quatro pessoas e algumas plantas. À esquerda, há uma estrutura arquitetônica, possivelmente uma coluna. No fundo, vemos uma paisagem com árvores e folhagens. No primeiro plano, uma pessoa está sentada segurando um bebê, enquanto outra pessoa está de pé ao lado, segurando algo na mão. Uma terceira pessoa está ajoelhada em frente à pessoa sentada, fazendo algo próximo aos pés do bebê. Há flores no chão perto dessa terceira pessoa. As cores usadas são naturais, com foco em tons terrosos e no verde das plantas.

Crédito: Divulgação

por Erika Muniz*

Faz parte do nosso existir o ato de contar histórias. Mas as histórias podem ser contadas e recontadas de diferentes maneiras, a partir de vários pontos de vista, modificando o resultado que terá na vida de seus ouvintes, espectadores ou leitores. Nós, como brasileiros e brasileiras, somos feitos de histórias, que foram contadas, recontadas, desmentidas ou reelaboradas e que ajudaram a construir quem nós somos. Essas narrativas, porém, ao longo de mais de cinco séculos de Brasil nos fizeram entender de onde viemos, mas também ajudaram a reforçar verdades tidas como únicas e seus lugares de poder. Nos últimos anos, os fatos históricos, as figuras tidas como líderes dessas narrativas e a própria ciência História em si tem sido repensada, questionada e revisitada de maneira crítica.

Desse modo, publicações e estudos que trazem reflexões sobre as posições de poder, que usufruem de privilégios, na nossa sociedade, são importantes. Nas últimas décadas, estivemos trazendo debates feministas relevantes, refletindo sobre a participação e o apagamento das mulheres, a partir de uma perspectiva de gênero. As questões étnico-raciais também nos fazem refletir sobre o silenciamento e as violências vivenciadas pela população negra no nosso país. Agora, a pesquisadora Lilia Schwarcz, em seu novo livro Imagens da Branquitude, realiza uma leitura profunda sobre as imagens que fazem parte da nossa História. Ela analisa obras de arte, fotografias e em outros documentos visuais, destravando as mensagens e narrativas inscritas em cada uma dessas imagens.

Entre análises de pinturas do artista Jean-Baptiste Debret, datadas do século XIX, que estampam livros didáticos em escolas pelo país, nas quais pessoas brancas aparecem em situações de usufruto de seus privilégios e de exploração de pessoas negras durante o período da escravidão, até leituras sobre as representações étnico-raciais em campanhas publicitárias famosas mais recentes, como a série “Mamíferos da Parmalat”, que trazia crianças vestidas de animais, que foi febre nos anos 1990.

Em entrevista à Marco Zero Conteúdo, a historiadora e professora da USP comenta sobre o que propõe com a sua nova publicação, refletindo sobre o que seria a branquitude, qual a importância de desestabilizar o que é entendido como natural e como ela percebe a extrema direita brasileira – que trabalha reforçando lugares de poder, como o masculinismo e a branquitude, por exemplo – no Brasil de agora.

Foto de Lilia Schwarcz, mulher branca de meia idade, com cabelos compridos lisos, óculos de grau com armação malhada de marrom escuro e claro, usando blusa preta de mangas compridas. Ela está apoiando o queixo na mão direita , olhando direto para a câmera, e foi fotografada do tórax para cima.

Lilia Schwarcz

Crédito: Renato Parada/Divulgação

Marco Zero – Os debates sobre imagens fixadas, normalmente partem de um pressuposto da diferença étnico-racial e/ou de gênero, ou seja, de que existe uma norma e ela usufrui de privilégios, ao contrário dos que não habitam essa norma. No título de seu novo livro, estão as imagens de branquitude, assim, o que seriam essas imagens? E, de que forma falar sobre branquitude é desnaturalizar uma suposta transparência e neutralidade da branquitude?

Lilia Schwarcz – O conceito de imagem vem de magia. E, não à toa, ele é a raiz da ideia de imaginários. Então, as imagens que nos constituem – e ainda mais no período contemporâneo e a partir do século XIX, com o advento da fotografia – são imagens marcadas por um determinado lugar social, que é o lugar da branquitude, que é, evidentemente, um lugar de privilégio social. Não à toa, a branquitude social é um conceito que se pauta no passado, mas se prescreve no tempo presente. Então, a ideia do subtítulo A presença da ausência é que, de um lado a presença enquanto privilégio da branquitude é imensa, mas, ao mesmo tempo, se trata de uma imensa ausência, porque as imagens naturalizam esse lugar. Falar de branquitude, ensinar a ler imagens é uma maneira de desnaturalizar esses que são documentos visuais muito poderosos. Porque estamos acostumados a interpretar um documento escrito, mas pouco acostumados a perceber que uma imagem carrega uma série de convenções visuais, uma série de códigos, uma série de pathos, que, de alguma forma, nos convencem sem que nós percebamos exatamente isso. Por isso que é tão importante esse movimento de ler imagens. Como ler imagens? Pela reiteração, pelos detalhes, como uma contranarrativa, ou seja, a partir daquilo que o profissional não quer que se leia, mas cuja mensagem evoca.

A seu ver, até que ponto nós, pessoas brancas progressistas que tentamos ter uma prática antirracista, conseguimos romper com o pacto narcísico da branquitude (conceito mencionado pela Cida Bento)? De que forma o pacto narcísico continua operando nas relações, quando pessoas brancas refletem sobre os seus privilégios?

Não sei se eu entendi muito bem essa sua segunda questão, mas vou tentar reagir a ela de alguma maneira. A Cida Bento, uma grande intelectual, educadora negra, na sua tese e no seu livro, desenvolve esse conceito de “pacto narcísico”. Narciso foi um personagem que, ao que diz a lenda, ao que diz a tradição, ficou se olhando na sua imagem refletida na água de tal maneira que passou a só ficar dominado por ela. Então, o que acontece? Como é que pessoas progressistas e brancas, como eu sou, por exemplo, podem ter uma atitude antirracista? É muito importante que nós, primeiro, entendamos que o racismo é uma contradição da sociedade brasileira e não apenas das pessoas negras, como diz Cida Bento no mesmo livro. É importante entender a escravidão, não só a partir da vitimização das pessoas negras e de suas agências, mas também o que significou para as populações brancas viver essa situação de monopólio do poder durante tanto tempo. Esse é o primeiro ponto. Segundo ponto, a população negra no Brasil não é uma minoria, é uma maioria populacional – porque corresponde a mais de 56% da população brasileira –, mas minorizada na representação. Então, não estamos falando exatamente de minorias, mas de maiorias que não estão contempladas, não só na representação visual, como na representação pública e na representação privada. É preciso falar dessas questões entre pessoas brancas para que nós tenhamos um movimento na direção de qualificar a nossa democracia, para que a democracia brasileira inclua setores secularmente excluídos da participação.

Qual a importância de repensar os arquivos históricos e artísticos que constroem os símbolos de poder e as suas ausências? Por que pensar as representações de diferentes vivências que habitam esse território nas obras de arte, por exemplo, refletindo sobre como pessoas não brancas foram representadas até o século XX?

Nesse livro, eu trabalho branquitude e negritude como relações. Negritude foi um conceito criado pelo Movimento Negro como um conceito afirmativo, ainda no começo do século XX, no movimento Harlem Renaissance, nos Estados Unidos, e também na França. A branquitude sempre foi um conceito de recusa. A branquitude, muitas vezes, não se aceita pensar a partir desses conceitos e o toma como uma categoria de acusação, que não é. Eu justamente uso as imagens para que as pessoas possam ler essa situação de privilégio. Os arquivos históricos, os museus, são instituições que foram criadas no contexto colonial e que carregam esse mesmo direcionamento, no sentido de estabilizar o privilégio das populações europeias, das populações brancas, que dominaram o mundo, sobretudo a partir da modernidade, a partir do século XVI. Dominaram com uma máquina de violência muito grande. Dentre as violências, está o apagamento da memória. Os arquivos, os museus, são as instituições que lembram e esquecem também. Vivemos num momento em que é preciso perguntar aos arquivos por outras populações, por outras questões, para que a gente, de fato, crie uma historiografia, Ciências Humanas e um processo de memória cada vez mais plural e inclusiva. A memória é uma virtude republicana.

A foto em preto e branco mostra uma família de quatro pessoas brancas ladeada por duas negras, sendo uma mulher adulta à direita e uma menina despenteada à esquerda. No centro, há dois adultos, provavelmente os pais, sentados; o adulto à esquerda está segurando um bebê, enquanto o adulto à direita está em pé atrás da figura sentada. O fundo consiste em uma cena de paisagem pintada em uma tela ou pano de fundo.
Crédito: Divulgação

Muitas histórias ficaram de fora da História do Brasil por muitos anos e muitas ainda permanecem silenciadas. Mas, por que é preciso trazer essas outras histórias para o conhecimento coletivo? E, com elas, podemos refazer a memória do povo brasileiro sobre o nosso país?

Bom, é muito importante que nós convoquemos a memória. Memória e história são categorias distintas. Em geral, a história desconfia da memória, porque acusa a memória de se pautar em critérios apenas subjetivos. E a memória disputa esse tipo de direito à representação com a história, que se pauta apenas em documentos, assim ditos, racionais. É muito importante que a historiografia brasileira deixe de ser apenas e tão somente masculina, europeia e das elites. Aquilo que nós chamamos durante tanto tempo de uma história universal foi, sobretudo, uma historiografia europeia. A historiografia brasileira, durante muito tempo, foi uma historiografia quase que exclusivamente sudestina. E por que é importante contar muitas histórias? Porque o conhecimento, como você bem diz na sua pergunta, precisa ser coletivo. E ao ser coletivo, ele precisa ser plural. Ele precisa dizer respeito às populações que constituem esse país, e não só a apenas um segmento.

Você que já pensa sobre o autoritarismo brasileiro, como reflete sobre as mudanças na extrema direita brasileira, neste 2024, com a chegada de Pablo Marçal? E que características a extrema direita brasileira tem de diferença das de outros países, como os EUA (Trump) e Argentina (Milei)?

O crescimento da direita radical data dos anos [em torno de] 2016, com a crise dos anos [em torno de] 2016. É nesse contexto que figuras como Orbán, na Hungria, Donald Trump, nos Estados Unidos, ganham uma projeção internacional. É nesse momento também que ocorre uma grave crise da democracia com esses políticos retrógrados sequestrando a pauta da democracia, que não tem nada a ver com golpe de Estado, defesa da liberdade de expressão com interesses espúrios. A chegada de uma figura como Pablo Marçal, que concorreu à prefeitura na cidade de São Paulo, é um fenômeno também que não diz respeito exclusivamente a São Paulo. Eu acho que ele representa, ao extremo, esse lado midiático da política. De um lado, uma política sem efeitos, ou seja, sem projetos, uma política que se encerra nas suas causas, o que significaria aparecer para o público cada vez mais. Pablo Marçal representa essa antipolítica, que Donald Trump também representa. Não há projetos, não há debate de ideias, não há respeito pela diferença das pautas. Há, única e exclusivamente, palavras de ordem e expressões para as câmeras – e que depois se convertem em cortes para conseguir mais likes e conseguir mais projeção e conseguir mais seguidores. Existem muitas diferenças entre os vários políticos de extrema direita, eu não teria tempo de responder aqui. O que há em comum entre eles é uma espécie de populismo digital. Populismo sempre foi uma forma de fazer governo que se pauta na tentativa de dar respostas fáceis para situações complexas e também em políticos que se apresentam como espécies de Messias, de pessoas que têm soluções, que são individuais e pessoais. São também, no período contemporâneo, pessoas que se manifestam contrárias a qualquer tipo de diferença. Portanto, são pessoas profundamente antidemocráticas, se nós pensarmos que a democracia se pauta na liberdade de expressão, na igualdade de direitos, no respeito às opiniões divergentes, na transparência e, principalmente, no respeito à verdade e ao bem comum. As fake news são uma atitude oposta à democracia, porque distorcem a verdade, manipulam a opinião pública e impedem o debate honesto e, de fato, informado. O candidato Marçal acumulou na sua figura todos esses pedaços de atitudes nada republicanas e nada democráticas.

A imagem é um pôster de propaganda vintage. Ela apresenta dois personagens: um adulto com cartola e gravata borboleta, segurando um livro ou pacote com o rótulo “AREGOS”, e uma criança vestindo uma roupa xadrez. Os rostos dos personagens estão cobertos por retângulos marrons, provavelmente para manter a privacidade ou por efeito ilustrativo. O fundo é amarelo, e há um texto em português que diz “…só falta metade…” na parte superior. Abaixo dos personagens, mais texto diz “SABONETE AREGOS EMBRANQUECE E CURA A PELLE”. Há também informações sobre os locais onde o produto pode ser encontrado em Lisboa: “DEPOSITOS: EM LISBOA: BOTICA DO BATALHA - R. SANTA JUSTA 69”.
Crédito: Divulgação

*Jornalista, formada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e em Comunicação Social pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Pesquisa a área de cultura, assinando trabalhos na Revista Continente, Quatro Cinco Um, Revista O grito! e JornaldoCommercio.

AUTOR
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