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Desde julho falta água nas torneiras em povoado no interior do Maranhão

Inácio França / 16/10/2024
Foto de três homens empurrando carrinhos de mãe com garrafões em um ambiente árido, ao lado de uma casa de paredes de taipa. Na área central da imagem, o solo não tem vegetação e tem cor avermelhada. Ao fundo há árvores esparsas e colinas.

Crédito: Coar Notícias

Por Jeciane Chaves, Idayane Ferreira, Beto Lagoas e Marta Alencar, da Coar Notícias*

Como é a vida sem água? Nas torneiras das casas dos moradores de Três Lagoas do Piraca, povoado localizado no município de São Raimundo do Doca Bezerra, no Maranhão, não há qualquer sinal de água.

Moradores relatam que estão há mais de três meses convivendo com essa situação que permanece inalterada após as eleições municipais. A situação é tão dramática que centenas de moradores chegam a lavar roupas em outra cidade, pois a água a qual conseguem ter acesso quase não é o suficiente para beber, banhar ou cozinhar.

“Minha esposa e minha filha vão pegar água no povoado Cajazeira II [distrito do município de Barra do Corda, a 14 quilômetros de distância]. E aí é de oito em oito dias, é a lavação de roupa. Porque não tem água suficiente para quase nada. O prefeito mandou cavar um poço novo, que era pra ter uns 400 metros de profundidade, mas esse não chega nem a 200 metros. E a água é ruim e pouca. Muito pouco mesmo.”

Este é o relato de um morador que pediu à nossa equipe para não ser identificado e reside há mais de 40 anos na comunidade Três Lagoas do Piraca. O morador que convive com mais oito parentes numa mesma residência relata como é difícil fazer tarefas simples no dia a dia devido essa calamidade do abastecimento de água nas residências. “Tamo pegando água de um poço particular, o dono de uma fazenda próxima do povoado, libera pra gente pegar água de manhã cedinho porque depois é a hora que o gado dele vai beber”, relata.

Outro morador, que também não quis se identificar por medo de represálias das autoridades municipais que ainda estão no poder municipal até o fim de dezembro, conta que muitas vezes tem que deixar de trabalhar para poder ir pegar água para abastecer sua casa: “A nossa situação aqui é de extremo descaso, o que a população está passando aqui é desumano, falta de água potável, estamos a quase quatro meses sem água nas nossas torneiras para nossas necessidades, estamos cansados de carregar água em tambores […] estamos até sem trabalhar, porque sem água em casa temos que ir buscar nos poços, nas lagoas, água suja imprópria para consumo, mas é o jeito!”

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Três Lagoas do Piraca é um distrito rural de São Raimundo do Doca Bezerra, há 378 quilômetros da capital São Luís, com população de 1.900 pessoas distribuídas em 390 residências. É um povoado populoso para as dimensões do município, que conforme o censo de 2022 tem 5.650 habitantes.

Com base em informações coletadas por moradores na região, o poço que fornecia água para as casas foi cavado pela prefeitura que também era a responsável pela manutenção do mesmo, e depois de ter apresentado problemas foi consertado por pessoas sem qualificação para a realização do serviço, o que resultou no rompimento da corda e queda dos canos no fundo do poço.

Os moradores com quem conversamos afirmam que a prefeitura não manda carros pipas todos os dias para abastecer as casas e, os pipas chegam, a água distribuída não é apropriada para consumo. “Mandaram um carro pipa sem o menor preparo e higienização, coloca água de açude, nunca foi colocado água limpa, de qualidade. Ainda hoje tá aqui colocando água de açude para os moradores!”, narra.

A água fornecida pelos carros pipas é aproveitada apenas para algumas atividades como lavar louça. Água para consumo tem que ser comprada pelos próprios moradores por meio de um “comércio clandestino” de abastecimento de água, no qual os moradores pagam R$ 50 a cada mil litros de água retirada de poços particulares. Mas até essa alternativa é problemática: uma das moradoras que dependia da solidariedade de um vizinho informou que no início do mês de outubro, o fornecimento teve que ser interrompido, pois o dono do poço precisava de água para seu gado.

O sentimento de revolta é compartilhado por todos da região. “A experiência é a pior possível, temos que trabalhar e quando chegamos tem que buscar água no carro de mão […] A situação aqui é preocupante, minha mãe de quatro em quatro dias tem que pagar para colocar água”. Uma outra moradora da região, realizou uma denúncia para o Ministério Público, no dia 19 de setembro de 2024, relatando a precariedade e a situação de risco em que os moradores se encontram.

Diante desses relatos, a nossa equipe entrou em contato com a Promotoria de Justiça de Esperantinópolis, responsável por acompanhar a denúncia, que informou por meio de nota que está ciente da calamidade no povoado e já foi realizada uma diligência no local para verificar o noticiado e oficiado junto ao prefeito Seliton Miranda (PDT) para prestar às devidas informações.

Poço raso, água ruim

Há um documento oficial confirmando a situação de vivida por Três Lagoas do Piraca. Um Relatório Técnico de Vistoria realizado em 15 de julho de 2024, elaborado pela Prefeitura Municipal de São Raimundo do Doca Bezerra e assinado pelo geólogo Márcio Martins Bacelar, CREA N° 110515813, e pelo secretário municipal de obras e urbanismo, Bartolomeu Pessoa Cabral, confirmou a condição emergencial de falta de abastecimento de água potável.

O documento descreveu a “situação de calamidade pública” devido à escassez de água, que impacta “significativamente a população do povoado, gerando riscos à saúde, bem como dificuldades socioeconômicas”. O relatório detalhou que o poço existente “não possui as características técnicas de profundidade adequadas” para o nível do lençol freático, que varia entre 350 e 400 metros. Além da água disponível apresentar problemas “de turbidez e excesso de salinidade, tornando a água sem a potabilidade mínima adequada.”

Tanta cobrança por parte da população para a resolução do problema fez com que a prefeitura cavasse outro poço, mas ainda sem data para a liberação da água. Como medida emergencial, recomendou-se a perfuração de um novo poço tubular profundo com bomba submersa que proporcionaria “acesso contínuo à água de qualidade” e reduziria a dependência de caminhões-pipa. O relatório técnico de vistoria enfatizou ainda a necessidade de “providências em caráter de urgência” para assegurar o direito básico à água e sugeriu que a prefeitura investisse na solução proposta, visando sustentabilidade e autonomia a longo prazo para o povoado.

Os custos estimados para a contratação foram baseados no Sistema Nacional de Pesquisas e Custos, referente a maio de 2024, com encargos sociais sem desoneração e valores de base de abril de 2024: o valor foi estimado em R$ 409.024,10 (quatrocentos e nove mil e vinte e quatro reais e dez centavos).

No Portal da Transparência de São Raimundo do Doca Bezerra estão disponíveis documentos que detalham o processo de licitação para a perfuração de um poço tubular profundo em Três Lagoas do Piraca. A licitação foi realizada por meio do Pregão Eletrônico nº 7/2024, modalidade de menor preço por item, em conformidade com a Lei nº 14.133/2021. O edital foi publicado em 19 de julho de 2024 e o contrato homologado em 6 de agosto.

O valor inicialmente estimado era de R$ 409.024,10, mas o contrato foi homologado por R$ 306.806,76, e a empresa vencedora foi a Gavião Soluções, registrada sob o CNPJ 12.351.550/0001-34. A execução dos serviços tem um prazo inicial de 90 dias, com possibilidade de prorrogação, e o pagamento será parcelado em três etapas, vinculadas ao progresso da obra.

O projeto básico estabeleceu as especificações técnicas, materiais, e as obrigações de ambas as partes (Prefeitura e empresa contratada). Os serviços do projeto incluem a perfuração do poço tubular profundo, a instalação de uma bomba submersa, a construção de uma caixa d’água para armazenamento e a implantação de um sistema de distribuição de água potável.

Esse novo poço reacendeu uma chama de esperança, que não durou muito. No dia 26 de setembro aconteceu a primeira tentativa de colocar o poço para funcionar, mas descobriram que o poço não possui água.

Falta d’água não foi tema da campanha eleitoral

Toda essa situação de calamidade ocorreu em pleno período eleitoral, e as eleições municipais de São Raimundo do Doca Bezerra, foram marcadas por um cenário previsível. Jacinto Neto, sobrinho do atual prefeito Seliton Miranda, foi eleito com ampla maioria. Com 3.520 votos, Jacinto derrotou facilmente o candidato da oposição, que obteve apenas 793 votos.

Grande parte da população trabalha diretamente para a prefeitura ou depende economicamente das atividades ligadas à família Miranda, seja nas fazendas de soja ou em empresas da família. Essa dependência consolidou o grupo como uma força inquestionável, tornando qualquer oposição praticamente inexpressiva.

A família Miranda tem dominado o cenário político de São Raimundo do Doca Bezerra há anos. Sérgio Miranda, pai de Jacinto e irmão de Seliton, também ocupa um papel central na política local. Além de ser dono das plantações de soja que geram emprego para muitas famílias são raimundenses, Sérgio foi eleito vice-prefeito da cidade de Bom Lugar, a 152 quilômetros de São Raimundo, reforçando ainda mais o poder político da família.

A equipe de reportagem entrou em contato com o atual prefeito Seliton Miranda e o secretário municipal de Obras e Urbanismo, Bartolomeu Pessoa Cabral, mas até o fechamento desta matéria, ambos não se pronunciaram sobre o caso.

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.