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Quando foi trabalhar em Dourados, no Mato Grosso do Sul, há mais de 40 anos, a professora Graciela Chamorro era recém-formada em música. Não demorou muito e ela, nascida no Paraguai, logo conheceu indígenas da etnia kaiowá. Uma conexão foi a língua, semelhante ao guarani, uma dos idiomas oficiais do seu país. Mas também havia várias diferenças, palavras e sons novos, que ela não entendia. “O que eles me falavam de conteúdo, eu não entendia completamente, mas entendia a profundidade das frases, das afirmações, dos cantos. Eu sempre tinha que perguntar de novo. E nesse vai e vem, eu fui descobrindo as palavras que, de fato, não conhecia”, conta Chamorro.
Tudo que ia aprendendo, ela anotava em um caderninho. “Quando eles falavam de batismo, por exemplo, eram 20 palavras que eu precisava saber para entender o assunto. Quando eles falavam em morte, ou em dança, ou em cura, quantas eram? E assim eu fui criando um acervo de termos muito próximos da experiência cultural da língua e que era muito necessário, porque eu entendia a conversa de forma geral, mas não o conteúdo. Então, eu fui sempre colocando atrás de cada texto uma lista de palavras, um glossário”, conta.
O que começou como simples anotações se tornou, em 2022, o primeiro dicionário Kaiowá-Português, que agora chega a sua segunda edição impressa, com quase 800 páginas, em capa dura, financiada pelo Fundo de Investimentos Culturais (FIC), da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (FCMS).
Professora aposentada de História Indígena na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Graciela Chamorro sabia que as anotações que havia reunido ao longo de décadas eram valiosas para ajudar na comunicação com os povos kaiowá. Mas o projeto de lançar um dicionário começou a tomar forma somente em 2017, quando ela conheceu Assis Benevenuto, fundador da editora Javali, que submeteu e aprovou o dicionário no edital Rumos Itaú Cultural 2019–2020.
O projeto então foi tomando forma e contou com a participação de professores universitários das áreas de linguística, lexicografia, história, antropologia e línguas originárias. E, claro, a fundamental colaboração de indígenas kaiowá.
A primeira edição do dicionário se baseou sobretudo na língua falada pelos kaiowás das terras indígenas de Panambi, Itay Ka’agwyrusu, Gwyra Kambiy e Panambizinho. “São indígenas rebeldes”, brinca Chamorro. Isso porque os habitantes de Panambi e Panambizinho não se entregaram ao sistema de reservas estabelecido pelo Estado, preferindo permanecer em suas terras tradicionais, mesmo que isso significasse ocupar uma área menor. Especialmente nessas duas terras indígenas se fala uma língua mais preservada, o que ajudou o dicionário a ter uma compreensão mais próxima do idioma original.
Para esta nova edição impressa, houve a necessidade de ampliar a participação de falantes que não pertencem ao Ka’agwyrusu [Ka’agwy “mata” e rusu “densa/o, grossa/o”], a “mata grossa” que cobriu até metade do século XX boa parte do antigo sul de Mato Grosso. “É muito diferente você trabalhar com um indígena que é da reserva e que sua língua está mais ou menos adaptada à cultura da reserva do que trabalhar com indígenas que não têm essa tutela, ou não que tiraram essa tutela da reserva. Então para a segunda edição percebemos também a demanda de um vocabulário menos conservador de parte de usuários da edição anterior”, conta a professora.
Na prática, isso significou a inclusão de novos verbetes, de empréstimos e de novas acepções, que foram feitos com um grupo de docentes e estudantes kaiowá e guarani que colaboram na elaboração do Dicionário Escolar Kaiowá. Na primeira edição, por exemplo, não havia palavras iniciadas com F nem por L, já que não constam no abecedário kaiowá mais reservado. “Na primeira edição, não trabalhamos muito com empréstimos, especialmente do espanhol e do português. Preferimos a língua mesmo kaiowá, porque os empréstimos são muitos e aí seria um dicionário de duas mil páginas com bastante empréstimos. Agora, incluímos alguns por demanda dos próprios indígenas, que pediram pra gente colocar porque são empréstimos que já existem há muitos anos”.
Um dos grandes desafios do dicionário foi a ausência de uma escrita padronizada para o kaiowá. Existem dois modelos principais: um baseado no português e outro no espanhol. “Praticamente desde o século 16 o espanhol está presente aqui na região e tem muito mais material escrito em espanhol sobre os kaiowá, por isso optei pelo modelo espanhol”, afirmou a organizadora do dicionário.
Além de ser uma ferramenta muito útil para pesquisadores, profissionais de saúde e educadores que trabalham com os kaiowá, o dicionário também busca suprir a falta de conhecimento sobre a cultura e língua kaiowá na sociedade em geral, já que a língua é uma importante ferramenta para acessar essa cultura. “Já recebi o relato de um médico, que trabalha em um hospital próximo a uma área indígena, que recorreu ao dicionário para entender o que os pacientes kaiowá estavam comunicando. E eles têm lá no hospital, e fica lá rodando na mão de quem precisa”, conta.
Para Graciela, é importante que políticas públicas sejam desenvolvidas para incentivar o uso da língua kaiowá, incluindo a presença de falantes nativos em escolas e centros de pesquisa. “Hoje em dia, há uma inserção muito grande de igrejas nas aldeias e falam tudo em português. Deveria ser exigido que essas igrejas falassem na língua nativa dos indígenas. Quem vier de fora, tem que falar na língua nativa. Eu acho que uma maneira de prestigiar a língua também é que o Estado coloque exigências para que os professores também aprendam o idioma. Assim, os indígenas vão ver que a sua cultura também é valorizada”, afirma.
O dicionário tem ilustrações do artista kaiowá Misael Concianza Jorge, além de 50 grafismos, que, assim como as ilustrações, são parte da representação visual da cultura kaiowá no diicionário.
A edição física do livro é vendida a R$ 80 e o dicionário também está disponível gratuitamente no site da editora Javali.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org